Merecem as singularíssimas virtudes do senhor D. Luís de Figueiredo ficar em perpétua memória dos que vierem, contra o duro fado do esquecimento, por benefício e obra das boas letras; convida a ilustre cópia do subjecto os altos entendimentos apurados gastar na gravidade da História as suas devidas horas de compor. Movido do resplendor com que se vêem, quis entrar no conto dos que notam com uma linha breve o rio Nilo e quase com um ponto a grande Roma. Neste sumário, que agora lhe presento, direi do nobilíssimo tronco de que procede, da pátria que deu princípio ao nascimento do imortal nome que em as letras tem, dos abalizados serviços a Sua Majestade feitos, do trono e dignidade em que reside, se minhas forças bastarem subir tanto, que venha conseguir o que prometo.

Promovido D. Hierónimo Barreto de ordinário do Funchal à grave prelacia dos Algarves, eram presentes na memória da Católica Majestade os serviços, que nas ilhas dos Açores, metido este senhor no meio das alterações passadas, arriscando pessoa e vida, lhe fizera, e o nome de tantas virtudes e letras, de informações tiradas por ordem dos antepassados Reis, que nos secretos anais do Tombo se guardavam. Respeitadas estas coisas que nele se juntaram, o presentou no bispado das ilhas da Madeira e Porto Santo, deliberado de o levantar, havendo conjunção, a maiores prémios.

Na ilha de Santa Maria, posta no Mar Oceano, no fertilíssimo quinto clima, que no número dos mais de abundância tem o principado, sita na altura do cabo de São Vicente, em trinta e sete graus, nasceu este senhor; certo, pequena na circunferência que a rodeia, grande na honra de ser primeira que lhes ministrou o vital alento com que respiramos. Foram seus progenitores Miguel de Figueiredo de Lemos, fidalgo muito principal dos Figueiredos, que por cominuação (sic) de tempos foram vice-reis, bispos e grandes destes reinos, cuja memória em os sucessores do nome anda com alguma parte do valor passado, e dos Lemos, ilustríssima família de Galiza, que, por socorro vinda à conquista de Portugal, no esforço das armas adquiriu honrosos títulos de grandeza; o qual senhor, deixada sua pátria, trazia requerimento de quem era, e com eles andava com a corte. E por causa de chegado parentesco com D. Filipa de Vilhena, mulher de D. Francisco Coutinho, comendador de Santa Maria, com negócios de muita importância, requerido por eles veio à ilha.

Contente do alegre sítio da formosa terra, movido do singularíssimo parecer e dotes da senhora Inês Nunes Velha, da ilustre descendência dos Costas, que dos Infantes de Aragão trazem o antiquíssimo solar de sua fidalguia, e dos Capitães, que do tempo que se descobriu a ilha, governam e mandam o estado dela, por matrimónio juntos vivem em glória da geração que têm. Esta morosa e eficaz razão obrigou este senhor, pospostos do Reino os despachos e pretensões que tinha, viver em deleitosa paz naquela ilha, sem prosseguir o primeiro intento de servir el-Rei, nem andar na sua corte. Esteve Inês Nunes sem trabalhos de emprenhar os primeiros anos do casamento; devia ser poderosa causa natural que o impedisse, ou que as grandes e raras coisas costumam esperar acomodado tempo para vir ao mundo. Temerosas algumas suas parentas que com a idade corresse juntamente a ocasião do parto, respondia, movida de incógnita e não sabida influência, esperar na misericórdia do Sumo Deus ter filhos, e no número destes um que havia de ser bispo, verdadeiro pronóstico do que agora vemos.

Foi primogénito; veio à luz deste nosso miserável mundo na era do Senhor de mil e quinhentos e quarenta e quatro, a vinte e um de Agosto, celebradíssimo dia de Santo Anastácio, e, por nova regeneração no grémio da Igreja, em o mesmo que aquele grande espantoso bispo Santo Agostinho, com felicíssima vitória do terreno mundo, entrou nos paços da celeste glória. O templo em que recebeu a sagrada água do baptismo se chama Nossa Senhora da Assunção; do mesmo nome é a metropolitana do Funchal em que agora governa a primeira prelacia; são correspondências, a nós secretas, de espantosa e rara maravilha a quem com ânimo curioso as ponderar.

Os primeiros anos de sua tenra idade foram regulados de uma natural modéstia e discrição.

E no tempo que começam outros quase conhecer os pais, deixados por ele os risos da inconstante meninice, entrou no rigor do mestre e da escola; com pronta viveza discorrendo a veracidade das letras, em poucos anos aprendeu a ler, passando a maravilhosa invenção do escrever, poderoso e único remédio contra a miserável perda da memória dos mal lembrados homens. De doze anos começou dar obra aos ásperos preceitos da Gramática, na doutrina de um entendido mestre, que com muito louvor aos filhos dos nobres lia as humanas letras, acquirido (sic) quanto dele se podia alcançar, entender, falar e escrever latim.

Antepondo seu pai as certas esperanças que mostrava ao tenro e vivo amor com que o queria, o mandou a Lisboa ao Colégio de Santo Antão, a estudar Retórica e Grego, ornamento e glória da latina língua. Desembarcado nos braços de seus parentes, nos mimos que todos lhe faziam, espantados em tão pequena idade parecerem tantas mostras do que prometia, entrou nas classes, e com incansável zelo da eloquência, passou em poucos meses os mais antigos e graves delas. E no exercício de compor verso e prosa, excedendo com muito louvor a todos, ganhou os melhores lugares e os prémios. Acabados dois anos, julgado no parecer dos padres meretíssimo de qualquer ciência, mandou seu pai que fosse a Coimbra estudar Cânones, presságio da dignidade que havia depois ter. Não bastaram danadas ocasiões daquela imensa cidade de Lisboa a profanar o casto recolhimento de seu peito, antes, avisado com as mostras da perdição que via, realçou em maior altura de virtude. E metido no meio de tantos males, vivia solitário com só Deus e com os livros.

Chegado à mãe das letras, vendo quanto convinha responderem as mais virtudes à nobreza dos parentes que junto de Coimbra possuem seus morgados, no senhorio de Góes, da Trofa, de Besteiros, de Recardães e outras vilas sitas no contorno, vendo-se no teatro do mundo, ausente do grave entendimento de seu pai, regra em a qual sempre vivera, propôs consigo anexar ao respeito de quem era altíssima cópia de virtudes, e, no preceder dos anos que nas escolas teve, correram sempre juntos recolhimento e gravidade a um quase infinito cuidado de tratar os livros. E, para terem melhor ordem estas coisas e alcançar o fim que pretendia, de toda vontade se resignou no singular valor do príncipe S. Pedro, a que de menino teve particular amor e devação (sic) e com muita instância lhe pedia dispusesse sua vida no verdadeiro caminho da salvação. A grave cópia de tantas obras o levantaram ao cume de um supremo nome.

Nem nos limites sós da Universidade discorreu o resplendor de seus louvores; chegou à notícia dos nossos reis e, além do mar, passou às ilhas que chamamos dos Açores. Nas portas dos Gerais, junto aos mestres, nas conferências postas dos ouvintes, no declarar de textos intrincados, no fácil responder aos argumentos se via nele claro a rara subtileza do engenho e quão bem empregara as horas do estudo.

Nunca o pardo ar da noite o achou fora da casa em que pousava, nem a manhã com a claridade o ergueu da preguiçosa cama em que dormia; mas antecipava recolher-se com a casta modéstia do viver honesto, e com a vigilância do estudo defraudava ao sono o limitado tempo. Passados os mais doctos do seu curso, chegou igualar opositores que no dividoso (sic) Marte das cadeiras têm esperança de conseguir vitória.

Correram nestas coisas cinco anos, tempo em que, publicamente, os que o têm cursado mostram por defendidas conclusões ao rigoroso juízo das Escolas quanto por razão dos livros acquiriram, dificultoso acto no parecer de todos, primeiro público exame que se tem, responder aos argumentos dos doctores e condiscípulos, que pretendem de vencer, incerteza da memória que, divertida, de leve ocasião desaparece, lastimosa vergonha do que sustenta. Vencidos todos estes medos, valorosissimamente defendeu os dificultosos passos das graves conclusões; e por todos foi julgado de uma rara habilidade subtilíssima.

Na reputação deste louvor passou um ano. No sexto, teve o segundo acto mais solene: dentro de vinte e quatro horas interpretar um texto por sorte dado no espantoso número de tantos que os sagrados cânones têm, lição de ponto de uma hora inteira na venerada presença das Escolas, assistindo a pessoa do rector, de pronto responder às dúvidas arguidas de seus mestres e outros que procuram cobrar crédito; e, por fim, o duro escrutínio da provação, votos secretos com que os lentes julgam se admitem ao desejado grau o que sustenta. Temor produz a muitos este exame; neste senhor não houve que temer; seguro com o ímpeto e veemência da lição, tirando do sorteado texto as puras e sinceras conclusões, confundiu das outras o miserável erro; desatou o nó dos argumentos, mostrando o claro sentido da verdade. De modo que por meritíssimo lhe concederam os aprovados graus, sem discrepância, com sumo prazer e aplauso dos circunstantes, dando-lhe faculdade de poder, publicamente, expor e ler nas Escolas quaisquer livros dos sagrados cânones. Os seguintes dois anos que restavam do número dos octo que, por instituto, se requerem de pessoal residência nos estudos, todos empregou no geral das leis, da muita conveniência e parentesco que estes dois direitos em si têm: canónico e civil.

No meio tempo que com infinita vigilância trabalhava penetrar o incerto e duvidoso intento dos legistas, el-Rei D. Sebastião, movido por justíssimos respeitos, deliberou que a ilha de São Miguel, apartada da assistência do prelado, tivesse um eminente e grave homem que, com zelo de justiça, ministrasse o eclesiástico governo. Logo o insulano bispo das Terceiras, D. Gaspar de Faria, por fama que dele teve e estimulado por el-Rei, lhe escreveu viesse possuir o cargo. Negócio era de muita importância, honroso e soberano, se os desegnos de seu intento tiveram os limites postos em fins arrazoados. Acudiram por sua parte os lentes das Escolas, e, quase de comum sentimento, acudiram os ouvintes. Respondeu que aceitar o mando seria interromper o felice curso de seus estudos; acabados eles, faria Nosso Senhor o que fosse mais servido, e o grave entendimento de seu pai lhe dispusesse.

Levado de maior ímpeto de fervor, procurava nestes anos alcançar, por meio do seu amado príncipe São Pedro, despacho de sua salvação, solicitado (sic) com lágrimas o ajudasse conhecer que ordem teria de viver que fosse accepta nos olhos do amor divino. Nestes pensamentos empregava o restante de seus estudos; nestas inteligências ocupava as horas livres do cansado ócio literário. E, como de natureza tivesse aborrecimento grande a vícios profanos seculares, no interior sentia um ignícolo (sic) e devota inclinação do hábito de São Pedro. Entradas as férias (tempo que cessam as escolas e os estudantes, livres do contínuo e áspero jugo das lições, recreiam os ânimos cansados em ocupações honestas), veio a Lisboa visitar D. Luís Coutinho, seu parente, que por morte de D. Francisco Coutinho, seu pai, sucedera no estado da casa e do morgado. Este senhor era um dos mais abalizados mancebos de seu tempo, no brio da pessoa, na cortesania do paço, no conhecimento de latim e matemáticas, que aprendera, na ilustreza do sangue, em todo o Reino principal.

Ambos conferiam e comunicavam seu intento. D. Luís, medindo por vara de prudência humana o valor e crédito de sua pessoa, afirma estar mais à vista da sua nobreza e letras um singular despacho do Desembargo, e, após este, o do Paço, mais altos e subidos fins que podem dar as letras. Facilitava com grande número de senhores que naquele tempo, de sua geração, na corte residia: o Conde de Sortelha, guarda-mor de el-Rei, o Regedor, com tantos filhos, o Barão de Alvito, Duarte Lemos, senhor de Trofa, e outros muitos, que da parte de seu pai o conheciam por parente; e quanto, por via da Ecclesia, primeiro correriam alguns anos que pudesse subir ao alto cume de um bom despacho, incertas esperanças vagarosas, e, entanto, na residência de uma abadia passar vida solitário; probabilidade tinham estas razões e quase convenciam, incerto, no escolher; muitas vezes repugnava antepor o mundano estado, perigoso a aquietação santa do divino bem; e, mal firme, escreveu a seu pai que, pois lhe tocava a resolução do caso, determinasse em breve qual ordem seguiria.

Acabadas as férias, tornou a Coimbra prosseguir o tempo dos estudos, e, com a meditação dos livros, foram nele resfriando as duras lembranças que lhe aconselharam que não fosse clérigo. Deixando tudo nas mãos de Deus, ante quem fervoradas lágrimas de bom desejo alcançam sempre singular remédio, em breve espaço de tempo, das Ilhas lhe deram cartas de seu pai, nas quais o persuadia e brandamente aconselhava que fosse sacerdote, dizendo mandasse logo do ordinário de Coimbra informação da vida, costumes, letras, para lhe poder mandar as reverendas. Resoluto neste parecer, mandou as mais honrosas cláusulas de abonação, que em outras, da mesma sorte, se acham de pessoas principalíssimas; contestes os lentes na suficiência dos estudos, disseram maravilhas, verdade por tantos anos conhecida.

Presentadas que foram ao prelado, com altíssimo espanto ficou vendo tão grande cópia de virtudes a tanta multidão de letras vinculada. Temeroso que, no Reino, os que assistem no governo do Estado lançassem dele mão, tratou com seu pai o mandasse vir, e com eficácia de palavras o queria quase convencer, dizendo que com trazer o filho a suas ilhas se segurava da contínua inquietação de o ter ausente e lograria por espaço de seus dias a sua desejada presença em amorosa paz; e os despachos do Reino eram tais, segundo ele sabia, que os passou tardios e vagarosos de alcançar, e, por fim, perdidas esperanças de nunca mais o ver, ficava em perpétua dor e saudade.

Miguel de Figueiredo, um dos entendidos homens de nosso tempo, respondeu que não parecia razão de o divertir do certo caminho que levava, e em que sua suficiência o pusera, para vir morar as ilhas, honesta sepultura de fidalgos; que no Reino havia e se achavam bastantes prémios a quaisquer virtudes; e que seu irmão, António Lemos, prior de Recardães, pretendia renunciar nele o priorado, que em rendimentos excedia com grandíssima vantagem quanto as ilhas lhe podiam dar, havendo muita cópia de parentes, a cujo parecer o remetera, que aprovaram esta opinião. Desenganado o bispo, determina por outra via buscar meio com que forçado viesse ter às ilhas, dando-lhe licença de tomar no Reino ordens de Epístola e Evangelho, reservando as de missa para si, com desculpa de querer a honra de as dar de sua mão.

Enquanto passavam nas Terceiras estas coisas, acabaram em Coimbra os dois anos de continuar as lições de Leis e, com a licença das ordens que lhe chegou das ilhas, partiu na volta do Porto Alegre tomar as de Epístola do bispo D. André de Noronha, com altíssima devação e reverência de sua vontade própria os votos acceptando, que as sacras tem anexas de pureza e castidade, que perfetissimamente guarda de sua mocidade.

Tornou a Coimbra dar o desejado fim a seus estudos e fez o último acto de aprovação, derradeiro nos trabalhos das Escolas. Espantosa foi a grandeza dele, que por muitos tempos retratado na memória dos ouvintes andou posto. Acabada a obrigação dos cursos e acabados de trilhar os bancos dos Gerais, na Universidade não havia que fazer. E por não querer seguir Escolas, nem perigosas esperanças de pretender cadeiras, com grande mágoa dos estudantes e saudade do apartamento deles, se veio a Lisboa com intento de requerer despacho.

Arribada achou a armada que vai esperar as naus da Índia na derrota das Terceiras; parece desejosa de o levar em si, na qual juntamente arribaram dois seus parentes, que, findos os negócios do Reino, passavam ao descanso de suas casas. Desejosos estes fidalgos de o levar às ilhas, contenderam com as melhores e urgentes palavras que puderam de o persuadir que com eles embarcasse, propondo a cómoda passage (sic) da segura armada, o fácil e brando tornar nela, a deleitosa vista de seus pais e seus irmãos, da sua doce e desejada Pátria, e de todas as mais ilhas, ocupadas nas esperanças de o poder ver. Acrescentavam que, nesta pressurosa viagem, de caminho não interrompia o tardio curso do despacho; antes, recreiado com a suave vista dos seus domésticos, poderia facilitar o grave peso do requerer, e que parecia indigno de quem era tão amoroso e brando, ausente por tantos anos de seus pais, perder a oferecida ocasião de os ir ver, e que, havidos os despachos que esperava, ficaria, porventura, excluído da acomodada conjunção de se embarcar. Movido destas aparências de razões, deu conta a seus parentes que faria; aconselhado por eles que se fosse, logo no mesmo dia embarcou.

Guiaram prósperos ventos, que cursaram, aos levantados mares das Terceiras os nossos armados galeões; desembarcado, de São Miguel em Vila Franca, passados poucos dias de visitas, foi a Santa Maria ver seus pais.

Chegando-se as têmporas de São Mateus, nas quais determinava tomar ordens de Evangelho, passou com este desígnio à Terceira, onde residia o bispo, que o esperava, e agradecer-lhe de o escolher, do número de alguns, no importante cargo de São Miguel, e justificar-se de o não aceitar, movido do parecer de seus parentes, de cuja opinião, por mandado de seu pai, se governava, e por haver muito tempo que intendia esperarem na corte o desejado fim de seus estudos, querendo-se Sua Alteza servir dele; e, posto que, forçado, não pudesse satisfazer em todo a vontade de Sua Senhoria, ficava na obrigação e cargo da mercê que lhe fizera, com tanto amor o eleger na mais iminente (sic) coisa que as ilhas davam, o que, cognoscendo, serviria da vida em qualquer estado que o tempo lho ordenasse.

Muitos eram os conceptos que este prelado tinha da pessoa deste senhor, muito compreendera das relações que vira, muito levou a fama descobridora às orelhas de todas aquelas ilhas; muito mais, sem comparação, se cognecia (sic) de prudência e de valor, quando com ele particularmente se tratava; e foi julgado, do gravíssimo juízo deste bispo, meritíssimo da honra que agora tem. E, com as ordens de Epístola, o fez prior de uma das principais paróquias da Ponta Delgada, em São Miguel, colegiada de suficiente número de benefícios, e o assinou por administrador do eclesiástico foro em toda a ilha. O que ele, importunado de seus domésticos, aceitou, quase convencido do muito amor com que lho pediram.

Mostrou o glorioso Príncipe ser de sua mão feita esta eleição, e a do sagrado nome de São Pedro se chama a mesma freguesia, a fim de na devação afervorado, pudesse por seu meio alcançar outros diferentes títulos de grandeza. Um ano a teve o bispo sem prover, esperando deste senhor a desejada vinda.

Aceitado o cargo, se partiu na volta de São Miguel; chegando no solene dia do miraculoso São Francisco, foi com muito alvoroço recebido e de todos os principais fidalgos visitado, parentes que, da parte de sua mãe, na ilha moram; passados os dias de cumprimentos, ocupado no governo que aceitou, com suma verdade ministrou justiça, reprimiu dos vícios a semente, pacificou os nascidos ódios, castigou delitos, introduziu nos danados ânimos virtudes e reformou a ilha em um novo estado de viver, que, sem ficarem culpas sem castigo, ficavam todos devendo o brando modo de castigar.

Tem este senhor, com outras singularíssimas virtudes de que é dotado — para governo e mando de coisas altas (particular e raríssimo dom da Natureza), não se aquietar a quaisquer razões, inda que prováveis pareçam e aparentes, até que o claro lume da verdade lhe ilustre com seus raios o entendimento, que logo por ele é conhecida.

Ocupado nestas obras boas, serviu-se Deus levar ao descanso da Glória a ditosa alma do bispo D. Gaspar, com grandíssima mágoa e sentimento de todo povo. Ficaram as ilhas sem pastor, e o senhor D. Luís com ordens de Epístola, sem mais graus. Forçado foi tornar ao Reino, e dispostas em concerto suas coisas, havido cómoda passage, se embarcou.

Chegado a salvamento, tomou as sacras ordens que lhe faltavam, e já feito sacerdote, de conselho de seus parentes, falou a el-Rei D. Sebastião, relatando a nobreza de sua pessoa, a dependência dos merecimentos de seus avós, a comum fama de suas letras, os grandes serviços que fizera no administrar do cargo que, de seu mandado, tivera no governo de São Miguel.

El-Rei, que primeiro dele tinha alguns conceptos, com muito amor o agasalhou, mostras grandes de lhe fazer mercê, e o remeteu ao Doctor Paulo Afonso, por cuja mão corriam os despachos, e mandou que desse, segundo ordem destes Reinos, os papéis. Muito folgou o Doctor de o conhecer e, com a natural prudência de que foi dotado, intendeu a correspondência da pessoa a já sabida informação, que do tempo das Escolas se tomara.

Avantajada, depois, foi, e de muito maior crédito e valia, vendo tantos e tão principais senhores, seus parentes, que por ele intercediam. E por o desembargo, que na petição pedia, no igualar ao valor e crédito de quem era, o despachou por capelão-fidalgo com a melhor e mais honrosa moradia que se costuma a dar aos nobles que na Capela servem, enquanto se não oferecia coisa que conformasse com seus quilates.

Levado (havido este despacho) de altos desejos de ver seu tio e do amor e criação que teve nas Escolas, partiu, forçado destas coisas, caminho de Coimbra; com muito alvoroço entrou no antigo domicílio das boas letras, nos Gerais, em que bebeu o leite dos sagrados cânones, na honesta conversação dos estudantes, nas domésticas paredes que, atentas, sem rumor, ouviram as blandas (sic) vozes de quando estudava.

Passados em Coimbra alguns dias, foi a Recardães a ver seu tio, claríssima pessoa, por vida e por costumes, a cuja casa outras vezes fora recrear o cansado corpo de frequentar Escolas e satisfazer a obrigação do parentesco. Em santa e suave companhia passaram os dias que foram juntos; do Céu eram os colóquios e as vontades, quando, por via de parentes, teve da corte aviso que o licenciado Marcos Teixeira, mandado por el-Rei, tirava dele secreta e sumária informação de testemunhas graves; que não era tempo andar ausente do despacho, que, vistos estes termos, estava perto de se concluir.

Despedido com lágrimas do tio, segundo requeria o negócio apressado se veio a Lisboa.

Falou a Marcos Teixeira, que com particular contentamento o avisou que se visse com Paulo Afonso, em cuja mão ficaram seus papéis, e que neles acharia um bom despacho. Procediam estas informações, tiradas de um oculto desegno de el-Rei, disposto a mandar às Índias dois inquisidores ministrar o cargo do Santo Ofício, e os negócios terem expedição melhor.

Entre alguns que de todo Reino igualaram ao preso, de tão supremo mando com multidão de virtudes acquiridas, foi este senhor nomeado por um deles, e logo no Conselho assentado que fosse o presidente; ordenadas estas coisas, restava só saber ao certo de sua vontade, de que a conclusão da ida dependia. Quando se viram o doctor e ele, lhe perguntou se passaria o mar com despacho muito avantajado do que pretendia, em honra e dignidade. Respondeu que, perto, se fosse acomodada parte, sim; em remota, oferecida a perigos de uma comprida e vagarosa viagem, se não atreveria, por indisposto e subjecto a uns erráticos fervores de cólera, que, algumas vezes, o molestam, e das devidas saudades de seus pais, que não sofriam tão longo apartamento.

Pesaroso ficou Paulo Afonso de não aceitar tão eminente e supremo cargo, que se dá por último fim de bastantíssimos serviços; e lhe disse que as inconstâncias do incerto mar mostravam tanto vigor e força nas distâncias que demoravam perto quanto nas afastadas partes da esfera, e que a providência dos homens acudiria com maiores remédios a maiores riscos, e, nas esperanças de um bom despacho, as pessoas de sua qualidade se aventuravam a contínuos trabalhos para ter descanso, e ele, levando o melhor que se podia dar a um homem fidalgo (tendo, no princípio do requerer, o que muitos não alcançam no cabo de grandes anos), parecia ir contra o intento de quem era, e em certo modo retardar o ditoso curso de seu merecimento e resfriar a vontade do Príncipe, desejoso de o levantar a maior prémio.

Quanto ao insulto dos humores que sentia, não ocasionavam navegar a quem fosse gasalhado na melhor câmara da mais segura nau, e que, no seu risonho e alegre aspecto, não se viam alterações mudadas, que denunciassem internos males, antes de uma complexão (sic) digna de quem era. Não bastaram razões ao remover da dura e deliberada opinião, antes assentou de todo de se não embarcar.

Acabados os desegnos da missão e passadas algumas intercadências de tempo, posto que breves, concluíram no Conselho do Estado fosse provido no número dos inquisidores que residem no Santo Ofício destes Reinos, pelo que se escreveu logo ao Cardeal D. Henrique, maior inquisidor nestes Reinos, sobre ele e suas partes; levou este recado o secretário do cargo ao Cardeal, a Évora, detendo-se por alguns dias a resposta, por estar o Infante de caminho, a se ver com Sua Alteza, que o esperava.

Fizeram-se neste meio tempo prestes os navios da armada, que vão às ilhas esperar as naus, em que ele, feito sacerdote, pretendia ir visitar suas ovelhas, e com devotos sacrifícios honrar os piedosos sepulcros de seus maiores. Desejava isto muito; deviam de ser maiores as esperanças dos seus, nas ilhas, de o ver. Tardava a resposta de Évora; na armada havia grande pressa de partir. Metido no meio de dois extremos: a vagarosa vinda do Cardeal e o vento próspero que os convidava. O despachador dizia estar tudo concluído na vinda do Infante, que por momentos se esperava. O tempo tinha as vergas de alto e a gente dentro.

Assentaram que fosse, visto a determinação que mostrava ter de chegar às ilhas, compor necessárias coisas que dizia ficarem lá em aberto; mas, querendo-se Sua Alteza em suficiente cargo de sua pessoa servir dele, logo tornaria. Avindo deste modo, mandou embarcar os pagens e o fato nos navios que estavam para dar à vela.

Sabido dos consultores do Reino que partia e o bispado sede-vacante ficar só, lhe mandaram provisões de que el-Rei era contente da sua sobreintendência em São Miguel e se haveria neste governo, que muito importava por servido, com particular memória de lhe fazer mercê.

Embarcado, as velas quase dadas, pedindo todos a Deus viagem, chegou o Cardeal aquele dia, à tarde, a Lisboa; logo amanhecendo, deram aviso que se não embarcasse, e o acharam embarcado; ele, que todas as suas coisas primeiro conferia, que se deliberasse na resolução do apressado responder; consultado Braz Soares, Capitão de Santa Maria, seu parente, que em sua companhia embarcara, respondeu que, oprimido das angústias do tempo, não era já possíbil tornar a terra, nem desembarcar o fato, recolhido em lugar seguro; mas que tornar seria breve, acabando dar ordem a certas coisas que muito importavam. Ordenava Deus isto a fim de o fazer bispo, que em tantos cargos oferecidos em nenhum quietou, nem aceitar quis, posto que grandes e de singular valor; antes, por ele rejeitados, ficaram sem efeito.

Chegado a Terceira, recebido com sumo contentamento dos insulanos, propôs executar os cargos que levava, com tanta inteireza e verdade de justiça, que mudaram muitos o abuso de seguir os vícios no estado novo de viver quieto.

Enquanto gastava o tempo na reformação dos costumes, foi no Reino provido de (sic) D. Pedro de Castilho por bispo das Terceiras, fidalgo montanhês, de muita erudição e santidade, o qual, depois de poucos dias, vindo ao bispado, morreu o adeão que na Sé servia. Sabia este ordinário quanto no Reino montavam a fama e nobreza deste senhor e o conhecimento das Escolas, em que ambos foram contemporâneos; logo o nomeou na dignidade, avisando el-Rei da promoção; mandou a Roma buscar as letras e, vindas, tomou posse com altíssima satisfação do povo.

Passados neste meio tempo alguns dias, quis D. Pedro, por obrigação do cargo, visitar em pessoa as outras ilhas do bispado, e o levou consigo por visitador, mostrando confiar tanto no uso e entendimento do seu governo, que por igual com ele reapartia o peso de visitar.

Tanto que partiram da Terceira, o mal entendido povo (infelice e abominábil caso), de falsas aparências enganando, errava no conhecimento da verdade com infame parecer, julgando senhor daquele estado quem, de ordinária via de justiça, nele não tinha alguma parte; e cegos na sorte de escolher, de modo confundiram da mísera república a união, que, excluído o verdadeiro jugo do seu Rei, em triste rebelião ficaram postos.

Tomaram estas miseráveis novas do alevantamento das Terceiras ao bispo e a este senhor na sua mesma pátria. Ambos tiveram profundíssimas lágrimas de sentimento; choravam ambos à comum lástima de tanto povo, ambos se doíam de ver uma das mais frequentadas ilhas que o mar inclui, residência do bispado, universal porto do mundo todo, deliberada e posta em se perder.

Logo se tornaram a São Miguel, acomodada parte de acudir aos públicos desatinos do incerto vulgo e conservar na verdadeira e leal opinião aquela, maior no sítio e rendimentos. Em chegando, o fez o bispo vicário (sic) geral e provisor, para com dobradas forças resistir aos iminentes perigos que ameaçavam.

Entanto, os discordes ânimos da Terceira, passados os limites da razão, traziam no mar navios a roubar, metiam na pátria estrangeiros, pagavam à sua custa guarnições, tinham contínua ordem de vigias, fortificavam as praias, impossibilitavam passos que podiam dar entrada aos imigos e, com horrenda confusão de pareceres, ardiam em confusos pareceres.

Juntaram a tantos males maiores outros, roubando os cansados navios que, oprimidos do longo fastio da viagem, demandavam com desejo aquele porto, em refeição e prémio do trabalho.

Vistos tão grandes insultos do infelice gado, procuraram os pastores, por meio de contínuas orações, aplacar a ira do Omnipotente irado e, por humanos meios, restaurar na perdida lealdade os errados entendimentos do miserábil povo. Tentados em vão quaisquer repairos, aplicados remédios sem proveito, nunca fizeram alto em seu desegno (sic); antes da bebida peçonha alienados, tratavam as duras armas em que tinham postas falsas aparências de vitória.

Desconfiados de neles haver emenda, o ordinário bispo avisou que se queria depressa embarcar; havida do Reino a licença, mandaram que ficasse este senhor com o mando do bispado, que por Roma lhe queriam confirmar.

E, esperando-se tempo para ir, e segura embarcação em que passasse, partiu de França D. António, com ajuda de perdidos luteranos, a fortificar de novo aquelas ilhas, que tomaram sua voz e defendiam o injusto nome que lhe tinham dado; e trazia razoada cópia de soldados.

Vindo a São Miguel, achou nele pouco fruto, por causa destes senhores o terem conservado na devida obediência.

Sabidas estas coisas de Sua Majestade, mandou o Marquês de Santa Cruz acudisse aos insultos daquelas ilhas e desbaratasse o imigo, ousando esperar, que lá andava. Satisfez o Marquês a este cargo e, com poder e força de menos velas, desbaratou a armada populosa de França, ficando a maior parte dela nas mãos do vencedor.

Domesticadas em parte estas coisas, o bispo se embarcou. Quisera o senhor D. Luís acompanhá-lo, mas, advertido que a um deles convinha ficar com a pesada carga do governo, se aquietou, e o bispo, delegando nele o poder que tinha, o deixou por universal senhor do eclesiástico foro.

Chegado D. Pedro a Lisboa, deu conta a el-Rei do estado em que ficavam as alterações das ilhas, dos artifícios que ele e este senhor tiveram para abrandar a obstinada dureza dos alevantados, quantos foram os trabalhos que ambos padeceram, quantas vezes arriscaram as vidas na concórdia de tão grandes males; e dizia este prelado que na prudente indústria deste senhor se salvaram muitos do miserábil fogo de rebelião; contentíssimo ficou Sua Majestade de o saber, e entender que na sua mão ficavam as rédeas do bispado.

Enquanto ele nas ilhas se ocupava sacrificar a vida no amor de el-Rei, foi no Reino levantado D. Pedro dos trabalhos passados ao prémio de Leiria, e dada no Conselho ordem que por Roma fosse o senhor D. Luís confirmado na administração das Terceiras.

Enquanto estas coisas corriam desta sorte, não bastou a horrenda vista de tantas mortes, nem o mísero destroço da vencida armada, aos mal intendidos insulanos a renderem as armas na clemência do verdadeiro príncipe; antes, com dobrado ódio da obstinação primeira, rejeitaram os sãos conselhos que deste senhor lhe foram dados e de novo tornaram refazer à perda da rota que tiveram.

Durou um ano inteiro este abominável erro sem ter remédio, até que Sua Majestade, vendo que se tentavam em vão tantos remédios, determinou com rigorosa justiça da espada castigar os principais autores da discórdia e mandou ao mesmo Marquês de Santa Cruz com uma poderosa armada que os vencesse. Chegou primeiro o Marquês a São Miguel, submetida ao mando de Sua Majestade, a tomar inteligência do que passava, e recrear a gente dos trabalhos que tiveram na viagem, e informar-se de alguns ocultos desegnos, se os havia, que fizesse a efeito do negócio.

Assentou convir ao serviço de Sua Majestade ficar o senhor D. Luís em S. Miguel, enquanto a sentença do rigoroso Marte definia a qual das partes convinha ter vitória. Necessitado de ficar, proveu em seu lugar por ouvidor eclesiástico da cidade de Angra ao padre Luís A’lvares de Maiorga, cónego que, então, era da mesma Sé, pessoa de confiança e crédito, digno do cargo que levava.

Tomada por força de armas a Terceira, e vencidos os que nunca se deixaram submeter à eficacíssima força da razão, ficando postos no rigor da guerra e debaixo dos miseráveis insultos dos soldados, sabida a contentíssima nova da vitória, rendidas primeiro graças do sucesso, este senhor se embarcou na volta de Angra. Ao tempo de chegar, achou o Marquês já embarcado; grandes foram as alegrias que tiveram e no pouco espaço que se viram: a muitos fez conceder as vidas no último perigo de chegar a morte, a outros as fazendas, por direito da guerra já perdidas. Tiveram outros, por sua intercessão, os merecidos prémios de sua lealdade. No que tocava ao eclesiástico foro de seu governo, de maneira se houve no executar justiça que, sem ficar algum sem ter castigo, nenhum se agravou da dura pena. A excelência destas obras nos duros pectos dos capitães espanhóis fizeram impressão.

Tanto que a vencedora armada, com próspero sucesso, chegou à desejada praia de Lisboa, nos principais senhores correu logo a veloce fama do que este senhor fizera no serviço de Sua Majestade, e com quanta justiça e santidade regera o canónico mando de sete ilhas, e na singular ordem que inventara em confirmar o povo, ainda mal são da passada chaga, num firme pressuposto de nunca mais cair. Todos prognosticaram os prémios que de tantos serviços se esperavam; o Cardeal , quase vencido do que até os mesmos soldados publicavam das virtudes e saber deste senhor, particularmente o amava, e todos os mais senhores, por cujo entendimento os negócios do Reino se governa, sabidas suas coisas, eram muito seus amigos.

Nos primeiros navios que, depois de reduzida, do Reino foram à Terceira, por cartas do bispo de Leiria e pessoas nobres e parentes, foi deles avisado quanto nos olhos de Sua Majestade eram formosos os serviços que lhe havia feitos e que em breve tempo se veria, no prémio que esperavam, a certeza deles.

Vagara neste meio tempo o bispado de Cepta; logo se suspeitou que o queriam prover nele; mas, sucedendo a vagatura do das ilhas da Madeira e Porto Santo, tão formoso no mundo, o proveu nele, que fora, havia poucos anos, arcebispado de todo o marítimo domínio que os nossos reinos têm em tão remotas partes espalhado. Promulgada a eleição em Março de oitenta e cinco, Sua Majestade o avisou, com muitas palavras de louvor, viesse dar ordem a suas letras.

Chegadas as novas às Terceiras, foram dos insulanos festejadas com sumo alvoroço e estranho gozo; logo a palreira fama, discorrendo, levou por todas as ilhas à comum alegria do bispado a honra universal que lhe era feita, ser de todas elas o primeiro bispo. Misturavam alguns com os plazeres as saudosas lembranças do passado, sincero amor com que os tratara no tempo que com eles residira.

 Havida conjunção de vir à Corte, no mês de Augusto se embarcou em uma armada que da Mina vinha.

Chegado a salvamento, foi recebido do Príncipe Cardeal e mais senhores com altíssimo gasalhado e muitas honras, e de parte de Sua Majestade lhe disseram a boa informação que dele tinha, e quanto foram aceitos seus serviços, e que muita parte deles, excedendo o modo da mercê, ficavam esperando maior prémio. Os que assistem no governo do Estado o recolheram com assaz contentamento; os parentes com infinito amor e gasalhado. Só D. Luís Coutinho não viu este desejado gosto, da rigorosa morte oprimido nos funestos campos do mal fortunado Alcácer.

Puderam-se com razão engrandecer as verdadeiras provas, que em todas ilhas e no Reino se tiraram da antiga ilustre descendência dos seus maiores, por tantas fidedignas testemunhas aprovada, de inumeráveis anos a esta parte virem seus avós sem nota que macular pudesse a conhecida nobreza desta geração, antes perpetuada no valor e honra; nestes Reinos adquiriram títulos de grandes, e, porventura, o que não creio de malícia ou inveja alguém cuidar, que em parte sobrepujam estes louvores da verdade, que se pede na História, de menos resplendor do que escreveu. Busque na Casa do Tombo originais e as verdadeiras fontes dos instrumentos e neles achará o lume certo desta claridade; e, se ainda duvidar, não faz acaso, que da formosura do Febo não abate a miserável vista do animal da noite que, enquanto o dia dura, da luz foge, contente com as trevas do ar pardo. Atónitos ficaram os que as viram: do ilustre tronco de seus avós; da muita erudição de suas letras, de tão vários exames apurada; do saber e entendimento no governo dos anos de seu cargo.

Estas e outras muitas coisas que a Católica Majestade entendia e a Universidade toda, lentes e doctores, com grandíssimo aplauso comprobaram, escreveu ao Sumo Pontífice, quando na prelacia do Funchal o presentou. E nosso Santíssimo Senhor, nas letras em que o declarara por bispo destas ilhas, diz que o levanta a tão supremo lugar de santidade, movido da informação que dele tem, de muita nobreza e fidalguia, e papéis fidedignos destes reinos, nobreza confirmada por testemunho dos dois monarcas que sobre si sustentam o grave peso da religião cristã.

Em Outubro seguinte, partiu para Roma o correio que levou estes recados. A cinco de Março do ano de oitenta e seis chegaram as bulas a Lisboa. No dia seguinte, que foi de Cinza, por ordem do secretário Lopo Soares, lhe foram mandadas as desejadas novas, estando aos ofícios na Ecclésia de Santa Catarina de Monte Sinai. Quis Deus mostrar quanto o agradara ser electo, que com as lembranças que se costumam dar na criação dos Papas, da velocidade da vida, da glória que em fumo se desfaz, de pressurosa passage (sic) a dar conta, no dia em que a nossa Sagrada Mãe celebra com cinza estas memórias lhe foram as letras dadas do bispado, e de licença do Príncipe Cardeal, no último de Março, domingo que fora da Rosa, ele que no suave cheiro da virtude havia de ser outra, com aplauso de toda a Corte, no venerábil mosteiro da Trindade, foi ungido e consagrado.

Muitas foram para dizer, indignas de tão pequeno âmbito de lugar, as coisas deste dia: a majestade do que passou, as sacras cerimónias do ofício, o profundíssimo pego de devação com que foi feito, o quase infinito concurso do mundo abreviado de Lisboa. Alguns, tratando a vida deste senhor na viva voz de seus escritos, dirão estas grandezas por extenso, levando a memória do que passou ao resplandecente Céu eternizada. No soleníssimo acto, presidiu D. Manuel de Seabra, bispo que foi de Cepta e agora o é da Capela, assistentes o novo de Cepta, D. Diogo Correia, e o bispo dezelandês que, ausente do abominábil perigo de Inglaterra, vive em nossos Reinos em paz católica.

Nem só em os divinos ofícios se mostrou a majestade do dia em que foi sagrado; mas, acabados eles, no sumptuoso e magnífico banquete, nas mesas abundantíssimas de pescados, na ordem e aparato que se teve, passou a diversidade de iguarias muito avante de quaisquer desejos, e já, por fim, mostravam as que vinham quanto a pródiga gula inventou.

Acudiu a nossa ilha ao prazer comum com as delícias celebradas de seus mimos, que a fazem em toda a parte nomeada; e com diferente cópia de licores mitigou a sede dos convidados.

Excedia o número de todos a cópia de cento e cinquenta pessoas, nobres e fidalgos, de obrigação de parentesco, D. Hierónimo Coutinho, D. Hierónimo Lobo, D. Emanuel de Castro, D. Afonso de Noronha, e alguns outros; os mais consumiu a dura sorte africana nas casas de Sortelha, do Barão , do Regedor . Tiradas as mesas, descansou sua senhoria do trabalho passado. Recolhido, agradeceu ao Sumo Fazedor a cópia das mercês.

 Mandou logo à ilha tomar posse, foram delegados no negócio D. Francisco Henriques, adeão, e o doctor Gonçalo Gomes, mestre-escola, insignes ambos, um no sangue de seus avós, outro na notícia das sagradas letras. A cinco de Maio, domingo em que se cantava o devotíssimo Evangelho Ego sum Pastor bonus (porque tal havia de ser), tomaram posse na presença da nobreza do Funchal, com muito contentamento de todo povo.

Enquanto se aparelhava uma zabra, que se fazia prestes para o trazer à ilha, foi do Cardeal chamado domingo de Ramos, e com muita devação e majestade fez nesse dia o pontifical da Capela. E, logo, quinta-feira da Semana Santa, administrou com muitas lágrimas os Santos Ofícios na Capela. E dia dos Sagrados Príncipes dos Apóstolos teve outro pontifical. Os mais dias, antes de partir, gastou em procurar mercês ao virtuoso clero do Funchal, ou, com mãos abertas, fazer muitas a quem as demandava.

Aparelhada a zabra, embarcado, ficou na corte um geral e altíssimo sentimento, e a todos seus parentes muita saudade. Veio em sua companhia uma nau que navegava ao comércio do Brasil. Não tiveram no mar vista de cossairos, antes alguns, que juntos destes mares andavam, esperando achar presa, um dia primeiro se acolheram, lançados da boa fortuna deste senhor.

Chegou em pouco tempo a sua ilha, a quatro dias contados de Augusto.

Espantosas foram as alegrias com que no Funchal o receberam, dignas de quem era e dignas da nobreza da cidade. Acrescentou muito no aparato destas festas a presença de Tristão Vaz da Veiga, capitão e governador do Estado de Machico, generalíssimo nas ilhas da Madeira e Porto Santo, que, por ilustreza de sangue, invencíbil ânimo, gravíssimos e espantosos feitos nas partes de Ásia e África, é das mais eminentes e principais pessoas de nossos tempos, que, com muito alvoroço embarcado, o foi buscar ao navio, com outros muitos fidalgos que o seguiram, e João Daranda, capitão do Presídio, foi com ele.

Trazido a terra, na borda de água o esperava o reverendíssimo Cabido e o mais clero do Funchal, os juízes e vereadores, com o resplendor da fidalguia desta ilha; junto deles a companhia de soldados, com infinita multidão de povo de toda sorte. A salva de artilharia que disparou a fortaleza, a roda viva de arcabuzes e mosquetes, o repicar de sinos, danças, festas, invenções, as comuns vozes de alegria, por longo espaço dispergidas (sic), soavam em remotas partes.

Trazia o barco, em que veio a terra, as mais nobres pessoas de toda a ilha e as principais dignidades que o foram lá buscar. Posto em terra, de geolhos, diante da sacra veneração da Cruz, que com gravíssima pompa lhe foi apresentada, acabada, se recolheu em um pálio de brocado, e com grandíssima majestade o levaram ao trono da sua santa Sé, com as costumadas e devidas cerimónias. Prostrado diante do diviníssimo Sacramento, deu imortais graças ao Senhor de o trazer de tantos perigos a seguro e tranquilo porto de descanso e do estranho contentamento, que em todos via, de o terem por prelado e por senhor.

O que mais nesta soleníssima entrada aconteceu, quanto com sua vinda reformou, a brandura e santidade com que procede, as contínuas esmolas que vai dando, as excelentíssimas coisas que tem feitas, o grande e espantoso fruto das pregações, a veemência das palavras, o levar após si os corações, os institutos e leis de reformar, a singular ordem e assento de proceder — fica tudo reservado para mais subida cópia de palavras e autores graves, de maior concepto.

DO CONTRAPONTO QUE FEZ O INSIGNE DOUTOR DANIEL DA COSTA SOBRE A VIDA, COSTUMES E GRANDEZA DE D. LUÍS DE FIGUEIREDO DE LEMOS, BISPO DO FUNCHAL

Merecem as singularíssimas virtudes do senhor D. Luís de Figueiredo ficar em perpétua memória dos que vierem, contra o duro fado do esquecimento, por benefício e obra das boas letras; convida a ilustre cópia do subjecto os altos entendimentos apurados gastar na gravidade da História as suas devidas horas de compor. Movido do resplendor com que se vêem, quis entrar no conto dos que notam com uma linha breve o rio Nilo e quase com um ponto a grande Roma. Neste sumário, que agora lhe presento, direi do nobilíssimo tronco de que procede, da pátria que deu princípio ao nascimento do imortal nome que em as letras tem, dos abalizados serviços a Sua Majestade feitos, do trono e dignidade em que reside, se minhas forças bastarem subir tanto, que venha conseguir o que prometo.

Promovido D. Hierónimo Barreto de ordinário do Funchal à grave prelacia dos Algarves, eram presentes na memória da Católica Majestade os serviços, que nas ilhas dos Açores, metido este senhor no meio das alterações passadas, arriscando pessoa e vida, lhe fizera, e o nome de tantas virtudes e letras, de informações tiradas por ordem dos antepassados Reis, que nos secretos anais do Tombo se guardavam. Respeitadas estas coisas que nele se juntaram, o presentou no bispado das ilhas da Madeira e Porto Santo, deliberado de o levantar, havendo conjunção, a maiores prémios.

Na ilha de Santa Maria, posta no Mar Oceano, no fertilíssimo quinto clima, que no número dos mais de abundância tem o principado, sita na altura do cabo de São Vicente, em trinta e sete graus, nasceu este senhor; certo, pequena na circunferência que a rodeia, grande na honra de ser primeira que lhes ministrou o vital alento com que respiramos. Foram seus progenitores Miguel de Figueiredo de Lemos, fidalgo muito principal dos Figueiredos, que por cominuação (sic) de tempos foram vice-reis, bispos e grandes destes reinos, cuja memória em os sucessores do nome anda com alguma parte do valor passado, e dos Lemos, ilustríssima família de Galiza, que, por socorro vinda à conquista de Portugal, no esforço das armas adquiriu honrosos títulos de grandeza; o qual senhor, deixada sua pátria, trazia requerimento de quem era, e com eles andava com a corte. E por causa de chegado parentesco com D. Filipa de Vilhena, mulher de D. Francisco Coutinho, comendador de Santa Maria, com negócios de muita importância, requerido por eles veio à ilha.

Contente do alegre sítio da formosa terra, movido do singularíssimo parecer e dotes da senhora Inês Nunes Velha, da ilustre descendência dos Costas, que dos Infantes de Aragão trazem o antiquíssimo solar de sua fidalguia, e dos Capitães, que do tempo que se descobriu a ilha, governam e mandam o estado dela, por matrimónio juntos vivem em glória da geração que têm. Esta morosa e eficaz razão obrigou este senhor, pospostos do Reino os despachos e pretensões que tinha, viver em deleitosa paz naquela ilha, sem prosseguir o primeiro intento de servir el-Rei, nem andar na sua corte. Esteve Inês Nunes sem trabalhos de emprenhar os primeiros anos do casamento; devia ser poderosa causa natural que o impedisse, ou que as grandes e raras coisas costumam esperar acomodado tempo para vir ao mundo. Temerosas algumas suas parentas que com a idade corresse juntamente a ocasião do parto, respondia, movida de incógnita e não sabida influência, esperar na misericórdia do Sumo Deus ter filhos, e no número destes um que havia de ser bispo, verdadeiro pronóstico do que agora vemos.

Foi primogénito; veio à luz deste nosso miserável mundo na era do Senhor de mil e quinhentos e quarenta e quatro, a vinte e um de Agosto, celebradíssimo dia de Santo Anastácio, e, por nova regeneração no grémio da Igreja, em o mesmo que aquele grande espantoso bispo Santo Agostinho, com felicíssima vitória do terreno mundo, entrou nos paços da celeste glória. O templo em que recebeu a sagrada água do baptismo se chama Nossa Senhora da Assunção; do mesmo nome é a metropolitana do Funchal em que agora governa a primeira prelacia; são correspondências, a nós secretas, de espantosa e rara maravilha a quem com ânimo curioso as ponderar.

Os primeiros anos de sua tenra idade foram regulados de uma natural modéstia e discrição.

E no tempo que começam outros quase conhecer os pais, deixados por ele os risos da inconstante meninice, entrou no rigor do mestre e da escola; com pronta viveza discorrendo a veracidade das letras, em poucos anos aprendeu a ler, passando a maravilhosa invenção do escrever, poderoso e único remédio contra a miserável perda da memória dos mal lembrados homens. De doze anos começou dar obra aos ásperos preceitos da Gramática, na doutrina de um entendido mestre, que com muito louvor aos filhos dos nobres lia as humanas letras, acquirido (sic) quanto dele se podia alcançar, entender, falar e escrever latim.

Antepondo seu pai as certas esperanças que mostrava ao tenro e vivo amor com que o queria, o mandou a Lisboa ao Colégio de Santo Antão, a estudar Retórica e Grego, ornamento e glória da latina língua. Desembarcado nos braços de seus parentes, nos mimos que todos lhe faziam, espantados em tão pequena idade parecerem tantas mostras do que prometia, entrou nas classes, e com incansável zelo da eloquência, passou em poucos meses os mais antigos e graves delas. E no exercício de compor verso e prosa, excedendo com muito louvor a todos, ganhou os melhores lugares e os prémios. Acabados dois anos, julgado no parecer dos padres meretíssimo de qualquer ciência, mandou seu pai que fosse a Coimbra estudar Cânones, presságio da dignidade que havia depois ter. Não bastaram danadas ocasiões daquela imensa cidade de Lisboa a profanar o casto recolhimento de seu peito, antes, avisado com as mostras da perdição que via, realçou em maior altura de virtude. E metido no meio de tantos males, vivia solitário com só Deus e com os livros.

Chegado à mãe das letras, vendo quanto convinha responderem as mais virtudes à nobreza dos parentes que junto de Coimbra possuem seus morgados, no senhorio de Góes, da Trofa, de Besteiros, de Recardães e outras vilas sitas no contorno, vendo-se no teatro do mundo, ausente do grave entendimento de seu pai, regra em a qual sempre vivera, propôs consigo anexar ao respeito de quem era altíssima cópia de virtudes, e, no preceder dos anos que nas escolas teve, correram sempre juntos recolhimento e gravidade a um quase infinito cuidado de tratar os livros. E, para terem melhor ordem estas coisas e alcançar o fim que pretendia, de toda vontade se resignou no singular valor do príncipe S. Pedro, a que de menino teve particular amor e devação (sic) e com muita instância lhe pedia dispusesse sua vida no verdadeiro caminho da salvação. A grave cópia de tantas obras o levantaram ao cume de um supremo nome.

Nem nos limites sós da Universidade discorreu o resplendor de seus louvores; chegou à notícia dos nossos reis e, além do mar, passou às ilhas que chamamos dos Açores. Nas portas dos Gerais, junto aos mestres, nas conferências postas dos ouvintes, no declarar de textos intrincados, no fácil responder aos argumentos se via nele claro a rara subtileza do engenho e quão bem empregara as horas do estudo.

Nunca o pardo ar da noite o achou fora da casa em que pousava, nem a manhã com a claridade o ergueu da preguiçosa cama em que dormia; mas antecipava recolher-se com a casta modéstia do viver honesto, e com a vigilância do estudo defraudava ao sono o limitado tempo. Passados os mais doctos do seu curso, chegou igualar opositores que no dividoso (sic) Marte das cadeiras têm esperança de conseguir vitória.

Correram nestas coisas cinco anos, tempo em que, publicamente, os que o têm cursado mostram por defendidas conclusões ao rigoroso juízo das Escolas quanto por razão dos livros acquiriram, dificultoso acto no parecer de todos, primeiro público exame que se tem, responder aos argumentos dos doctores e condiscípulos, que pretendem de vencer, incerteza da memória que, divertida, de leve ocasião desaparece, lastimosa vergonha do que sustenta. Vencidos todos estes medos, valorosissimamente defendeu os dificultosos passos das graves conclusões; e por todos foi julgado de uma rara habilidade subtilíssima.

Na reputação deste louvor passou um ano. No sexto, teve o segundo acto mais solene: dentro de vinte e quatro horas interpretar um texto por sorte dado no espantoso número de tantos que os sagrados cânones têm, lição de ponto de uma hora inteira na venerada presença das Escolas, assistindo a pessoa do rector, de pronto responder às dúvidas arguidas de seus mestres e outros que procuram cobrar crédito; e, por fim, o duro escrutínio da provação, votos secretos com que os lentes julgam se admitem ao desejado grau o que sustenta. Temor produz a muitos este exame; neste senhor não houve que temer; seguro com o ímpeto e veemência da lição, tirando do sorteado texto as puras e sinceras conclusões, confundiu das outras o miserável erro; desatou o nó dos argumentos, mostrando o claro sentido da verdade. De modo que por meritíssimo lhe concederam os aprovados graus, sem discrepância, com sumo prazer e aplauso dos circunstantes, dando-lhe faculdade de poder, publicamente, expor e ler nas Escolas quaisquer livros dos sagrados cânones. Os seguintes dois anos que restavam do número dos octo que, por instituto, se requerem de pessoal residência nos estudos, todos empregou no geral das leis, da muita conveniência e parentesco que estes dois direitos em si têm: canónico e civil.

No meio tempo que com infinita vigilância trabalhava penetrar o incerto e duvidoso intento dos legistas, el-Rei D. Sebastião, movido por justíssimos respeitos, deliberou que a ilha de São Miguel, apartada da assistência do prelado, tivesse um eminente e grave homem que, com zelo de justiça, ministrasse o eclesiástico governo. Logo o insulano bispo das Terceiras, D. Gaspar de Faria, por fama que dele teve e estimulado por el-Rei, lhe escreveu viesse possuir o cargo. Negócio era de muita importância, honroso e soberano, se os desegnos de seu intento tiveram os limites postos em fins arrazoados. Acudiram por sua parte os lentes das Escolas, e, quase de comum sentimento, acudiram os ouvintes. Respondeu que aceitar o mando seria interromper o felice curso de seus estudos; acabados eles, faria Nosso Senhor o que fosse mais servido, e o grave entendimento de seu pai lhe dispusesse.

Levado de maior ímpeto de fervor, procurava nestes anos alcançar, por meio do seu amado príncipe São Pedro, despacho de sua salvação, solicitado (sic) com lágrimas o ajudasse conhecer que ordem teria de viver que fosse accepta nos olhos do amor divino. Nestes pensamentos empregava o restante de seus estudos; nestas inteligências ocupava as horas livres do cansado ócio literário. E, como de natureza tivesse aborrecimento grande a vícios profanos seculares, no interior sentia um ignícolo (sic) e devota inclinação do hábito de São Pedro. Entradas as férias (tempo que cessam as escolas e os estudantes, livres do contínuo e áspero jugo das lições, recreiam os ânimos cansados em ocupações honestas), veio a Lisboa visitar D. Luís Coutinho, seu parente, que por morte de D. Francisco Coutinho, seu pai, sucedera no estado da casa e do morgado. Este senhor era um dos mais abalizados mancebos de seu tempo, no brio da pessoa, na cortesania do paço, no conhecimento de latim e matemáticas, que aprendera, na ilustreza do sangue, em todo o Reino principal.

Ambos conferiam e comunicavam seu intento. D. Luís, medindo por vara de prudência humana o valor e crédito de sua pessoa, afirma estar mais à vista da sua nobreza e letras um singular despacho do Desembargo, e, após este, o do Paço, mais altos e subidos fins que podem dar as letras. Facilitava com grande número de senhores que naquele tempo, de sua geração, na corte residia: o Conde de Sortelha, guarda-mor de el-Rei, o Regedor, com tantos filhos, o Barão de Alvito, Duarte Lemos, senhor de Trofa, e outros muitos, que da parte de seu pai o conheciam por parente; e quanto, por via da Ecclesia, primeiro correriam alguns anos que pudesse subir ao alto cume de um bom despacho, incertas esperanças vagarosas, e, entanto, na residência de uma abadia passar vida solitário; probabilidade tinham estas razões e quase convenciam, incerto, no escolher; muitas vezes repugnava antepor o mundano estado, perigoso a aquietação santa do divino bem; e, mal firme, escreveu a seu pai que, pois lhe tocava a resolução do caso, determinasse em breve qual ordem seguiria.

Acabadas as férias, tornou a Coimbra prosseguir o tempo dos estudos, e, com a meditação dos livros, foram nele resfriando as duras lembranças que lhe aconselharam que não fosse clérigo. Deixando tudo nas mãos de Deus, ante quem fervoradas lágrimas de bom desejo alcançam sempre singular remédio, em breve espaço de tempo, das Ilhas lhe deram cartas de seu pai, nas quais o persuadia e brandamente aconselhava que fosse sacerdote, dizendo mandasse logo do ordinário de Coimbra informação da vida, costumes, letras, para lhe poder mandar as reverendas. Resoluto neste parecer, mandou as mais honrosas cláusulas de abonação, que em outras, da mesma sorte, se acham de pessoas principalíssimas; contestes os lentes na suficiência dos estudos, disseram maravilhas, verdade por tantos anos conhecida.

Presentadas que foram ao prelado, com altíssimo espanto ficou vendo tão grande cópia de virtudes a tanta multidão de letras vinculada. Temeroso que, no Reino, os que assistem no governo do Estado lançassem dele mão, tratou com seu pai o mandasse vir, e com eficácia de palavras o queria quase convencer, dizendo que com trazer o filho a suas ilhas se segurava da contínua inquietação de o ter ausente e lograria por espaço de seus dias a sua desejada presença em amorosa paz; e os despachos do Reino eram tais, segundo ele sabia, que os passou tardios e vagarosos de alcançar, e, por fim, perdidas esperanças de nunca mais o ver, ficava em perpétua dor e saudade.

Miguel de Figueiredo, um dos entendidos homens de nosso tempo, respondeu que não parecia razão de o divertir do certo caminho que levava, e em que sua suficiência o pusera, para vir morar as ilhas, honesta sepultura de fidalgos; que no Reino havia e se achavam bastantes prémios a quaisquer virtudes; e que seu irmão, António Lemos, prior de Recardães, pretendia renunciar nele o priorado, que em rendimentos excedia com grandíssima vantagem quanto as ilhas lhe podiam dar, havendo muita cópia de parentes, a cujo parecer o remetera, que aprovaram esta opinião. Desenganado o bispo, determina por outra via buscar meio com que forçado viesse ter às ilhas, dando-lhe licença de tomar no Reino ordens de Epístola e Evangelho, reservando as de missa para si, com desculpa de querer a honra de as dar de sua mão.

Enquanto passavam nas Terceiras estas coisas, acabaram em Coimbra os dois anos de continuar as lições de Leis e, com a licença das ordens que lhe chegou das ilhas, partiu na volta do Porto Alegre tomar as de Epístola do bispo D. André de Noronha, com altíssima devação e reverência de sua vontade própria os votos acceptando, que as sacras tem anexas de pureza e castidade, que perfetissimamente guarda de sua mocidade.

Tornou a Coimbra dar o desejado fim a seus estudos e fez o último acto de aprovação, derradeiro nos trabalhos das Escolas. Espantosa foi a grandeza dele, que por muitos tempos retratado na memória dos ouvintes andou posto. Acabada a obrigação dos cursos e acabados de trilhar os bancos dos Gerais, na Universidade não havia que fazer. E por não querer seguir Escolas, nem perigosas esperanças de pretender cadeiras, com grande mágoa dos estudantes e saudade do apartamento deles, se veio a Lisboa com intento de requerer despacho.

Arribada achou a armada que vai esperar as naus da Índia na derrota das Terceiras; parece desejosa de o levar em si, na qual juntamente arribaram dois seus parentes, que, findos os negócios do Reino, passavam ao descanso de suas casas. Desejosos estes fidalgos de o levar às ilhas, contenderam com as melhores e urgentes palavras que puderam de o persuadir que com eles embarcasse, propondo a cómoda passage (sic) da segura armada, o fácil e brando tornar nela, a deleitosa vista de seus pais e seus irmãos, da sua doce e desejada Pátria, e de todas as mais ilhas, ocupadas nas esperanças de o poder ver. Acrescentavam que, nesta pressurosa viagem, de caminho não interrompia o tardio curso do despacho; antes, recreiado com a suave vista dos seus domésticos, poderia facilitar o grave peso do requerer, e que parecia indigno de quem era tão amoroso e brando, ausente por tantos anos de seus pais, perder a oferecida ocasião de os ir ver, e que, havidos os despachos que esperava, ficaria, porventura, excluído da acomodada conjunção de se embarcar. Movido destas aparências de razões, deu conta a seus parentes que faria; aconselhado por eles que se fosse, logo no mesmo dia embarcou.

Guiaram prósperos ventos, que cursaram, aos levantados mares das Terceiras os nossos armados galeões; desembarcado, de São Miguel em Vila Franca, passados poucos dias de visitas, foi a Santa Maria ver seus pais.

Chegando-se as têmporas de São Mateus, nas quais determinava tomar ordens de Evangelho, passou com este desígnio à Terceira, onde residia o bispo, que o esperava, e agradecer-lhe de o escolher, do número de alguns, no importante cargo de São Miguel, e justificar-se de o não aceitar, movido do parecer de seus parentes, de cuja opinião, por mandado de seu pai, se governava, e por haver muito tempo que intendia esperarem na corte o desejado fim de seus estudos, querendo-se Sua Alteza servir dele; e, posto que, forçado, não pudesse satisfazer em todo a vontade de Sua Senhoria, ficava na obrigação e cargo da mercê que lhe fizera, com tanto amor o eleger na mais iminente (sic) coisa que as ilhas davam, o que, cognoscendo, serviria da vida em qualquer estado que o tempo lho ordenasse.

Muitos eram os conceptos que este prelado tinha da pessoa deste senhor, muito compreendera das relações que vira, muito levou a fama descobridora às orelhas de todas aquelas ilhas; muito mais, sem comparação, se cognecia (sic) de prudência e de valor, quando com ele particularmente se tratava; e foi julgado, do gravíssimo juízo deste bispo, meritíssimo da honra que agora tem. E, com as ordens de Epístola, o fez prior de uma das principais paróquias da Ponta Delgada, em São Miguel, colegiada de suficiente número de benefícios, e o assinou por administrador do eclesiástico foro em toda a ilha. O que ele, importunado de seus domésticos, aceitou, quase convencido do muito amor com que lho pediram.

Mostrou o glorioso Príncipe ser de sua mão feita esta eleição, e a do sagrado nome de São Pedro se chama a mesma freguesia, a fim de na devação afervorado, pudesse por seu meio alcançar outros diferentes títulos de grandeza. Um ano a teve o bispo sem prover, esperando deste senhor a desejada vinda.

Aceitado o cargo, se partiu na volta de São Miguel; chegando no solene dia do miraculoso São Francisco, foi com muito alvoroço recebido e de todos os principais fidalgos visitado, parentes que, da parte de sua mãe, na ilha moram; passados os dias de cumprimentos, ocupado no governo que aceitou, com suma verdade ministrou justiça, reprimiu dos vícios a semente, pacificou os nascidos ódios, castigou delitos, introduziu nos danados ânimos virtudes e reformou a ilha em um novo estado de viver, que, sem ficarem culpas sem castigo, ficavam todos devendo o brando modo de castigar.

Tem este senhor, com outras singularíssimas virtudes de que é dotado — para governo e mando de coisas altas (particular e raríssimo dom da Natureza), não se aquietar a quaisquer razões, inda que prováveis pareçam e aparentes, até que o claro lume da verdade lhe ilustre com seus raios o entendimento, que logo por ele é conhecida.

Ocupado nestas obras boas, serviu-se Deus levar ao descanso da Glória a ditosa alma do bispo D. Gaspar, com grandíssima mágoa e sentimento de todo povo. Ficaram as ilhas sem pastor, e o senhor D. Luís com ordens de Epístola, sem mais graus. Forçado foi tornar ao Reino, e dispostas em concerto suas coisas, havido cómoda passage, se embarcou.

Chegado a salvamento, tomou as sacras ordens que lhe faltavam, e já feito sacerdote, de conselho de seus parentes, falou a el-Rei D. Sebastião, relatando a nobreza de sua pessoa, a dependência dos merecimentos de seus avós, a comum fama de suas letras, os grandes serviços que fizera no administrar do cargo que, de seu mandado, tivera no governo de São Miguel.

El-Rei, que primeiro dele tinha alguns conceptos, com muito amor o agasalhou, mostras grandes de lhe fazer mercê, e o remeteu ao Doctor Paulo Afonso, por cuja mão corriam os despachos, e mandou que desse, segundo ordem destes Reinos, os papéis. Muito folgou o Doctor de o conhecer e, com a natural prudência de que foi dotado, intendeu a correspondência da pessoa a já sabida informação, que do tempo das Escolas se tomara.

Avantajada, depois, foi, e de muito maior crédito e valia, vendo tantos e tão principais senhores, seus parentes, que por ele intercediam. E por o desembargo, que na petição pedia, no igualar ao valor e crédito de quem era, o despachou por capelão-fidalgo com a melhor e mais honrosa moradia que se costuma a dar aos nobles que na Capela servem, enquanto se não oferecia coisa que conformasse com seus quilates.

Levado (havido este despacho) de altos desejos de ver seu tio e do amor e criação que teve nas Escolas, partiu, forçado destas coisas, caminho de Coimbra; com muito alvoroço entrou no antigo domicílio das boas letras, nos Gerais, em que bebeu o leite dos sagrados cânones, na honesta conversação dos estudantes, nas domésticas paredes que, atentas, sem rumor, ouviram as blandas (sic) vozes de quando estudava.

Passados em Coimbra alguns dias, foi a Recardães a ver seu tio, claríssima pessoa, por vida e por costumes, a cuja casa outras vezes fora recrear o cansado corpo de frequentar Escolas e satisfazer a obrigação do parentesco. Em santa e suave companhia passaram os dias que foram juntos; do Céu eram os colóquios e as vontades, quando, por via de parentes, teve da corte aviso que o licenciado Marcos Teixeira, mandado por el-Rei, tirava dele secreta e sumária informação de testemunhas graves; que não era tempo andar ausente do despacho, que, vistos estes termos, estava perto de se concluir.

Despedido com lágrimas do tio, segundo requeria o negócio apressado se veio a Lisboa.

Falou a Marcos Teixeira, que com particular contentamento o avisou que se visse com Paulo Afonso, em cuja mão ficaram seus papéis, e que neles acharia um bom despacho. Procediam estas informações, tiradas de um oculto desegno de el-Rei, disposto a mandar às Índias dois inquisidores ministrar o cargo do Santo Ofício, e os negócios terem expedição melhor.

Entre alguns que de todo Reino igualaram ao preso, de tão supremo mando com multidão de virtudes acquiridas, foi este senhor nomeado por um deles, e logo no Conselho assentado que fosse o presidente; ordenadas estas coisas, restava só saber ao certo de sua vontade, de que a conclusão da ida dependia. Quando se viram o doctor e ele, lhe perguntou se passaria o mar com despacho muito avantajado do que pretendia, em honra e dignidade. Respondeu que, perto, se fosse acomodada parte, sim; em remota, oferecida a perigos de uma comprida e vagarosa viagem, se não atreveria, por indisposto e subjecto a uns erráticos fervores de cólera, que, algumas vezes, o molestam, e das devidas saudades de seus pais, que não sofriam tão longo apartamento.

Pesaroso ficou Paulo Afonso de não aceitar tão eminente e supremo cargo, que se dá por último fim de bastantíssimos serviços; e lhe disse que as inconstâncias do incerto mar mostravam tanto vigor e força nas distâncias que demoravam perto quanto nas afastadas partes da esfera, e que a providência dos homens acudiria com maiores remédios a maiores riscos, e, nas esperanças de um bom despacho, as pessoas de sua qualidade se aventuravam a contínuos trabalhos para ter descanso, e ele, levando o melhor que se podia dar a um homem fidalgo (tendo, no princípio do requerer, o que muitos não alcançam no cabo de grandes anos), parecia ir contra o intento de quem era, e em certo modo retardar o ditoso curso de seu merecimento e resfriar a vontade do Príncipe, desejoso de o levantar a maior prémio.

Quanto ao insulto dos humores que sentia, não ocasionavam navegar a quem fosse gasalhado na melhor câmara da mais segura nau, e que, no seu risonho e alegre aspecto, não se viam alterações mudadas, que denunciassem internos males, antes de uma complexão (sic) digna de quem era. Não bastaram razões ao remover da dura e deliberada opinião, antes assentou de todo de se não embarcar.

Acabados os desegnos da missão e passadas algumas intercadências de tempo, posto que breves, concluíram no Conselho do Estado fosse provido no número dos inquisidores que residem no Santo Ofício destes Reinos, pelo que se escreveu logo ao Cardeal D. Henrique, maior inquisidor nestes Reinos, sobre ele e suas partes; levou este recado o secretário do cargo ao Cardeal, a Évora, detendo-se por alguns dias a resposta, por estar o Infante de caminho, a se ver com Sua Alteza, que o esperava.

Fizeram-se neste meio tempo prestes os navios da armada, que vão às ilhas esperar as naus, em que ele, feito sacerdote, pretendia ir visitar suas ovelhas, e com devotos sacrifícios honrar os piedosos sepulcros de seus maiores. Desejava isto muito; deviam de ser maiores as esperanças dos seus, nas ilhas, de o ver. Tardava a resposta de Évora; na armada havia grande pressa de partir. Metido no meio de dois extremos: a vagarosa vinda do Cardeal e o vento próspero que os convidava. O despachador dizia estar tudo concluído na vinda do Infante, que por momentos se esperava. O tempo tinha as vergas de alto e a gente dentro.

Assentaram que fosse, visto a determinação que mostrava ter de chegar às ilhas, compor necessárias coisas que dizia ficarem lá em aberto; mas, querendo-se Sua Alteza em suficiente cargo de sua pessoa servir dele, logo tornaria. Avindo deste modo, mandou embarcar os pagens e o fato nos navios que estavam para dar à vela.

Sabido dos consultores do Reino que partia e o bispado sede-vacante ficar só, lhe mandaram provisões de que el-Rei era contente da sua sobreintendência em São Miguel e se haveria neste governo, que muito importava por servido, com particular memória de lhe fazer mercê.

Embarcado, as velas quase dadas, pedindo todos a Deus viagem, chegou o Cardeal aquele dia, à tarde, a Lisboa; logo amanhecendo, deram aviso que se não embarcasse, e o acharam embarcado; ele, que todas as suas coisas primeiro conferia, que se deliberasse na resolução do apressado responder; consultado Braz Soares, Capitão de Santa Maria, seu parente, que em sua companhia embarcara, respondeu que, oprimido das angústias do tempo, não era já possíbil tornar a terra, nem desembarcar o fato, recolhido em lugar seguro; mas que tornar seria breve, acabando dar ordem a certas coisas que muito importavam. Ordenava Deus isto a fim de o fazer bispo, que em tantos cargos oferecidos em nenhum quietou, nem aceitar quis, posto que grandes e de singular valor; antes, por ele rejeitados, ficaram sem efeito.

Chegado a Terceira, recebido com sumo contentamento dos insulanos, propôs executar os cargos que levava, com tanta inteireza e verdade de justiça, que mudaram muitos o abuso de seguir os vícios no estado novo de viver quieto.

Enquanto gastava o tempo na reformação dos costumes, foi no Reino provido de (sic) D. Pedro de Castilho por bispo das Terceiras, fidalgo montanhês, de muita erudição e santidade, o qual, depois de poucos dias, vindo ao bispado, morreu o adeão que na Sé servia. Sabia este ordinário quanto no Reino montavam a fama e nobreza deste senhor e o conhecimento das Escolas, em que ambos foram contemporâneos; logo o nomeou na dignidade, avisando el-Rei da promoção; mandou a Roma buscar as letras e, vindas, tomou posse com altíssima satisfação do povo.

Passados neste meio tempo alguns dias, quis D. Pedro, por obrigação do cargo, visitar em pessoa as outras ilhas do bispado, e o levou consigo por visitador, mostrando confiar tanto no uso e entendimento do seu governo, que por igual com ele reapartia o peso de visitar.

Tanto que partiram da Terceira, o mal entendido povo (infelice e abominábil caso), de falsas aparências enganando, errava no conhecimento da verdade com infame parecer, julgando senhor daquele estado quem, de ordinária via de justiça, nele não tinha alguma parte; e cegos na sorte de escolher, de modo confundiram da mísera república a união, que, excluído o verdadeiro jugo do seu Rei, em triste rebelião ficaram postos.

Tomaram estas miseráveis novas do alevantamento das Terceiras ao bispo e a este senhor na sua mesma pátria. Ambos tiveram profundíssimas lágrimas de sentimento; choravam ambos à comum lástima de tanto povo, ambos se doíam de ver uma das mais frequentadas ilhas que o mar inclui, residência do bispado, universal porto do mundo todo, deliberada e posta em se perder.

Logo se tornaram a São Miguel, acomodada parte de acudir aos públicos desatinos do incerto vulgo e conservar na verdadeira e leal opinião aquela, maior no sítio e rendimentos. Em chegando, o fez o bispo vicário (sic) geral e provisor, para com dobradas forças resistir aos iminentes perigos que ameaçavam.

Entanto, os discordes ânimos da Terceira, passados os limites da razão, traziam no mar navios a roubar, metiam na pátria estrangeiros, pagavam à sua custa guarnições, tinham contínua ordem de vigias, fortificavam as praias, impossibilitavam passos que podiam dar entrada aos imigos e, com horrenda confusão de pareceres, ardiam em confusos pareceres.

Juntaram a tantos males maiores outros, roubando os cansados navios que, oprimidos do longo fastio da viagem, demandavam com desejo aquele porto, em refeição e prémio do trabalho.

Vistos tão grandes insultos do infelice gado, procuraram os pastores, por meio de contínuas orações, aplacar a ira do Omnipotente irado e, por humanos meios, restaurar na perdida lealdade os errados entendimentos do miserábil povo. Tentados em vão quaisquer repairos, aplicados remédios sem proveito, nunca fizeram alto em seu desegno (sic); antes da bebida peçonha alienados, tratavam as duras armas em que tinham postas falsas aparências de vitória.

Desconfiados de neles haver emenda, o ordinário bispo avisou que se queria depressa embarcar; havida do Reino a licença, mandaram que ficasse este senhor com o mando do bispado, que por Roma lhe queriam confirmar.

E, esperando-se tempo para ir, e segura embarcação em que passasse, partiu de França D. António, com ajuda de perdidos luteranos, a fortificar de novo aquelas ilhas, que tomaram sua voz e defendiam o injusto nome que lhe tinham dado; e trazia razoada cópia de soldados.

Vindo a São Miguel, achou nele pouco fruto, por causa destes senhores o terem conservado na devida obediência.

Sabidas estas coisas de Sua Majestade, mandou o Marquês de Santa Cruz acudisse aos insultos daquelas ilhas e desbaratasse o imigo, ousando esperar, que lá andava. Satisfez o Marquês a este cargo e, com poder e força de menos velas, desbaratou a armada populosa de França, ficando a maior parte dela nas mãos do vencedor.

Domesticadas em parte estas coisas, o bispo se embarcou. Quisera o senhor D. Luís acompanhá-lo, mas, advertido que a um deles convinha ficar com a pesada carga do governo, se aquietou, e o bispo, delegando nele o poder que tinha, o deixou por universal senhor do eclesiástico foro.

Chegado D. Pedro a Lisboa, deu conta a el-Rei do estado em que ficavam as alterações das ilhas, dos artifícios que ele e este senhor tiveram para abrandar a obstinada dureza dos alevantados, quantos foram os trabalhos que ambos padeceram, quantas vezes arriscaram as vidas na concórdia de tão grandes males; e dizia este prelado que na prudente indústria deste senhor se salvaram muitos do miserábil fogo de rebelião; contentíssimo ficou Sua Majestade de o saber, e entender que na sua mão ficavam as rédeas do bispado.

Enquanto ele nas ilhas se ocupava sacrificar a vida no amor de el-Rei, foi no Reino levantado D. Pedro dos trabalhos passados ao prémio de Leiria, e dada no Conselho ordem que por Roma fosse o senhor D. Luís confirmado na administração das Terceiras.

Enquanto estas coisas corriam desta sorte, não bastou a horrenda vista de tantas mortes, nem o mísero destroço da vencida armada, aos mal intendidos insulanos a renderem as armas na clemência do verdadeiro príncipe; antes, com dobrado ódio da obstinação primeira, rejeitaram os sãos conselhos que deste senhor lhe foram dados e de novo tornaram refazer à perda da rota que tiveram.

Durou um ano inteiro este abominável erro sem ter remédio, até que Sua Majestade, vendo que se tentavam em vão tantos remédios, determinou com rigorosa justiça da espada castigar os principais autores da discórdia e mandou ao mesmo Marquês de Santa Cruz com uma poderosa armada que os vencesse. Chegou primeiro o Marquês a São Miguel, submetida ao mando de Sua Majestade, a tomar inteligência do que passava, e recrear a gente dos trabalhos que tiveram na viagem, e informar-se de alguns ocultos desegnos, se os havia, que fizesse a efeito do negócio.

Assentou convir ao serviço de Sua Majestade ficar o senhor D. Luís em S. Miguel, enquanto a sentença do rigoroso Marte definia a qual das partes convinha ter vitória. Necessitado de ficar, proveu em seu lugar por ouvidor eclesiástico da cidade de Angra ao padre Luís A’lvares de Maiorga, cónego que, então, era da mesma Sé, pessoa de confiança e crédito, digno do cargo que levava.

Tomada por força de armas a Terceira, e vencidos os que nunca se deixaram submeter à eficacíssima força da razão, ficando postos no rigor da guerra e debaixo dos miseráveis insultos dos soldados, sabida a contentíssima nova da vitória, rendidas primeiro graças do sucesso, este senhor se embarcou na volta de Angra. Ao tempo de chegar, achou o Marquês já embarcado; grandes foram as alegrias que tiveram e no pouco espaço que se viram: a muitos fez conceder as vidas no último perigo de chegar a morte, a outros as fazendas, por direito da guerra já perdidas. Tiveram outros, por sua intercessão, os merecidos prémios de sua lealdade. No que tocava ao eclesiástico foro de seu governo, de maneira se houve no executar justiça que, sem ficar algum sem ter castigo, nenhum se agravou da dura pena. A excelência destas obras nos duros pectos dos capitães espanhóis fizeram impressão.

Tanto que a vencedora armada, com próspero sucesso, chegou à desejada praia de Lisboa, nos principais senhores correu logo a veloce fama do que este senhor fizera no serviço de Sua Majestade, e com quanta justiça e santidade regera o canónico mando de sete ilhas, e na singular ordem que inventara em confirmar o povo, ainda mal são da passada chaga, num firme pressuposto de nunca mais cair. Todos prognosticaram os prémios que de tantos serviços se esperavam; o Cardeal , quase vencido do que até os mesmos soldados publicavam das virtudes e saber deste senhor, particularmente o amava, e todos os mais senhores, por cujo entendimento os negócios do Reino se governa, sabidas suas coisas, eram muito seus amigos.

Nos primeiros navios que, depois de reduzida, do Reino foram à Terceira, por cartas do bispo de Leiria e pessoas nobres e parentes, foi deles avisado quanto nos olhos de Sua Majestade eram formosos os serviços que lhe havia feitos e que em breve tempo se veria, no prémio que esperavam, a certeza deles.

Vagara neste meio tempo o bispado de Cepta; logo se suspeitou que o queriam prover nele; mas, sucedendo a vagatura do das ilhas da Madeira e Porto Santo, tão formoso no mundo, o proveu nele, que fora, havia poucos anos, arcebispado de todo o marítimo domínio que os nossos reinos têm em tão remotas partes espalhado. Promulgada a eleição em Março de oitenta e cinco, Sua Majestade o avisou, com muitas palavras de louvor, viesse dar ordem a suas letras.

Chegadas as novas às Terceiras, foram dos insulanos festejadas com sumo alvoroço e estranho gozo; logo a palreira fama, discorrendo, levou por todas as ilhas à comum alegria do bispado a honra universal que lhe era feita, ser de todas elas o primeiro bispo. Misturavam alguns com os plazeres as saudosas lembranças do passado, sincero amor com que os tratara no tempo que com eles residira.

Havida conjunção de vir à Corte, no mês de Augusto se embarcou em uma armada que da Mina vinha.

Chegado a salvamento, foi recebido do Príncipe Cardeal e mais senhores com altíssimo gasalhado e muitas honras, e de parte de Sua Majestade lhe disseram a boa informação que dele tinha, e quanto foram aceitos seus serviços, e que muita parte deles, excedendo o modo da mercê, ficavam esperando maior prémio. Os que assistem no governo do Estado o recolheram com assaz contentamento; os parentes com infinito amor e gasalhado. Só D. Luís Coutinho não viu este desejado gosto, da rigorosa morte oprimido nos funestos campos do mal fortunado Alcácer.

Puderam-se com razão engrandecer as verdadeiras provas, que em todas ilhas e no Reino se tiraram da antiga ilustre descendência dos seus maiores, por tantas fidedignas testemunhas aprovada, de inumeráveis anos a esta parte virem seus avós sem nota que macular pudesse a conhecida nobreza desta geração, antes perpetuada no valor e honra; nestes Reinos adquiriram títulos de grandes, e, porventura, o que não creio de malícia ou inveja alguém cuidar, que em parte sobrepujam estes louvores da verdade, que se pede na História, de menos resplendor do que escreveu. Busque na Casa do Tombo originais e as verdadeiras fontes dos instrumentos e neles achará o lume certo desta claridade; e, se ainda duvidar, não faz acaso, que da formosura do Febo não abate a miserável vista do animal da noite que, enquanto o dia dura, da luz foge, contente com as trevas do ar pardo. Atónitos ficaram os que as viram: do ilustre tronco de seus avós; da muita erudição de suas letras, de tão vários exames apurada; do saber e entendimento no governo dos anos de seu cargo.

Estas e outras muitas coisas que a Católica Majestade entendia e a Universidade toda, lentes e doctores, com grandíssimo aplauso comprobaram, escreveu ao Sumo Pontífice, quando na prelacia do Funchal o presentou. E nosso Santíssimo Senhor, nas letras em que o declarara por bispo destas ilhas, diz que o levanta a tão supremo lugar de santidade, movido da informação que dele tem, de muita nobreza e fidalguia, e papéis fidedignos destes reinos, nobreza confirmada por testemunho dos dois monarcas que sobre si sustentam o grave peso da religião cristã.

Em Outubro seguinte, partiu para Roma o correio que levou estes recados. A cinco de Março do ano de oitenta e seis chegaram as bulas a Lisboa. No dia seguinte, que foi de Cinza, por ordem do secretário Lopo Soares, lhe foram mandadas as desejadas novas, estando aos ofícios na Ecclésia de Santa Catarina de Monte Sinai. Quis Deus mostrar quanto o agradara ser electo, que com as lembranças que se costumam dar na criação dos Papas, da velocidade da vida, da glória que em fumo se desfaz, de pressurosa passage (sic) a dar conta, no dia em que a nossa Sagrada Mãe celebra com cinza estas memórias lhe foram as letras dadas do bispado, e de licença do Príncipe Cardeal, no último de Março, domingo que fora da Rosa, ele que no suave cheiro da virtude havia de ser outra, com aplauso de toda a Corte, no venerábil mosteiro da Trindade, foi ungido e consagrado.

Muitas foram para dizer, indignas de tão pequeno âmbito de lugar, as coisas deste dia: a majestade do que passou, as sacras cerimónias do ofício, o profundíssimo pego de devação com que foi feito, o quase infinito concurso do mundo abreviado de Lisboa. Alguns, tratando a vida deste senhor na viva voz de seus escritos, dirão estas grandezas por extenso, levando a memória do que passou ao resplandecente Céu eternizada. No soleníssimo acto, presidiu D. Manuel de Seabra, bispo que foi de Cepta e agora o é da Capela, assistentes o novo de Cepta, D. Diogo Correia, e o bispo dezelandês que, ausente do abominábil perigo de Inglaterra, vive em nossos Reinos em paz católica.

Nem só em os divinos ofícios se mostrou a majestade do dia em que foi sagrado; mas, acabados eles, no sumptuoso e magnífico banquete, nas mesas abundantíssimas de pescados, na ordem e aparato que se teve, passou a diversidade de iguarias muito avante de quaisquer desejos, e já, por fim, mostravam as que vinham quanto a pródiga gula inventou.

Acudiu a nossa ilha ao prazer comum com as delícias celebradas de seus mimos, que a fazem em toda a parte nomeada; e com diferente cópia de licores mitigou a sede dos convidados.

Excedia o número de todos a cópia de cento e cinquenta pessoas, nobres e fidalgos, de obrigação de parentesco, D. Hierónimo Coutinho, D. Hierónimo Lobo, D. Emanuel de Castro, D. Afonso de Noronha, e alguns outros; os mais consumiu a dura sorte africana nas casas de Sortelha, do Barão , do Regedor . Tiradas as mesas, descansou sua senhoria do trabalho passado. Recolhido, agradeceu ao Sumo Fazedor a cópia das mercês.

Mandou logo à ilha tomar posse, foram delegados no negócio D. Francisco Henriques, adeão, e o doctor Gonçalo Gomes, mestre-escola, insignes ambos, um no sangue de seus avós, outro na notícia das sagradas letras. A cinco de Maio, domingo em que se cantava o devotíssimo Evangelho Ego sum Pastor bonus (porque tal havia de ser), tomaram posse na presença da nobreza do Funchal, com muito contentamento de todo povo.

Enquanto se aparelhava uma zabra, que se fazia prestes para o trazer à ilha, foi do Cardeal chamado domingo de Ramos, e com muita devação e majestade fez nesse dia o pontifical da Capela. E, logo, quinta-feira da Semana Santa, administrou com muitas lágrimas os Santos Ofícios na Capela. E dia dos Sagrados Príncipes dos Apóstolos teve outro pontifical. Os mais dias, antes de partir, gastou em procurar mercês ao virtuoso clero do Funchal, ou, com mãos abertas, fazer muitas a quem as demandava.

Aparelhada a zabra, embarcado, ficou na corte um geral e altíssimo sentimento, e a todos seus parentes muita saudade. Veio em sua companhia uma nau que navegava ao comércio do Brasil. Não tiveram no mar vista de cossairos, antes alguns, que juntos destes mares andavam, esperando achar presa, um dia primeiro se acolheram, lançados da boa fortuna deste senhor.

Chegou em pouco tempo a sua ilha, a quatro dias contados de Augusto.

Espantosas foram as alegrias com que no Funchal o receberam, dignas de quem era e dignas da nobreza da cidade. Acrescentou muito no aparato destas festas a presença de Tristão Vaz da Veiga, capitão e governador do Estado de Machico, generalíssimo nas ilhas da Madeira e Porto Santo, que, por ilustreza de sangue, invencíbil ânimo, gravíssimos e espantosos feitos nas partes de Ásia e África, é das mais eminentes e principais pessoas de nossos tempos, que, com muito alvoroço embarcado, o foi buscar ao navio, com outros muitos fidalgos que o seguiram, e João Daranda, capitão do Presídio, foi com ele.

Trazido a terra, na borda de água o esperava o reverendíssimo Cabido e o mais clero do Funchal, os juízes e vereadores, com o resplendor da fidalguia desta ilha; junto deles a companhia de soldados, com infinita multidão de povo de toda sorte. A salva de artilharia que disparou a fortaleza, a roda viva de arcabuzes e mosquetes, o repicar de sinos, danças, festas, invenções, as comuns vozes de alegria, por longo espaço dispergidas (sic), soavam em remotas partes.

Trazia o barco, em que veio a terra, as mais nobres pessoas de toda a ilha e as principais dignidades que o foram lá buscar. Posto em terra, de geolhos, diante da sacra veneração da Cruz, que com gravíssima pompa lhe foi apresentada, acabada, se recolheu em um pálio de brocado, e com grandíssima majestade o levaram ao trono da sua santa Sé, com as costumadas e devidas cerimónias. Prostrado diante do diviníssimo Sacramento, deu imortais graças ao Senhor de o trazer de tantos perigos a seguro e tranquilo porto de descanso e do estranho contentamento, que em todos via, de o terem por prelado e por senhor.

O que mais nesta soleníssima entrada aconteceu, quanto com sua vinda reformou, a brandura e santidade com que procede, as contínuas esmolas que vai dando, as excelentíssimas coisas que tem feitas, o grande e espantoso fruto das pregações, a veemência das palavras, o levar após si os corações, os institutos e leis de reformar, a singular ordem e assento de proceder — fica tudo reservado para mais subida cópia de palavras e autores graves, de maior concepto.