D. Hierónimo Coutinho, quinto irmão de D. Luís Coutinho, terceiro comendador que foi da ilha de Santa Maria, e mais moço de todos os cinco irmãos, em sua mocidade foi criado em trajos de clérigo, e para isso o principiaram o pai e a mãe; e depois da morte do pai, a mãe o meteu em um seminário, que se fez novamente em Lisboa, na Mouraria, na rua dos Cavaleiros, que ordenou o Cardeal Infante D. Henrique, na vagante do arcebispo D. Fernando, e se sustentavam com as rendas do arcebispado para não entrarem nele senão fidalgos e filhos de cidadãos nobres e pobres, e, como tal, esteve D. Hierónimo Coutinho.
Mas, quando na penúltima peste de Lisboa se desmanchou o colégio com ela, cada um foi buscar sua vida; pediu a mãe ao Cardeal que lho mandasse ao seu colégio de Évora; sendolhe isto concedido, Martim de Matos, seu feitor da comenda, homem honrado, discreto e virtuoso, o foi lá levar, onde o deixou. E esteve três ou quatro anos, em que sucedeu neste tempo fazer uma travessura, pela qual o rector, que era um padre da Companhia, o quisera castigar; ele, temendo-se disso, buscou modo de se defender, havendo uma faca à mão, e, quando foram para o açoitar, não consentiu chegar ninguém a si; o rector, quando viu que ele se não queria render, mandou que o deixassem e fechou-lhe a porta, esperando que se lhe fosse a fúria, para depois tornar a ele com brandura e castigo. Mas, vendo-se ele solto, se lançou por uma janela fora e foi ter com um estudante, seu amigo, e daí para Portalegre, a casa de seu cunhado, D. Miguel de Noronha, que, então, estava lá de morada com sua mulher e filhos (como é costume de fidalgos por forrarem gastos da Corte), sem querer tornar mais ao colégio, o que entendendo dele a irmã e o cunhado, escreveram à mãe sua tenção, e ela trabalhou quanto pôde para que tornasse, sem o poder alcançar.
Pediu ele, então, que o mandasse para a Índia, pelo que houve por bem o irmão mais velho de o mandar, negociando-lhe o necessário; e foi para a Índia de idade de dezasseis anos, onde andou cinco anos, ou seis, servindo a el-Rei; e, chegando lá, achou os irmãos todos mortos, mas, como ele era pobre, sem ter em terra estranha quem o favorecesse com dinheiro, determinou de se vir para o Reino, para pedir a el-Rei que lhe desse de comer, o qual, quando tornou, achou ser morto e desbaratado na infelice guerra de África, e do irmão, D. Luís Coutinho, não haver nem as há até agora, por onde se presume também ser morto, e assim parece, pelo seu conhecido esforço que havia de morrer onde morreu o seu Rei. Pela qual razão el-Rei D. Henrique, que haja glória, lhe deu a comenda com condição que enquanto a mãe fosse viva lhe desse duzentos mil réis de pensão.
E, assim, ficou quarto comendador da ilha de Santa Maria, e estes são os meios por onde o veio ser, sendo dantes sempre desfavorecido da mãe por não querer ser clérigo, e o foi muito tempo, de modo que lhe não entrava em casa .
É moreno de rosto, os olhos grandes e pretos, delgado e de boa estatura, bem acondiçoado e liberal .
Indo o Senhor D. António , quando foi jurado por Rei, a tomar posse de Setúvel, foi ele por mar com dois galeões e uma urca e duas galés para tomar a boca da barra; e, como o Senhor D. António esteve de posse da dita vila, o mandou ir ao termo de Santarém fazer dois ou três mil homens, de que o fez capitão, por lhe ser muito aceito. E depois foi um dos seus coronéis , mas houve perdão de el-Rei D. Filipe e come sua comenda, como dantes, porque, sabendo o mesmo Rei Filipe o valor da sua pessoa, lhe fez muitas mercês e o mandou o ano de mil e quinhentos e oitenta e seis por capitão-mor da armada da Índia .
Nenhum destes comendadores foi à ilha de Santa Maria, da qual, por seus feitores, mandava arrecadar e levar suas rendas ao Regno, em o qual e em África e outras partes as gastavam honrosamente, em serviço de Deus e de seu Rei.
A mãe destes fidalgos, D. Filipa de Vilhena, depois da morte do marido, que está enterrado no capítulo em S. Francisco de Lisboa, esteve aí dez meses, negociando as coisas necessárias a sua alma, de que ela ficou por testamenteira com Manuel da Câmara, Capitão que foi desta ilha de São Miguel, em que estamos; e, no fim dos dez meses, se foi para a quintã, que tem junto de Peralonga, a que chamam Minalvela, e nela esteve muitos anos até que tornou a Lisboa, onde se deixou estar por causa do filho mais velho, comendador da ilha de Santa Maria, que foi com el-Rei, para lhe negociar suas coisas.
Esta virtuosa fidalga, mãe destes ilustres fidalgos e esforçados cavaleiros, depois da morte do marido, nunca mais comeu em mesa, nem dormiu, senão no chão; as camisas, toucados, lenços, guardanapos e toda a roupa desta sorte, de seu serviço, é de canhamaço muito grosso, e nem por isso deixa de ter as coisas necessárias para agasalhar seus filhos e parentes, e outros hóspedes, que a casa lhe vão, como sempre costumou. Jejua o mais tempo do ano, e os mais dos dias a pão e água, e muito poucas vezes come pão alvo ou carne, e nesta abstinência vive até agora, depois da morte de seu marido. Ao tempo que ficou viúva seria como de idade de quarenta anos, e haveria vinte e cinco ou vinte e seis que eram casados, e no fim deste tempo viu a morte de seu marido e de seus filhos, tirando a do mais velho, D. Luís Coutinho, segundo do nome e terceiro comendador da ilha de Santa Maria, que foi à guerra de África, acompanhando e seguindo como leal vassalo a seu Rei, de que se não sabe certeza se é morto, se vivo, se cativo.
De qualquer maneira destas, que seja, tudo são tristes saudades do mundo e da terra, que há-de comer, ou tarde ou cedo, a todos; e quem mais viver mais mortes dos seus e estranhos verá e terá mais naturais e estranhas saudades, as quais, antre algumas consolações que tem, uma das principais é durarem pouco, porque dura pouco a vida em que se passam, que presto fenece com a sombra da morte. E pois este breve dia se vai da mesma maneira acabando com a sombra da noite, vamo-nos, Senhora, esconder à sombra da furna, minha pobre morada.
Dizendo eu isto à Fama, nos alevantamos ambas e, passando por antre o arvoredo, comendo dele o fruto não vedado, nos recolhemos, eu com breves palavras e ela com esperanças compridas, dizendo que já folgara de vir o dia seguinte, para ouvir de mim as coisas desta ilha de São Miguel, que lhe pareciam grandes, pois ela era tão grande, ao que eu respondi que na minha ruda linguagem se haviam de tornar pequenas.
Nestas e outras semelhantes palavras, antre sono e sono, passamos recolhidas a obscura noite, que trouxe após si um mais claro e sereno dia que os passados, em que nos tornamos a assentar, como dantes, sobre os lisos penedos, junto das claras águas da grande ribeira; e, sendo dela rogada, inclinando-me a seus rogos por cumprir o prometido, não lhe soube negar o que pedia, e, sem ter saber para isso, lhe contei o que pude saber desta ilha de São Miguel, como direi no livro que se segue.