Uma mulher do Amo, chamada Maria Gonçalves, trouxe as silvas, primeiramente, a esta ilha de São Miguel, para com elas fazer tapume nos pomares, hortas e campos, na vila da Ponta Delgada, onde morou. E depois o Capitão Rui Gonçalves da Câmara, segundo do nome, mandou trazer algumas para tapar o seu rico pomar que mandou prantar no Cavouco, junto da vila da Alagoa. E um Fernandafonso chamado da Horta, grande hortelão, por vender hortaliça, morador na vila da Ribeira Grande, junto da ermida de Santa Luzia, onde viveu Pedro Dias, da Achada, e Sebastião Pires Paiva com dois asnos bravos, que amansou e ensinou, lavrava e carreava, indo ao mato buscar lenha em carro, com eles, chamando a um Malícia e a outro Ruindade. Este, indo buscar sua mulher a Portugal e tornando com ela, foi o primeiro que trouxe as silvas à vila da Ribeira Grande, onde era morador, em um caixão de terra. Outros dizem que as trouxe da ilha Terceira, em uma corda esfregada e untada com a semente das silvas, e, enterrando a corda ao comprido estendida, nasceu um silvado. O primeiro lugar, onde as prantou, foi em um sarrado que tinha detrás de suas casas em que morava, perto da dita ermida de Santa Luzia, para se tapar com elas.
Tanto as guardavam e prezavam naquele tempo, que as não dava quem as tinha senão a grandes amigos e a pessoas a que tinha muita obrigação, estimando-se por grandes presentes os que de alguns ramos delas se faziam; e se Ihas furtavam, armavam grandes arruídos e jogos de cutilados, sobre elas. Tanto as cobiçavam alguns, que se ajuntavam de noite e as iam furtar para as prantarem em suas fazendas e terras, que vieram a ficar tão iscadas delas, assim por pegarem bem, não somente com as raízes na terra, mas com qualquer ponta que toca no chão ou nas pedras e logo ali deitam raízes, como por os pássaros comerem das suas amoras e irem estercar a semente pelos campos. E assim multiplicaram tanto, que com elas está perdida uma grande parte da ilha; e, se a deixassem despovoada quatro anos, se tornaria um mato e silvado bravo, e acabaria de se perder toda com elas.
Este Fernando Afonso deu um raminho, com raiz desta pranta, a Baltasar Vaz de Sousa, donde encheu a ribeira do Telhal delas, e dali a ilha toda e cuido que as mais ilhas. Se não fossem as cabras, que as comem, já fora meia ilha coberta de silvado, ou quase toda.
Mas o que agora é sobejo e danoso, cuido que há-de ser minguado e proveitoso, que como vai faltando a lenha, ao menos para os fornos hão elas de ser grande remédio. E este há-de ser o mato de que mais se há-de usar nalgum tempo. E já neste de agora algumas pessoas as não querem deixar cortar nas suas terras e as defendem, porque a necessidade, boa mestra, Ihes vai ensinando e mostrando que são boa lenha.
Toda a estima desta pranta era porque eram defensão das terras; por isso as prantavam como enxertos ou fruteiras de boa pomagem e davam pesentes para que repartissem delas com eles, como foi um João Fernandes, morador na freguesia da Fajã, ao Charco da Madeira, termo da cidade da Ponta Delgada, que levou um presente de capões e galinhas ao Capitão Rui Gonçalves da Câmara, segundo do nome, ao Cavouco, onde ele então morava, para que Ihe desse umas prantas de silvas, poucas, que o dito Capitão mandara trazer de fora, para tapume daquele seu pomar. Havendo-as com presentes e rogos, e às vezes furtando-as, e semeando-as os pássaros que comiam a semente, onde os homens as não prantavam, se inçou toda esta ilha delas, tanto que vieram a maior parte das terras a não aproveitarem mais que para comedias de cabras, sem darem outro fruto nem proveito.
Mas, andando o tempo que tudo muda, de maneira que as terras feitas, debaixo, não queriam já dar novidade, de cansadas, tanto que os pastéis, a que soíam dar quatro e cinco colheduras, dando-lhe a primeira se secavam logo, que era grande perda dos lavradores, Ihe foi forçado roçarem as silvas e cavarem as terras à enxada, com muito trabalho, para fazerem pastelais que, nas tais roças, com o esterco das ditas silvas que queimavam e roçavam, se dava muito bem, como em terras novas. Mas, correram alguns anos que não rompiam as terras senão para o dito pastel e não semeavam trigo nelas, porquanto a casta do trigo que na terra se semeava, chamado comummente barbela, se tomava e perdia, por serem terras altas e sujeitas aos ventos e às névoas; mas, proveu Nosso Senhor com uma espécie de trigo que se chama canoco ou, para melhor dizer, pelado, porquanto não tem pargana , que veio de fora, e primeiramente da ilha da Madeira, enviado a João de Arruda da Costa, morador na sua quinta, junto da cidade da Ponta Delgada, com aviso que se dava melhor nas terras frias, de cima, junto da serra, que nas de baixo, perto da costa do mar, para ele semear nas suas campinas. De maneira que, quando no melhor ano de pão, o melhor moio de terra, das baixas junto do mar, que eram as melhores de todas, dava vinte moios, era espanto e o tinham e julgavam por grande rendimento.
Mas, agora as ditas roças das silvas dão comummente de trigo pelado, que não se toma tanto como o barbela, a razão de trinta e vinte e cinco e, ao menos, vinte moios, e muitas vezes chegam a razão de quarenta moios por moio e daí para cima. E antes que viesse à terra este trigo pelado, ainda que roçassem as silvas para na roça fazerem o dito pastel, não colhiam os lavradores mais que aquela novidade daquele só ano, e logo se tornavam a cobrir e encher as terras das mesmas silvas, com que tinham os homens grande trabalho e custo e pouco proveito. Mas, depois que veio à terra o trigo pelado, acabando de recolher a novidade do pastel, da terra de roças das silvas, logo o segundo ano e o terceiro seguinte, dá a dita roça duas novidades do mesmo trigo que lhe semeiam depois da novidade do pastel, e assim ficam três novidades em três anos contínuos, sc., no primeiro ano da roça a novidade do pastel, e nos dois seguintes as do trigo, por onde as ditas roças e terras ficam limpas de todo. E, com Ihe semearem logo o quarto ano de tremoço, que foi outro dom de Deus, ficam capazes de darem outras duas novidades a reo ou contínuas e juntas, de trigo; e se Ihe semearem a primeira de pastel, e a segunda de trigo, as dará muito melhor. E, se há algumas terras de silvas que não são capazes de darem novidades, por serem fragosas ou pedregosas, servem-se das silvas para os fornos, como em Portugal se servem dos tojos; e, se algumas pessoas as têm nas suas herdades, sem terem delas necessidade, pelas deixarem roçar para os ditos fornos, Ihe dão dinheiro por elas. E outros silvados, que estão em lugares onde se podem prantar vinhas, arrancadas e queimadas as silvas, se prantam as vides em seu lugar e dão muito proveito, pelo que já se não agastam com elas. E, se as há tão longe que não possam usar delas para isto e para os fornos, criam-se com elas muitas cabras nas serras, onde as há, porque são para este gado cabrum o melhor pasto de todos.
Daqui se vê claramente que foram duas mercês grandes de Deus, que fez a esta terra, uma, a das silvas e outra a dos tremoços, de que logo tratarei; que foi tanto como achar-se outra ilha nova, tão grande como esta, ao longo dela. Doutra maneira não havendo estes dois remédios que Deus deu, se despovoara muita parte desta ilha, porque pouco tempo há que se despovoaram os lugares de alguns moradores, como Santo António, a Bretanha, o Nordeste e outros muitos, pela fraqueza das terras, antes do tremoço, e agora com ele dão mais pão do que dão as melhores terras da ilha, sem o dito tremoço. Porque, se houvessem de estercar um moio de terra com esterco, não bastaria a valia da mesma terra para ficar capaz de dar trigo, e com dois moios de tremoço, que custam dois mil réis e menos, semeados em um moio de terra, somente em cabelo, sem a lavrar nem fazer mais custos, fica tão estercada que muitas vezes o viço Ihe faz mal, como agora direi.