O muito ilustre e valoroso cavaleiro Frei Gonçalo Velho, comendador do castelo de Almourol, que está junto do grande rio Tejo, junto da vila de Tancos, foi da nobre e antiga geração dos Velhos, os quais, nos reinos de Portugal, são fidalgos muito principais, de cota de armas e de solar conhecidos, e sempre serviram os Reis passados nos melhores ofícios de sua Casa; um dos quais, chamado Frei Gonçalo Velho, comendador de Almourol era da casa do Infante D. Henrique e tão privado seu e aceito a eles, pelos serviços que ele e seus avós tinham feito à Coroa e a ele, dito Infante, e pelo que conhecia das partes e esforço, saber e prudência do dito Frei Gonçalo Velho, que, determinando descobrir estas ilhas dos Açores, não achou outro mais suficiente em sua casa a quem cometesse o cargo de coisa de tanta importância, como esta era, senão a ele, o que basta somente para prova de quem ele era e podia ser.

E, como atrás tenho contado, o mandou o Infante da vila de Sagres, do Algarve, onde, então, estava, a descobrir a ilha de Santa Maria e, não achando da primeira viagem senão somente os baixos de áspera penedia a que chamou as Formigas, pela razão já dita, se tornou ao Algarve, donde depois foi enviado pelo mesmo Infante ao mesmo descobrimento; e desta segunda vez achou a ilha a que pôs nome Santa Maria, pela achar em seu dia, de sua Assunção, a quinze de Agosto do ano do Senhor de mil e quatrocentos e trinta e dois, no tempo que reinava em Portugal D. João, de Boa Memória, décimo rei em número e primeiro do nome, como já fica dito. E certo eu tenho para mim que, ordinariamente, não faz Deus tal mercê de mostrar uma só ilha, nunca descoberta, a alguém, senão a pessoa que tenha grandes partes e virtudes, quanto mais muitas ilhas, como se diz que quis mostrar a este valoroso Capitão, como irei contando.

Assim que a primeira que achou foi a de Santa Maria e tornando com a nova do novo descobrimento ao Infante, ele lhe fez mercê dela, fazendo-o seu Capitão e Governador, com o qual cargo, depois de mandar lançar gado e outras coisas nela, o mandou a povoá-la e cultivá-la, o que ele fez com grande saber e diligência, trazendo consigo a Nuno Velho e a Pero Velho, seus sobrinhos, filhos de uma sua irmã, que eram ainda meninos. E fez cultivar e povoar a ilha de nobre gente, tratando-a com muito amor, e governado-os com muita brandura, pela qual razão era de toda obedecido e mui querido.

E, indo outra vez ao Reino, o tornou o dito Infante a mandar descobrir esta ilha de São Miguel, por sentir dele que para tudo era; o qual, obedecendo aos mandados e rogos do Infante, alcançou de Deus achá-la, como direi adiante, quando dela particularmente tratar, e fez-lhe o Infante mercê da capitania dela, juntamente com a da ilha de Santa Maria, ficando Capitão de ambas, mas, por ser, então, mais povoada a de Santa Maria, que primeiro fora achada, residia o mais do tempo nela e lá morava .

E tornando dela ao Regno, dar informação do que nela fazia e havia, e, porventura, de outras conjecturas que sentiria de haver ao redor, perto destas, mais ilhas, ou por isso, ou pelo que o Infante tinha entendido de as poder haver, o tornou a mandar ao descobrimento delas; e comummente se diz (ainda que em seu lugar direi o que outros dizem e sentem por mais certeza) que, vindo o dito Frei Gonçalo Velho a esta empresa mandado do dito Infante, descobriu primeiro a ilha Terceira, e depois a de São Jorge e a Graciosa, com que o Infante lhe ficou mais afeiçoado, fazendo-lhe cada vez mais mercês e favores, quando o viu diante de si tão ditoso e bem afortunado descobridor de tantas ilhas, de que se esperava acrescentamento e grande provimento e bem do Regno. E logo o enviou com alguns navios carregados de gado de diversa sorte para o lançar nelas antes de se povoarem, porque, multiplicando na terra os povoadores que viessem a elas, passados alguns tempos, achassem já mantimentos e instrumentos, para se poderem ajudar deles quando a beneficiassem e cultivassem; pelo que, quando, depois, el-Rei D. Afonso, duodécimo Rei de Portugal e quinto do nome, deu licença que todas se povoassem no ano de 1449 , pela fertilidade e fresquidão que delas se contava, e por estas cousas que já nelas havia, folgavam de vir a elas e, principalmente, gente muito honrada e nobre, de que todas se povoaram em poucos anos.

Andando os homens nestas ilhas roçando os espessos matos e caçando, não com açores, nem gaviões, nem outras aves de altanaria, as outras aves que neles havia, senão com as próprias mãos, com que as tomavam sem trabalho por elas não fugirem, pelo pouco uso que de ver gente tinham, e beneficiando a terra, semeando-a de trigo, cevada e centeio e de diversos legumes, armando e tecendo suas casas, como fazem os curiosos e cuidadosos passarinhos antre o alto arvoredo, temperando com aquelas soidades dos matos e novas e estranhas ilhas as que tinham de suas terras naturais, donde vinham, uns com determinação de tornar às que deixaram, outros de viver e morrer nas que novamente acharam e povoavam, apostados com aquela colónia de novas terras esquecer as saudades das suas antigas, e estando no ano de 1460 o felicíssimo Capitão das duas primeiras ilhas na de Santa Maria, onde tinha seu principal assento, ocupado, com o mesmo cuidado do mar, com machados e foices roçadouras, roçar e cortar as empinadas árvores e, com enxadas e fogo, extirpar e dissipar e destruir suas grudadas raízes, e romper as terras com o curvo arado, experimentando das sementes qual melhor frutificava, do primeiro alvará que se acha e sabe mandar-lhe o Infante do Regno para o norte do governo destas ilhas, que eram suas, e principalmente destas duas, de Santa Maria e São Miguel, de que o fizera Capitão e Governador, direi aqui, por ser cousa antiga, as palavras antigas, todas finalmente notadas, que são os seguintes: “Eu, o Iffante D. Henrique, duque de Viseu e senhor de Covilhãa, mando a vós, Frei Gonçalo Velho, meu cavaleiro e capitão, por mim, em minhas ilhas de Santa Maria e de Sam Miguel dos açores, que tenhaes esta maneira, a juso scripta acerca da justiça e feitos cives.

Vós mandareis aos juizes da terra que oição as partes que em litígio forem, as mandem vir presente si, e lhes façã comprimento de direito. E se das sentenças, que os juizes derem quiserem appellar, appellem para vos, e vos confirmai as sentenças dos juizes ou as corregei, qual virdes que he direito. E se de vossa sentença elles quiserem appellar, vos lhe nã recebereis appellação, nem lhe dareis salvo estromento dagravo ou carta testimunhavel para mim, com vossa reposta, e então eu denunciarei, o que vir, que he direito, e vos mandarei o que façais; porém vós nã deixareis de mandar enxuquatar as dictas sentenças, posto que com os estromentos ou cartas testimunhaveis a mim venhã. E se for em feito crime, em que algum, ou algua faça o que não deve, e por que mereçam pena de justiça, vos mandai prender e apenar em dinheiro, e degradar para onde vos prouver, e mandar açoutar aquelles, que o merecem, sem dardes pera mim appellação. E se for feito tã crime, per que mereçã mortes ou talhamento de membro, vos mandareis aos juizes, que dem a sentença e os julguem, e da sentença, que derem, appellem por parte da justiça, e enviarão a mim a appellação, e de mim irá a casa del-rey, meu Senhor; e eu vos enviarei a denunciação, que de lá vier. E outrosi avisareis aos moradores dessas ilhas que não vão com nenhuns agravos, nem appellações, nem estromentos, nem cartas testimunhaveis a nenhua justiça, senão a mim ou a meus ouvidores; porque a jurdição toda he minha civel e crime, e de mim irã as appellações das mortes dos homens e talhamentos de membros à casa del-rey, meu Senhor, porque vos, nem outro algum capitão, nam tem poder de matar, nem de mandar talhar membro. E nos outros casos vos tende a maneira susodicta; e qualquer que o contrario fizer, e em esto usurpar minha jurdição, pagara por cada vez, e cada hum, mil reis para minha chancelaria. E outro sim se o taballião de si errar em seu offício por falsidade, vos o sospendei do offício ate me fazerdes saber o erro, como he, e vos eu mandar a maneira que tenhaes. E outrosim sereis avisado, que se a essa ilha forem Diogo Lopez e Rodrigo de Baiona, sem vos mostrarem minha licença que os prendaes e tenhaes bem presos, até mo fazerdes saber, e vos mandar como façaes, e mos enviai presos à minha cadea. E quanto he à inquirição, que me qua enviastes, vos vede la o feito e o determinai, como virdes, que he direito. Comprindo todo assim, e pella guisa, que por mim he mandado sem nello pordes outra briga, nem embargo, porque assim he minha merce. Feito em minha villa de Lagos a dezanove dias de Maio. João de Gorizo o fez, anno do nacimento do Senhor de mil e quatrocentos e setenta .

 Indo-se depois, dali a alguns anos (que não podiam ser muitos), destas ilhas o dito Frei Gonçalo Velho para o Regno, pediu-as para os dois sobrinhos, que a elas trouxera consigo meninos e nelas deixava feitos já homens, Nuno Velho e Pero Velho, em idade e discrição que bem as podiam governar, fazendo conta que um ficaria por capitão de uma e outro da outra; porque ele, como se criara na corte, às abas dos reis e grandes senhores, e a natureza também o chamava, ia determinado de largar as ditas capitanias e contentar-se com estar ao bafo dos reis, como sempre estivera, e servi-los em velho, como fizera em mancebo.

Mas, propondo-lhe o Infante diante outro seu sobrinho, que em sua casa tinha, e os muitos serviços que dele tinha recebidos, e como era também seu sobrinho, filho de outra sua irmã, pareceu-lhe bem ao dito Frei Gonçalo Velho a razão do Infante e fez-lhe a vontade, aceitando a mercê que lhe fazia para seu sobrinho, que se chamava João Soares de Albergaria ; e, mandando-o chamar o Infante, lhe fez mercê, diante de seu tio Frei Gonçalo Velho, per sua livre vontade e voluntária renunciação, da capitania das ditas ilhas de Santa Maria e São Miguel, e, beijando o dito João Soares logo a mão ao Infante por esta mercê, que lhe fazia, ficou capitão eleito delas, e depois confirmado por sua carta patente, que lhe disso foi passada, por mandado do dito Infante e assinada por ele .

Além de ser certo indício da muita virtude e do grande e esforçado ânimo deste felicíssimo e primeiro Capitão, que foi destas duas primeiras ilhas dos Açores, pelas achar e descobrir a elas, e, segundo alguns dizem, as outras três, que já disse, mais certa prova é ainda do grande valor de sua ilustre pessoa deixá-las e largá-las livre e liberalmente em sua vida, como quem não deixava nada, pois mais magnânimo se mostra ser o homem em largar e dar o que tem e possui que em aceitar e tomar o que lhe oferecem. Assim ficou este felicíssimo capitão, de boa memória, no Regno, em serviço dos Reis e Infantes que tanto amava, vivendo ainda alguns anos. E depois de muito velho, Frei Gonçalo Velho, sendo-o na idade como no nome e costumes, acabou seus bem empregados anos de sua vida com a morte que a todos leva, dando sua alma a Deus, que tão ornada e acompanhada de virtudes e boas obras lha deu, para por elas, fundadas nos merecimentos de sua sagrada Paixão, lhe dar no Céu (como cremos que deu) a sua glória.

As armas do brazão deste Capitão Frei Gonçalo Velho e de sua progénia dos Velhos, de que todos os descendentes deles gozam, assim os do Regno como os destas duas ilhas de Santa Maria e de São Miguel, e de outras partes onde os há, são um escudo com o campo vermelho e nele cinco vieiras douradas em aspa, com sua merleta de ouro por divisa; e não têm elmo, com o mais que agora se costuma, porque parece que não se costumava naquele tempo antigo, senão somente o escudo com as armas nele; as quais armas dos Velhos são as dos ilustres Capitães da ilha de Santa Maria, que trazem e têm de seus antepassados, e principalmente deste primeiro Capitão da mesma ilha, Frei Gonçalo Velho; e estão postas na igreja de Nossa Senhora da Assunção, da Vila do Porto, da dita ilha, na capela de Duarte Nunes Velho, que deles descendia. Mas depois vi outras da mesma maneira no brazão de Matias Nunes Velho Cabral, com elmo aberto guarnido de ouro, paquife de ouro e vermelho e prata e púrpura, e por timbre um chapéu pardo com uma vieira de ouro na borda da volta, que é o timbre dos Velhos .

DA VIDA E FEITOS DO ILUSTRE FREI GONÇALO VELHO, COMENDADOR DO CASTELO DE ALMOUROL E PRIMEIRO CAPITÃO DA ILHA DE SANTA MARIA E DEPOIS DA DE SÃO MIGUEL, PELAS DESCOBRIR AMBAS, E (SEGUNDO ALGUNS DIZEM) ALGUMAS OUTRAS DOS AÇORES

O muito ilustre e valoroso cavaleiro Frei Gonçalo Velho, comendador do castelo de Almourol, que está junto do grande rio Tejo, junto da vila de Tancos, foi da nobre e antiga geração dos Velhos, os quais, nos reinos de Portugal, são fidalgos muito principais, de cota de armas e de solar conhecidos, e sempre serviram os Reis passados nos melhores ofícios de sua Casa; um dos quais, chamado Frei Gonçalo Velho, comendador de Almourol era da casa do Infante D. Henrique e tão privado seu e aceito a eles, pelos serviços que ele e seus avós tinham feito à Coroa e a ele, dito Infante, e pelo que conhecia das partes e esforço, saber e prudência do dito Frei Gonçalo Velho, que, determinando descobrir estas ilhas dos Açores, não achou outro mais suficiente em sua casa a quem cometesse o cargo de coisa de tanta importância, como esta era, senão a ele, o que basta somente para prova de quem ele era e podia ser.

E, como atrás tenho contado, o mandou o Infante da vila de Sagres, do Algarve, onde, então, estava, a descobrir a ilha de Santa Maria e, não achando da primeira viagem senão somente os baixos de áspera penedia a que chamou as Formigas, pela razão já dita, se tornou ao Algarve, donde depois foi enviado pelo mesmo Infante ao mesmo descobrimento; e desta segunda vez achou a ilha a que pôs nome Santa Maria, pela achar em seu dia, de sua Assunção, a quinze de Agosto do ano do Senhor de mil e quatrocentos e trinta e dois, no tempo que reinava em Portugal D. João, de Boa Memória, décimo rei em número e primeiro do nome, como já fica dito. E certo eu tenho para mim que, ordinariamente, não faz Deus tal mercê de mostrar uma só ilha, nunca descoberta, a alguém, senão a pessoa que tenha grandes partes e virtudes, quanto mais muitas ilhas, como se diz que quis mostrar a este valoroso Capitão, como irei contando.

Assim que a primeira que achou foi a de Santa Maria e tornando com a nova do novo descobrimento ao Infante, ele lhe fez mercê dela, fazendo-o seu Capitão e Governador, com o qual cargo, depois de mandar lançar gado e outras coisas nela, o mandou a povoá-la e cultivá-la, o que ele fez com grande saber e diligência, trazendo consigo a Nuno Velho e a Pero Velho, seus sobrinhos, filhos de uma sua irmã, que eram ainda meninos. E fez cultivar e povoar a ilha de nobre gente, tratando-a com muito amor, e governado-os com muita brandura, pela qual razão era de toda obedecido e mui querido.

E, indo outra vez ao Reino, o tornou o dito Infante a mandar descobrir esta ilha de São Miguel, por sentir dele que para tudo era; o qual, obedecendo aos mandados e rogos do Infante, alcançou de Deus achá-la, como direi adiante, quando dela particularmente tratar, e fez-lhe o Infante mercê da capitania dela, juntamente com a da ilha de Santa Maria, ficando Capitão de ambas, mas, por ser, então, mais povoada a de Santa Maria, que primeiro fora achada, residia o mais do tempo nela e lá morava .

E tornando dela ao Regno, dar informação do que nela fazia e havia, e, porventura, de outras conjecturas que sentiria de haver ao redor, perto destas, mais ilhas, ou por isso, ou pelo que o Infante tinha entendido de as poder haver, o tornou a mandar ao descobrimento delas; e comummente se diz (ainda que em seu lugar direi o que outros dizem e sentem por mais certeza) que, vindo o dito Frei Gonçalo Velho a esta empresa mandado do dito Infante, descobriu primeiro a ilha Terceira, e depois a de São Jorge e a Graciosa, com que o Infante lhe ficou mais afeiçoado, fazendo-lhe cada vez mais mercês e favores, quando o viu diante de si tão ditoso e bem afortunado descobridor de tantas ilhas, de que se esperava acrescentamento e grande provimento e bem do Regno. E logo o enviou com alguns navios carregados de gado de diversa sorte para o lançar nelas antes de se povoarem, porque, multiplicando na terra os povoadores que viessem a elas, passados alguns tempos, achassem já mantimentos e instrumentos, para se poderem ajudar deles quando a beneficiassem e cultivassem; pelo que, quando, depois, el-Rei D. Afonso, duodécimo Rei de Portugal e quinto do nome, deu licença que todas se povoassem no ano de 1449 , pela fertilidade e fresquidão que delas se contava, e por estas cousas que já nelas havia, folgavam de vir a elas e, principalmente, gente muito honrada e nobre, de que todas se povoaram em poucos anos.

Andando os homens nestas ilhas roçando os espessos matos e caçando, não com açores, nem gaviões, nem outras aves de altanaria, as outras aves que neles havia, senão com as próprias mãos, com que as tomavam sem trabalho por elas não fugirem, pelo pouco uso que de ver gente tinham, e beneficiando a terra, semeando-a de trigo, cevada e centeio e de diversos legumes, armando e tecendo suas casas, como fazem os curiosos e cuidadosos passarinhos antre o alto arvoredo, temperando com aquelas soidades dos matos e novas e estranhas ilhas as que tinham de suas terras naturais, donde vinham, uns com determinação de tornar às que deixaram, outros de viver e morrer nas que novamente acharam e povoavam, apostados com aquela colónia de novas terras esquecer as saudades das suas antigas, e estando no ano de 1460 o felicíssimo Capitão das duas primeiras ilhas na de Santa Maria, onde tinha seu principal assento, ocupado, com o mesmo cuidado do mar, com machados e foices roçadouras, roçar e cortar as empinadas árvores e, com enxadas e fogo, extirpar e dissipar e destruir suas grudadas raízes, e romper as terras com o curvo arado, experimentando das sementes qual melhor frutificava, do primeiro alvará que se acha e sabe mandar-lhe o Infante do Regno para o norte do governo destas ilhas, que eram suas, e principalmente destas duas, de Santa Maria e São Miguel, de que o fizera Capitão e Governador, direi aqui, por ser cousa antiga, as palavras antigas, todas finalmente notadas, que são os seguintes: “Eu, o Iffante D. Henrique, duque de Viseu e senhor de Covilhãa, mando a vós, Frei Gonçalo Velho, meu cavaleiro e capitão, por mim, em minhas ilhas de Santa Maria e de Sam Miguel dos açores, que tenhaes esta maneira, a juso scripta acerca da justiça e feitos cives.

Vós mandareis aos juizes da terra que oição as partes que em litígio forem, as mandem vir presente si, e lhes façã comprimento de direito. E se das sentenças, que os juizes derem quiserem appellar, appellem para vos, e vos confirmai as sentenças dos juizes ou as corregei, qual virdes que he direito. E se de vossa sentença elles quiserem appellar, vos lhe nã recebereis appellação, nem lhe dareis salvo estromento dagravo ou carta testimunhavel para mim, com vossa reposta, e então eu denunciarei, o que vir, que he direito, e vos mandarei o que façais; porém vós nã deixareis de mandar enxuquatar as dictas sentenças, posto que com os estromentos ou cartas testimunhaveis a mim venhã. E se for em feito crime, em que algum, ou algua faça o que não deve, e por que mereçam pena de justiça, vos mandai prender e apenar em dinheiro, e degradar para onde vos prouver, e mandar açoutar aquelles, que o merecem, sem dardes pera mim appellação. E se for feito tã crime, per que mereçã mortes ou talhamento de membro, vos mandareis aos juizes, que dem a sentença e os julguem, e da sentença, que derem, appellem por parte da justiça, e enviarão a mim a appellação, e de mim irá a casa del-rey, meu Senhor; e eu vos enviarei a denunciação, que de lá vier. E outrosi avisareis aos moradores dessas ilhas que não vão com nenhuns agravos, nem appellações, nem estromentos, nem cartas testimunhaveis a nenhua justiça, senão a mim ou a meus ouvidores; porque a jurdição toda he minha civel e crime, e de mim irã as appellações das mortes dos homens e talhamentos de membros à casa del-rey, meu Senhor, porque vos, nem outro algum capitão, nam tem poder de matar, nem de mandar talhar membro. E nos outros casos vos tende a maneira susodicta; e qualquer que o contrario fizer, e em esto usurpar minha jurdição, pagara por cada vez, e cada hum, mil reis para minha chancelaria. E outro sim se o taballião de si errar em seu offício por falsidade, vos o sospendei do offício ate me fazerdes saber o erro, como he, e vos eu mandar a maneira que tenhaes. E outrosim sereis avisado, que se a essa ilha forem Diogo Lopez e Rodrigo de Baiona, sem vos mostrarem minha licença que os prendaes e tenhaes bem presos, até mo fazerdes saber, e vos mandar como façaes, e mos enviai presos à minha cadea. E quanto he à inquirição, que me qua enviastes, vos vede la o feito e o determinai, como virdes, que he direito. Comprindo todo assim, e pella guisa, que por mim he mandado sem nello pordes outra briga, nem embargo, porque assim he minha merce. Feito em minha villa de Lagos a dezanove dias de Maio. João de Gorizo o fez, anno do nacimento do Senhor de mil e quatrocentos e setenta .

Indo-se depois, dali a alguns anos (que não podiam ser muitos), destas ilhas o dito Frei Gonçalo Velho para o Regno, pediu-as para os dois sobrinhos, que a elas trouxera consigo meninos e nelas deixava feitos já homens, Nuno Velho e Pero Velho, em idade e discrição que bem as podiam governar, fazendo conta que um ficaria por capitão de uma e outro da outra; porque ele, como se criara na corte, às abas dos reis e grandes senhores, e a natureza também o chamava, ia determinado de largar as ditas capitanias e contentar-se com estar ao bafo dos reis, como sempre estivera, e servi-los em velho, como fizera em mancebo.

Mas, propondo-lhe o Infante diante outro seu sobrinho, que em sua casa tinha, e os muitos serviços que dele tinha recebidos, e como era também seu sobrinho, filho de outra sua irmã, pareceu-lhe bem ao dito Frei Gonçalo Velho a razão do Infante e fez-lhe a vontade, aceitando a mercê que lhe fazia para seu sobrinho, que se chamava João Soares de Albergaria ; e, mandando-o chamar o Infante, lhe fez mercê, diante de seu tio Frei Gonçalo Velho, per sua livre vontade e voluntária renunciação, da capitania das ditas ilhas de Santa Maria e São Miguel, e, beijando o dito João Soares logo a mão ao Infante por esta mercê, que lhe fazia, ficou capitão eleito delas, e depois confirmado por sua carta patente, que lhe disso foi passada, por mandado do dito Infante e assinada por ele .

Além de ser certo indício da muita virtude e do grande e esforçado ânimo deste felicíssimo e primeiro Capitão, que foi destas duas primeiras ilhas dos Açores, pelas achar e descobrir a elas, e, segundo alguns dizem, as outras três, que já disse, mais certa prova é ainda do grande valor de sua ilustre pessoa deixá-las e largá-las livre e liberalmente em sua vida, como quem não deixava nada, pois mais magnânimo se mostra ser o homem em largar e dar o que tem e possui que em aceitar e tomar o que lhe oferecem. Assim ficou este felicíssimo capitão, de boa memória, no Regno, em serviço dos Reis e Infantes que tanto amava, vivendo ainda alguns anos. E depois de muito velho, Frei Gonçalo Velho, sendo-o na idade como no nome e costumes, acabou seus bem empregados anos de sua vida com a morte que a todos leva, dando sua alma a Deus, que tão ornada e acompanhada de virtudes e boas obras lha deu, para por elas, fundadas nos merecimentos de sua sagrada Paixão, lhe dar no Céu (como cremos que deu) a sua glória.

As armas do brazão deste Capitão Frei Gonçalo Velho e de sua progénia dos Velhos, de que todos os descendentes deles gozam, assim os do Regno como os destas duas ilhas de Santa Maria e de São Miguel, e de outras partes onde os há, são um escudo com o campo vermelho e nele cinco vieiras douradas em aspa, com sua merleta de ouro por divisa; e não têm elmo, com o mais que agora se costuma, porque parece que não se costumava naquele tempo antigo, senão somente o escudo com as armas nele; as quais armas dos Velhos são as dos ilustres Capitães da ilha de Santa Maria, que trazem e têm de seus antepassados, e principalmente deste primeiro Capitão da mesma ilha, Frei Gonçalo Velho; e estão postas na igreja de Nossa Senhora da Assunção, da Vila do Porto, da dita ilha, na capela de Duarte Nunes Velho, que deles descendia. Mas depois vi outras da mesma maneira no brazão de Matias Nunes Velho Cabral, com elmo aberto guarnido de ouro, paquife de ouro e vermelho e prata e púrpura, e por timbre um chapéu pardo com uma vieira de ouro na borda da volta, que é o timbre dos Velhos .