De pequenas coisas faz Deus, muitas vezes, e costuma fazer, grandes remédios, para mostrar seu grande poder e saber, e usar com os homens de sua misericórdia, como de fracos e quebradiços óculos de vidro remedeia a fraca, cansada e quase perdida vista dos antigos velhos, e das baixas, rasas, pequeninas e humildes ervinhas do campo faz mezinhas e antídotos para grandes e arreigadas enfermidades, e de muito amargosas drogas ordena purgas para dar ao enfermo a doce e desejada saúde. Assim de uma amargosa erva, mais baixa e grosseira das ervas, como é o tremoço, fez Deus mezinha para curar a envelhecida, fraca, cansada e estéril terra desta ilha, para poder com ela, como com óculos, ver a fertilidade que já dantes não via, e como com amargoso medicamento curar a debilidade e fraqueza de sua cansada e fraca natureza tão estéril, e tornar desta maneira a terra inútil muito fértil e frutuosa; porque, como Deus não deixa nada sem remédio e, quando falta o humano, acode logo com o divino, para que os homens entendam melhor que da sua mão nos vem e há-de vir todo o bem e socorro, havendo aqui, nesta ilha de São Miguel, terras fracas e cansadas, em que os lavradores se perdiam com o pouco rendimento delas, acudiu o Senhor com a sua costumada misericórdia e bondade, e descobriu o remédio de atremoçar as terras para as fazer fértiles e frutuosas, as quais com esta mezinha, como com purga amargosa, de doentes ficaram sãs, e de fracas fortes, e expirando reviveram.
Um Barão Fernandes, que morava à Grota de João Bom, entre os Mosteiros e a Bretanha, no ano de mil e quinhentos e cinquenta, pouco mais ou menos, foi o primeiro que inventou ou começou a tremoçar a terra, depois que enfraquecia, semeando os tremoços ao redor de sua seara de trigo, junto dos caminhos, em uma leira ou carreiro deles, como nesta ilha costumaram depois muitos; e depois semeou um alqueire de terra deles como agora semeiam um alqueire de chícharos para comer curtidos, sem saber o mais proveito que dali podia vir.
Depois deste homem, veio um de Portugal, chamado Lopo Pessoa, o qual inventou os tremoços para proveito das terras, vendo que onde se semeavam um ano, para o ano seguinte Ihe dava ali trigo forte e melhor; donde veio a tremoçar mais quantidade de terra por suspeitar que dos tremoços Ihe vinha dar melhor novidade. E, achando melhoria nas novidades, daí veio a outonar com tremoços e semear as terras e relvas de um ano para o outro, primeiramente no lugar de Santo António, que parece que este Santo, na sua freguesia da banda do norte, descobriu, deparou e achou primeiro este remédio e mezinha para as terras que ali estavam já como perdidas; e depois o começaram usar em toda a ilha, de que se acharam muito bem os lavradores e com proveito. O mesmo efeito têm as favas e legumes todos e o linho que fazem a terra, onde os semeiam, ser depois mais frutífera, ainda que ela de si seja fraca e estéril para pão, como quase já eram as terras do dito lugar de Santo António, limite da cidade da Ponta Delgada, e outras muitas.
O outono dos tremoços, que se corta em verde, também dizem que esterca a terra com sua rama, que nela, logo lavrada apodrece, e assim estercada fica mais frutuosa. Outros dizem que, com a sombra que à terra fazem, cobrindo-a com sua rama, defendendo-a do frio e calma, que a não corte, tendo-a assim mimosa e macia, vem cobrar a terra fôlego, força e vigor para ao diante dar mais e melhor fruto. Todas estas razões podem ajudar a isso, mas ainda que nisto houve e há diversas opiniões e razões, a mais certa é que os tremoços são grosseiros e amargosos, e por se nutrirem e criarem dos mais grossos e piores humores da terra, chupam a salsugem e pior dela, como fazem também as favas e outros legumes, mas muito mais o tremoço, por ser o pior e mais grosseiro legume, e assim fica a terra defecada e como purgada e limpa dos humores mais grosseiros, e, com os melhores que Ihe ficam, está, depois do tremoço de um ano ou do outono, criando e nutrindo o trigo melhor e com mais abundância que dantes. Este foi um notável e singular remédio para as terras desta ilha, que já iam muito enfraquecendo, poderem dar melhores novidades de pão e de algumas outras coisas, como outonadas dão melhor linho.
É o tremoço uma erva de muita folha e de muitas hastes em um pé, de altura que dá a um homem pela cinta; cujo fruto, que dá em umas vaginhas, como de favas, deitado de molho na água doce ou salgada, e dando-lhe primeiro uma boa fervura ao fogo, de amargoso se torna doce e se deixa comer sem acabar de fartar a quem o come, apetitoso ao gosto, como são as ervilhas; e tanto que o semeiam e vem a ter rama e folha, tem tal qualidade que sempre traz a mesma folha e haste virada ao sol, sc., ao nascente do sol, pela manhã, está toda a ele inclinada, e assim como o sol se vai empinando, assim vai virando; quando vem ao meio dia, está direita; e tanto que desce o sol para o ponente, assim vão as folhas, flores e hastes do tremoço virando, de maneira que ao pôr do sol Ihe ficam inclinadas e viradas daquela parte onde ele está e se põem; e pela manhã, que vem da noite seguinte, se tornam a virar ao nascente a receber o sol da parte donde ele nasce.
Depois de se inventar primeiramente o atremoçar as terras no lugar de Santo António, segundariamente se começou a usar no lugar das Feiteiras, e por verem o grande proveito e muito rendimento que têm as terras atremoçadas, se usa o mesmo já agora em toda a ilha geralmente.
E quem tem poder, o melhor dela é tremoço velho, de um ano para o outro, sc., atremoçando a terra um ano, que não dá mais novidade o mesmo ano que o próprio tremoço que Ihe semeiam. O qual tem três proveitos: o primeiro, o tremoço que soe valer, os mais dos anos, a vinte e cinco, a trinta e quarenta réis o alqueire, de que se carrega algum para fora da ilha; o segundo proveito é a palha dele, depois de malhado, que é boa lenha para os fornos, e vale cada carrada, o menos, dois tostões; o terceiro proveito é que a terra daquele ano semeada de tremoço velho, está nela, para o outro, certa a novidade de trigo ou pastel, mais que de terra de relva ou alqueive, porque a terra que fica de relva não tem mais virtude que estar folgada e não ser lavrada aquele ano, nem dá mais novidade que a erva de pasto, que também dá bom rendimento ao dono dela, porque ordinariamente se arrenda a terra, que fica de relva, para pasto de gado, apastorado ou preso à corda, a dois ou três alqueires por alqueire, segundo é o pasto da terra. Mas, a que fica semeada de tremoço velho tem mais virtude, por ficar purgada dos maus humores com que ele se nutre, como já disse, e por causa da sombra que Ihe faz a rama do mesmo tremoço, que é altura de ametade e, às vezes, de um homem, com que fica a terra mimosa e sombria, sem ser cortada das calmas; e também por causa da folhada do tremoço que cai na mesma terra que, depois de apodrecer nela, parece ingoento com que se engrossa. E, assim, dizem os que a lavram que Ihe parece andarem com os pés sobre algum ingoento, ou sobre veludo, tão macia e amorosa a acham, o que não tem a terra que fica de relva, a qual acham mais áspera. Costumam, sobre a terra de tremoço velho, semear pastel e o segundo ano trigo, e ambas estas novidades dá abastantemente, a qual melhor, da maneira que atrás tenho dito, quando tratei das silvas.
Há outro modo de atremoçar a terra, que se chama outonar, porque no outono, começando e acabando em o mês de Octubro, fazendo primeiro umas velgas com o arado, e semeando o tremoço por elas, a lavram depois, com que fica o tremoço nela soterrado; e, nascendo e crescendo altura de três ou quatro palmos, no mês de Dezembro e Janeiro o decepam com espadas, para tornar a lavrar a mesma terra, onde apodrece aquela rama, com que fica a terra como estercada com ela às vezes dois anos, sem ter necessidade neles de mais outro benefício. E, se se faz seara deste outono, ou de tremoço velho, ao longo de outra que não tem tremoço, não tem necessidade de haver extrema entre elas, porque de longe, quanto mais de perto, se divisa e diferença uma seara de outra, pela grande vantagem que faz a do tremoço àquela terra que o não teve. E, como já disse, o mesmo proveito fazem as favas e alguns outros legumes, como são abóboras e melões que com sua folhada cobrem a terra que se não corte da calma. E, onde o tremoço está basto, nenhuma erva cresce debaixo dele que venha a ter semente, e por isso o semeiam desta maneira nas terras em que querem desinçar o saramago e as ruins sementes, com que ficam as searas do ano seguinte com menos monda; e alguns lavradores, que não podem atremoçar toda a sua terra, dão parte dela a outras pessoas que a semeiam de tremoço velho e levam o grão e palha dele, contentando-se com Ihe ficar a terra purgada e limpa, para depois fazer nela sua sementeira de trigo ou pastel, como está dito.
Mas, agora já alguns se guardam de atremoçar a terra, porque dizem que um bicho branco e pequeno, que algumas vezes, em alguns anos, se acha dentro, acima do primeiro nó da palha do trigo, junto da raiz, que faz perder a espiga, o tremoço é causa dele; e alguns dizem que é também causa de alforra. E assim como as drogas e mezinhas, como estão muito tempo na botica, não somente perdem sua força, mas podem e vêm a fazer algum dano e trabalho ao que delas usa, assim já alguns não querem usar da mezinha dos tremoços em suas terras, por dizerem que são causa de nascerem dentro na palha do trigo, junto à raiz, sobre o primeiro nó , uns bichinhos brancos e curtos, como bichos de carne, que logo tomam e murcham a espiga; e outros dizem que do muito atremoçar as terras nasceu a alforra de que adiante direi.
Dizem que o tremoço, que faz bem às terras desta ilha, faz mal às terras de Portugal.
Parece a razão disto ser porque aqui as terras são salgadas e rociadas do mar, a qual salsugem Ihe chupa o tremoço, que se cria do pior humor da terra, ou as favas e outros legumes com que ficam defecadas e purgadas, para dar melhor novidade. Mas, em Portugal, onde a terra não tem esta salsugem, chupam os tremoços o bom e doce humor dela, e assim fica estéril.