Sendo feito Capitão das duas ilhas, de Santa Maria e de São Miguel, João Soares de Albergaria, sobrinho de Frei Gonçalo Velho, filho de uma sua irmã , preparando as cousas necessárias para sua partida, foi enviado pelo Infante D. Henrique a residir nelas e governá-las com justiça.

Partiu do Regno com sua mulher, chamada Breatiz Godiz, de nobre geração, com quem era casado, trazendo consigo também o dito Capitão João Soares um seu sobrinho, chamado Filipe Soares, casado com Constança d’Agrela, o qual (como já disse) mataram dois negros seus, estando ele crestando uma abelheira. E, vindo ter a estas ilhas, exercitava sua jurdição, visitando ora uma, ora outra, provendo-as do necessário para acrescentamento de seus frutos e rendas e bem de todos os moradores delas, residindo, principalmente, o mais do tempo na de Santa Maria, que, então, era mais povoada e principal, por ser primeiro descoberta e habitada.

Dali a poucos anos veio a enfermar a dita sua mulher, Breatiz Godiz, e não podendo achar, nem sentindo melhoria em sua enfermidade, a levou o dito Capitão à ilha da Madeira, para lá lhe buscar alguns remédios de médicos, que cá, nestas ilhas, ainda não havia. E fazendo grandes gastos em sua cura, veio a praticar com ela que seria necessário vender a capitania de uma destas duas ilhas, e parecendo-lhe bem, tratou este negócio com Rui Gonçalves de Câmara, filho de João Gonçalves Zargo, primeiro Capitão da ilha da Madeira, que, então, estava na mesma ilha, e concertando-se ambos, com procuração que lhe fez para isso a dita sua mulher, lhe vendeu esta de São Miguel; e, porque há diversas opiniões na contia do preço dela, dizendo uns mais, outros menos, deixo a resolução disso para quando tratar do dito Rui Gonçalves de Câmara e desta ilha de São Miguel, de que ele ficou Capitão por esta compra, confirmada depois em a cidade de Évora pela Infanta D. Breatiz, tutor e curador do Duque D. Diogo, seu filho, que ainda naquele tempo era de pouca idade, mestre da Cavalaria da Ordem de Cristo, de cujo mestrado eram estas ilhas, feita na era do Senhor de mil e quatrocentos e setenta e quatro anos, aos dez dias de Março.

Depois de feita a dita venda, como a morte e a vida estão nas mãos de Deus e os que têm seus dias cheios na sua divina presciência não os pode estender a ciência humana, por mais gastos e remédios que se fizeram na cura da dita Breatiz Godiz, não pôde escapar da morte, fim de todas as cousas, e faleceu na dita ilha da Madeira, onde foi sepultada, com as exéquias e honras funerais que a tal pessoa se deviam, com grande sentimento e saudade do Capitão, seu marido.

Depois do falecimento desta generosa e virtuosa mulher, partindo o Capitão João Soares, seu marido, da ilha da Madeira para o Regno, ficando Rui Gonçalves de Câmara Capitão da ilha de São Miguel e o dito João Soares somente da de Santa Maria, por ser neste tempo falecido o Infante D. Henrique, que o fizera capitão das duas ilhas, e era já mestre da Ordem de Cristo o Duque D. Diogo, filho da Infante D. Breatis, viúva, confirmou a doação, ou a houve de novo da dita Infante aos doze de Maio da dita era de mil e quatrocentos e setenta e quatro anos e confirmada pelo Duque, seu filho, depois que teve idade para isso, aos quatro (sic) dias do mês de Junho do ano de mil e quatrocentos e noventa (sic) ; cujo teor é o seguinte: “Eu, a Infante D. Breatis, tutor e curador do Duque meu filho, &. Faço saber a quantos esta minha carta virem e o conhecimento dela pertencer que eu dou cárrego a João Soares, cavaleiro de sua casa, na ilha de Santa Maria, que ele seja capitão em ela, assim pela guisa que o é em sua ilha da Madeira João Gonçalves, e que ele a mantenha por o dito Senhor em justiça e em direito, e, morrendo ele, a mim praz que seu filho primeiro ou segundo tenha este cárrego per a guisa suso dita; e assim de descendente em descendente, por linha direita. E sendo em tal idade o dito seu filho que a não possa reger, que o dito Senhor ou seus herdeiros porão aí quem a reja, até que ele seja em idade para a reger.

Item me praz que eles tenham em esta dita terra a jurisdição, pelo dito Senhor, meu filho, do civel e crime, reservando morte ou talhamento de membro, que por apelação venha para o dito Senhor; porém, sob embargo da dita jurisdição, me praz que os mandados todos do dito Senhor e correição sejam aí cumpridos, assim como coisa própria. Outrossi me praz que o dito João Soares haja para si todos os moinhos que houver em esta ilha, de que lhe assi dou cárrego, e que ninguém faça aí moinhos senão ele, ou quem a ele aprouver; e em isto se não entenderá mó, que a faça quem quiser, não moendo outrem em ela; e não façam aí atafona.

Item me praz que todolos fornos de pão, em que houver poia, sejam seus; e porém não embargue quem quiser fazer fornalha para seu pão, que a faça e não para outro nenhum. Item me praz que tendo ele sal para vender, o não possa aí vender outrem, dando ele a rezão do meio real de prata o alqueire e mais não; e quando o não tiver que o vendam os da ilha à sua vontade até que ele o tenha. Outrossi me praz que todo o que houver de renda o dito Senhor em a dita ilha, ele haja de dez um. E o que o dito Senhor há-de haver na dita ilha é conteúdo no foral que para ela mandei fazer; e per esta guisa me praz que haja esta renda seu filho ou outro seu descendente de linha direita, que o dito cárrego tiver. Item me praz que ele possa dar por suas cartas a terra desta ilha forra, pelo foral da dita ilha, a quem lhe aprouver, com tal condição que aquele a que a der a dita terra, aproveite a sua cinco anos, e não a aproveitando, que a possa dar a outrem e depois que aproveitada for, se a deixar por aproveitar até outros cinco anos, que isso mesmo a possa dar a outrem. E isto não embargue ao dito Senhor que, se houver terra por aproveitar que não seja dada, que a possa dar a quem sua mercê fôr; e assi me praz que as dê o seu filho ou herdeiros descendentes que o dito cárrego tiveram. E mais me praz que os vizinhos possam vender suas herdades aproveitadas a quem lhe aprouver; e, se quiserem ir de uma ilha para outra, que se vão sem lhe pôrem nenhum embargo. E se fizer malefício algum homem em cada uma das ilhas, que mereça ser açoitado e fugir para outra ilha, que seja entregue onde tem o malefício, se requerido fôr, e poder ser preso, para se fazer dele cumprimento de direito. E se dever dívida, onde quer que estiver, se faça dele cumprimento de direito. Outrossi me praz que os moradores da dita ilha se aproveitem dos gados bravos que em ela andarem, segundo lhe ordenará o dito João Soares e os que depois ele, por o dito Senhor e por seus herdeiros, o cárrego tiverem; ressalvando os gados que andarem nos ilhéus, ou em outro lugar terrado que o senhorio o lance. E isso mesmo me praz que os gados mansos pasçam, assim em uma parte como em outra, trazendo-os por mão que não façam dano, e, se o fizerem, que o paguem a seu dono. Feita em a cidade de Évora, a doze de Maio. Álvaro Anes a fez, ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quatrocentos e setenta e quatro. A qual carta, vista por mim, eu a confirmo e eu por confirmada assi e pela maneira que em ela é conteúdo, sem outro embargo que uns e outros a elo ponham. Dada em vila de Torres Vedras, a vinte e quatro dias de Junho. Pero Lopes a fez ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quatrocentos e noventa e três anos . E eu João da Fonseca, escrivão da fazenda do dito Senhor, a fiz escrever e aqui subscrevi”.

Alguns afirmam que, estando, então, em Portugal o dito Capitão João Soares, casou aí a segunda vez, e outros conjecturam que em outro tempo, como logo adiante direi; mas, como quer que fosse, depois de casado ou por casar, ele tornou à ilha de Santa Maria, ou com sua mulher, ou sem ela.

E, estando algum tempo na ilha, contam alguns que, andando um dia passeando à sua porta, veio uma nau de castelhanos onde vinha um seu cunhado, outros dizem seu genro, que o queria matar; e saíram em terra como quarenta homens armados que, sem serem sentidos, deram de súbito com ele a horas de meio dia, e, tirando alguns tiros com seus arcabuzes, sem lhe empecerem, nem acertarem, acudiu um mancebo, que se chamava António Fernandes, com um montante, e tão valorosamente o fizeram o Capitão João Soares e ele e outros poucos da terra, que levaram os imigos até à rocha da Concepção, deitando dois deles pela rocha abaixo, que logo morreram, acolhendo-se os mais aos barcos e neles à sua nau.

O que bem podia acontecer, porque outros dizem que, estando o dito Capitão João Soares, no tempo em que havia guerras antre Portugal e Castela, veio ter aí um navio de castelhanos, que quiseram entrar, e o dito Capitão se defendeu deles por espaço de dois ou três dias com um negro e quatro ou cinco homens, que somente tinha consigo, e, como eram tão poucos, o cativaram por fim os castelhanos, depois de muito desvelado e cansado de pelejar, e o levaram a Castela, levando com ele o negro; e dos mais que tinha em sua companhia não se sabe, se vendo a coisa mal parada e sem remédio, se acolheram à serra e ficaram na ilha, ou se foram também cativos com o seu Capitão, que lá em Castela se resgatou; e, depois de ter pago o resgate e estar livre, daí a oito dias se fizeram as pazes com Portugal, as quais pazes el-Rei de Portugal D. Afonso, o quinto do nome, fez com el-Rei D. Fernando de Castela, marido da Rainha D. Isabel, no fim do ano do Senhor de mil e quatrocentos e oitenta, como conta o curioso cronista Garcia de Rezende no capítulo vigésimo da sua Crónica, que fez do grande Rei de Portugal D. João, segundo do nome.

Tornando de Castela para Portugal livre o Capitão João Soares, onde estando, e sendo já muito velho, se casou por mandado de el-Rei, com D. Branca de Sousa, filha de João de Sousa Falcão, fidalgo da casa de el-Rei, morador em Alter do Chão, (parente muito chegado do Barão velho e do suave e doce poeta Cristóvão Falcão, que fez a afamada égloga das primeiras sílabas do seu nome, chamada Cristal) e de D. Mécia de Almada, sua mulher, prima coirmã do Conde de Abranches. A qual D. Branca era donzela da Senhora D. Filipa, tia da Rainha; e dotou em casamento o dito João de Sousa Falcão a sua filha, D. Branca de Sousa, com o dito Capitão João Soares, cinco mil dobras acostumadas, de cento e vinte réis cada uma dobra, das quais eram duas mil que a dita Senhora D. Filipa lhe deu de seu casamento e três mil que el-Rei lhe tinha prometidas; o qual contrato de matrimónio foi celebrado aos vinte dias do mês de Junho do ano de mil e quatrocentos e noventa e dois , na cidade de Lisboa, em as pousadas do mesmo João Soares, Capitão da dita ilha de Santa Maria, pelo que parece ser mais verdadeiro ser este o tempo certo e não o dantes, como outros disseram, em que se celebrou este dito casamento; e, então, lhe confirmou o Duque, que já mandava, a carta de sua capitania, como nela tenho atrás referido, estando na vila de Torres Vedras a vinte e quatro dias de Junho do ano do Senhor de mil e quatrocentos e noventa e três; feita a confirmação por Pedro Lopes e subscrita por João da Fonseca, escrivão da fazenda do dito senhor Duque . 

Depois de casados, João Soares e D. Branca de Sousa se foram para a ilha de Santa Maria, com toda sua casa e família, onde dizem que ele viveu com ela sete anos, e houveram de seu matrimónio dois filhos: João Soares, morgado, que lhe sucedeu na casa e capitania, e Pedro Soares, que de Lisboa se foi para a Índia e lá faleceu, e duas filhas, D. Maria e D. Violante. D. Maria, que era a mais velha de todos eles, casou em Portugal com um nobre homem, feitor de el-Rei, chamado João Fernandes, de que houve uma filha, que casou com um fidalgo, chamado D. João, no mesmo regno, e não pude saber se teve mais filhos ou filhas.

A D. Violante, que era a mais moça de todos os filhos do Capitão João Soares, casou na mesma ilha com um castelhano, que aí veio ter das Índias de Castela, muito rico, o qual daí se tornou para as mesmas Índias, e este se suspeita ser o que depois veio contra o Capitão na armada de Castela, que atrás disse, por se ir da ilha escandalizado dele, ou no tempo daquelas guerras ou outras que depois foram antre Portugal e Castela; ainda que outros querem que acontecesse isto ao Capitão, seu filho, João Soares, do mesmo nome. E D. Violante, ficando prenhe, pariu um filho que viveu somente seis ou sete meses, e ela faleceu passado um ano depois da partida do marido.

E, porquanto, quando casou o Capitão João Soares com D. Branca de Sousa, foi feito contrato que, morrendo ele primeiro, lhe ficassem a ela de arras trezentos mil réis, os quais havia de tomar de toda a fazenda antes de se partir; ela os tomou em terras (como atrás fica dito), por falecimento do dito João Soares, o qual faleceu na mesma ilha de Santa Maria, deixando bom nome e exemplo de vida e virtudes a seus sucessores, sendo de idade de oitenta anos para cima.

DA VIDA E FEITOS DO ILUSTRE JOÃO SOARES DE ALBERGARIA, PRIMEIRO DO NOME E SEGUNDO CAPITÃO DA ILHA DE SANTA MARIA E DOS FILHOS QUE TEVE

Sendo feito Capitão das duas ilhas, de Santa Maria e de São Miguel, João Soares de Albergaria, sobrinho de Frei Gonçalo Velho, filho de uma sua irmã , preparando as cousas necessárias para sua partida, foi enviado pelo Infante D. Henrique a residir nelas e governá-las com justiça.

Partiu do Regno com sua mulher, chamada Breatiz Godiz, de nobre geração, com quem era casado, trazendo consigo também o dito Capitão João Soares um seu sobrinho, chamado Filipe Soares, casado com Constança d’Agrela, o qual (como já disse) mataram dois negros seus, estando ele crestando uma abelheira. E, vindo ter a estas ilhas, exercitava sua jurdição, visitando ora uma, ora outra, provendo-as do necessário para acrescentamento de seus frutos e rendas e bem de todos os moradores delas, residindo, principalmente, o mais do tempo na de Santa Maria, que, então, era mais povoada e principal, por ser primeiro descoberta e habitada.

Dali a poucos anos veio a enfermar a dita sua mulher, Breatiz Godiz, e não podendo achar, nem sentindo melhoria em sua enfermidade, a levou o dito Capitão à ilha da Madeira, para lá lhe buscar alguns remédios de médicos, que cá, nestas ilhas, ainda não havia. E fazendo grandes gastos em sua cura, veio a praticar com ela que seria necessário vender a capitania de uma destas duas ilhas, e parecendo-lhe bem, tratou este negócio com Rui Gonçalves de Câmara, filho de João Gonçalves Zargo, primeiro Capitão da ilha da Madeira, que, então, estava na mesma ilha, e concertando-se ambos, com procuração que lhe fez para isso a dita sua mulher, lhe vendeu esta de São Miguel; e, porque há diversas opiniões na contia do preço dela, dizendo uns mais, outros menos, deixo a resolução disso para quando tratar do dito Rui Gonçalves de Câmara e desta ilha de São Miguel, de que ele ficou Capitão por esta compra, confirmada depois em a cidade de Évora pela Infanta D. Breatiz, tutor e curador do Duque D. Diogo, seu filho, que ainda naquele tempo era de pouca idade, mestre da Cavalaria da Ordem de Cristo, de cujo mestrado eram estas ilhas, feita na era do Senhor de mil e quatrocentos e setenta e quatro anos, aos dez dias de Março.

Depois de feita a dita venda, como a morte e a vida estão nas mãos de Deus e os que têm seus dias cheios na sua divina presciência não os pode estender a ciência humana, por mais gastos e remédios que se fizeram na cura da dita Breatiz Godiz, não pôde escapar da morte, fim de todas as cousas, e faleceu na dita ilha da Madeira, onde foi sepultada, com as exéquias e honras funerais que a tal pessoa se deviam, com grande sentimento e saudade do Capitão, seu marido.

Depois do falecimento desta generosa e virtuosa mulher, partindo o Capitão João Soares, seu marido, da ilha da Madeira para o Regno, ficando Rui Gonçalves de Câmara Capitão da ilha de São Miguel e o dito João Soares somente da de Santa Maria, por ser neste tempo falecido o Infante D. Henrique, que o fizera capitão das duas ilhas, e era já mestre da Ordem de Cristo o Duque D. Diogo, filho da Infante D. Breatis, viúva, confirmou a doação, ou a houve de novo da dita Infante aos doze de Maio da dita era de mil e quatrocentos e setenta e quatro anos e confirmada pelo Duque, seu filho, depois que teve idade para isso, aos quatro (sic) dias do mês de Junho do ano de mil e quatrocentos e noventa (sic) ; cujo teor é o seguinte: “Eu, a Infante D. Breatis, tutor e curador do Duque meu filho, &. Faço saber a quantos esta minha carta virem e o conhecimento dela pertencer que eu dou cárrego a João Soares, cavaleiro de sua casa, na ilha de Santa Maria, que ele seja capitão em ela, assim pela guisa que o é em sua ilha da Madeira João Gonçalves, e que ele a mantenha por o dito Senhor em justiça e em direito, e, morrendo ele, a mim praz que seu filho primeiro ou segundo tenha este cárrego per a guisa suso dita; e assim de descendente em descendente, por linha direita. E sendo em tal idade o dito seu filho que a não possa reger, que o dito Senhor ou seus herdeiros porão aí quem a reja, até que ele seja em idade para a reger.

Item me praz que eles tenham em esta dita terra a jurisdição, pelo dito Senhor, meu filho, do civel e crime, reservando morte ou talhamento de membro, que por apelação venha para o dito Senhor; porém, sob embargo da dita jurisdição, me praz que os mandados todos do dito Senhor e correição sejam aí cumpridos, assim como coisa própria. Outrossi me praz que o dito João Soares haja para si todos os moinhos que houver em esta ilha, de que lhe assi dou cárrego, e que ninguém faça aí moinhos senão ele, ou quem a ele aprouver; e em isto se não entenderá mó, que a faça quem quiser, não moendo outrem em ela; e não façam aí atafona.

Item me praz que todolos fornos de pão, em que houver poia, sejam seus; e porém não embargue quem quiser fazer fornalha para seu pão, que a faça e não para outro nenhum. Item me praz que tendo ele sal para vender, o não possa aí vender outrem, dando ele a rezão do meio real de prata o alqueire e mais não; e quando o não tiver que o vendam os da ilha à sua vontade até que ele o tenha. Outrossi me praz que todo o que houver de renda o dito Senhor em a dita ilha, ele haja de dez um. E o que o dito Senhor há-de haver na dita ilha é conteúdo no foral que para ela mandei fazer; e per esta guisa me praz que haja esta renda seu filho ou outro seu descendente de linha direita, que o dito cárrego tiver. Item me praz que ele possa dar por suas cartas a terra desta ilha forra, pelo foral da dita ilha, a quem lhe aprouver, com tal condição que aquele a que a der a dita terra, aproveite a sua cinco anos, e não a aproveitando, que a possa dar a outrem e depois que aproveitada for, se a deixar por aproveitar até outros cinco anos, que isso mesmo a possa dar a outrem. E isto não embargue ao dito Senhor que, se houver terra por aproveitar que não seja dada, que a possa dar a quem sua mercê fôr; e assi me praz que as dê o seu filho ou herdeiros descendentes que o dito cárrego tiveram. E mais me praz que os vizinhos possam vender suas herdades aproveitadas a quem lhe aprouver; e, se quiserem ir de uma ilha para outra, que se vão sem lhe pôrem nenhum embargo. E se fizer malefício algum homem em cada uma das ilhas, que mereça ser açoitado e fugir para outra ilha, que seja entregue onde tem o malefício, se requerido fôr, e poder ser preso, para se fazer dele cumprimento de direito. E se dever dívida, onde quer que estiver, se faça dele cumprimento de direito. Outrossi me praz que os moradores da dita ilha se aproveitem dos gados bravos que em ela andarem, segundo lhe ordenará o dito João Soares e os que depois ele, por o dito Senhor e por seus herdeiros, o cárrego tiverem; ressalvando os gados que andarem nos ilhéus, ou em outro lugar terrado que o senhorio o lance. E isso mesmo me praz que os gados mansos pasçam, assim em uma parte como em outra, trazendo-os por mão que não façam dano, e, se o fizerem, que o paguem a seu dono. Feita em a cidade de Évora, a doze de Maio. Álvaro Anes a fez, ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quatrocentos e setenta e quatro. A qual carta, vista por mim, eu a confirmo e eu por confirmada assi e pela maneira que em ela é conteúdo, sem outro embargo que uns e outros a elo ponham. Dada em vila de Torres Vedras, a vinte e quatro dias de Junho. Pero Lopes a fez ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quatrocentos e noventa e três anos . E eu João da Fonseca, escrivão da fazenda do dito Senhor, a fiz escrever e aqui subscrevi”.

Alguns afirmam que, estando, então, em Portugal o dito Capitão João Soares, casou aí a segunda vez, e outros conjecturam que em outro tempo, como logo adiante direi; mas, como quer que fosse, depois de casado ou por casar, ele tornou à ilha de Santa Maria, ou com sua mulher, ou sem ela.

E, estando algum tempo na ilha, contam alguns que, andando um dia passeando à sua porta, veio uma nau de castelhanos onde vinha um seu cunhado, outros dizem seu genro, que o queria matar; e saíram em terra como quarenta homens armados que, sem serem sentidos, deram de súbito com ele a horas de meio dia, e, tirando alguns tiros com seus arcabuzes, sem lhe empecerem, nem acertarem, acudiu um mancebo, que se chamava António Fernandes, com um montante, e tão valorosamente o fizeram o Capitão João Soares e ele e outros poucos da terra, que levaram os imigos até à rocha da Concepção, deitando dois deles pela rocha abaixo, que logo morreram, acolhendo-se os mais aos barcos e neles à sua nau.

O que bem podia acontecer, porque outros dizem que, estando o dito Capitão João Soares, no tempo em que havia guerras antre Portugal e Castela, veio ter aí um navio de castelhanos, que quiseram entrar, e o dito Capitão se defendeu deles por espaço de dois ou três dias com um negro e quatro ou cinco homens, que somente tinha consigo, e, como eram tão poucos, o cativaram por fim os castelhanos, depois de muito desvelado e cansado de pelejar, e o levaram a Castela, levando com ele o negro; e dos mais que tinha em sua companhia não se sabe, se vendo a coisa mal parada e sem remédio, se acolheram à serra e ficaram na ilha, ou se foram também cativos com o seu Capitão, que lá em Castela se resgatou; e, depois de ter pago o resgate e estar livre, daí a oito dias se fizeram as pazes com Portugal, as quais pazes el-Rei de Portugal D. Afonso, o quinto do nome, fez com el-Rei D. Fernando de Castela, marido da Rainha D. Isabel, no fim do ano do Senhor de mil e quatrocentos e oitenta, como conta o curioso cronista Garcia de Rezende no capítulo vigésimo da sua Crónica, que fez do grande Rei de Portugal D. João, segundo do nome.

Tornando de Castela para Portugal livre o Capitão João Soares, onde estando, e sendo já muito velho, se casou por mandado de el-Rei, com D. Branca de Sousa, filha de João de Sousa Falcão, fidalgo da casa de el-Rei, morador em Alter do Chão, (parente muito chegado do Barão velho e do suave e doce poeta Cristóvão Falcão, que fez a afamada égloga das primeiras sílabas do seu nome, chamada Cristal) e de D. Mécia de Almada, sua mulher, prima coirmã do Conde de Abranches. A qual D. Branca era donzela da Senhora D. Filipa, tia da Rainha; e dotou em casamento o dito João de Sousa Falcão a sua filha, D. Branca de Sousa, com o dito Capitão João Soares, cinco mil dobras acostumadas, de cento e vinte réis cada uma dobra, das quais eram duas mil que a dita Senhora D. Filipa lhe deu de seu casamento e três mil que el-Rei lhe tinha prometidas; o qual contrato de matrimónio foi celebrado aos vinte dias do mês de Junho do ano de mil e quatrocentos e noventa e dois , na cidade de Lisboa, em as pousadas do mesmo João Soares, Capitão da dita ilha de Santa Maria, pelo que parece ser mais verdadeiro ser este o tempo certo e não o dantes, como outros disseram, em que se celebrou este dito casamento; e, então, lhe confirmou o Duque, que já mandava, a carta de sua capitania, como nela tenho atrás referido, estando na vila de Torres Vedras a vinte e quatro dias de Junho do ano do Senhor de mil e quatrocentos e noventa e três; feita a confirmação por Pedro Lopes e subscrita por João da Fonseca, escrivão da fazenda do dito senhor Duque .

Depois de casados, João Soares e D. Branca de Sousa se foram para a ilha de Santa Maria, com toda sua casa e família, onde dizem que ele viveu com ela sete anos, e houveram de seu matrimónio dois filhos: João Soares, morgado, que lhe sucedeu na casa e capitania, e Pedro Soares, que de Lisboa se foi para a Índia e lá faleceu, e duas filhas, D. Maria e D. Violante. D. Maria, que era a mais velha de todos eles, casou em Portugal com um nobre homem, feitor de el-Rei, chamado João Fernandes, de que houve uma filha, que casou com um fidalgo, chamado D. João, no mesmo regno, e não pude saber se teve mais filhos ou filhas.

A D. Violante, que era a mais moça de todos os filhos do Capitão João Soares, casou na mesma ilha com um castelhano, que aí veio ter das Índias de Castela, muito rico, o qual daí se tornou para as mesmas Índias, e este se suspeita ser o que depois veio contra o Capitão na armada de Castela, que atrás disse, por se ir da ilha escandalizado dele, ou no tempo daquelas guerras ou outras que depois foram antre Portugal e Castela; ainda que outros querem que acontecesse isto ao Capitão, seu filho, João Soares, do mesmo nome. E D. Violante, ficando prenhe, pariu um filho que viveu somente seis ou sete meses, e ela faleceu passado um ano depois da partida do marido.

E, porquanto, quando casou o Capitão João Soares com D. Branca de Sousa, foi feito contrato que, morrendo ele primeiro, lhe ficassem a ela de arras trezentos mil réis, os quais havia de tomar de toda a fazenda antes de se partir; ela os tomou em terras (como atrás fica dito), por falecimento do dito João Soares, o qual faleceu na mesma ilha de Santa Maria, deixando bom nome e exemplo de vida e virtudes a seus sucessores, sendo de idade de oitenta anos para cima.