Deus, que é causa primeira de que tudo depende, quando por seus justos e ocultos e às vezes manifestos juízos, quer castigar algumas das criaturas que ele criou, toma por instrumentos as causas segundas, que são os elementos; e às vezes, contra grandes e desaforados males, coisas pequenas e baixas, como são os bichinhos da terra, ou a mesma terra, como a tomou nesta ilha de S. Miguel para cobrir e assolar a mais populosa vila que nela e em todas as ilhas dos Açores naquele tempo havia, chamada Vila Franca do Campo, onde residiam os ministros da justiça eclesiástica e secular, e a mais nobre gente da ilha tinha suas moradas, e estava o porto principal, e escala, e alfândega, e ricos e grossos lavradores e mercadores; o que tudo veio a parar em dores, com vários e desastrados casos, que em sua subversão aconteceram, como agora direi, para com tal exemplo ser Deus engrandecido em seu poder e temido em seu juízo e castigo.
Em tempo que governava esta ilha de S. Miguel o muito ilustre Rui Gonçalves da Câmara, quinto Capitão dela e segundo do nome, servindo de seu ouvidor Antão Pacheco, e sendo ouvidor do eclesiástico Simão Godinho, na era de mil e quinhentos e vinte e dois anos e vinte e dois de Octubro da dita era, sendo quarto dia de lua, em uma quarta-feira, menos de duas horas antemanhã, não havendo sinais do céu, nem da terra, mais que a notícia confusa e voz e murmurinho do povo, que atrás tenho dito, estando o tempo sereníssimo, sem fazer bafo de vento que então era levante, estando o céu estrelado e claro, sem aparecer nuvem alguma, se sentiu em toda a ilha um grandíssimo e espantoso tremor de terra, que durou por espaço de um Credo, em que parecia que os elementos, fogo, ar e água, pelejavam no centro dela, fazendo-a dar grandes abalos, com roncos e movimentos horrendos, como ondas de mar furioso, parecendo a todos os moradores da ilha, que se virava o centro dela para cima e que o céu caía. E acabando o espaço do Credo, ou de um Pater-Noster e Avé Maria a todo mais, e ainda não foi tanto, tornou outra vez a tremer mais brandamente outro tanto; a horas de terça, no mesmo dia, tornou a tremer muito rijo por pouco espaço; ao meio dia tremeu outra vez, e à véspera, outra.
Do primeiro tremor antes que amanhecesse, arrebentou e quebrou grande quantidade de terra, correndo por muitos lugares, dos baixos para os altos, e de outras partes, dos altos para os baixos; principalmente sobre Vila Franca quebrou grande quantidade de faldra de um monte, do pé da serra, que está sobre ela; e alagando-a e cobrindo-a de terra, lodo e alguns grandes penedos, da banda do norte, totalmente a subverteram.
Em uma só triste noite foram acabadas muitas vidas e ficou tudo tão coberto, que nem nobres casas, nem altos edifícios, nem sumptuosos templos, nem nobres e vulgares pessoas pela manhã apareceram, ficando tudo raso e chão, sem sinal nem mostra onde vila estivesse, porque com o tremor caíram os mais dos edifícios primeiro e a casaria, que acolheu a mais da gente debaixo, depois, sobrevindo a terra correndo, arrasou tudo, como raio ligeiro que desbarata quanto acha mais forte e duro.
Da ribeira para a parte do oriente, onde estava a vila, tudo foi assolado e os moradores todos quase mortos. Somente na mesma ribeira, para o ponente, escaparam algumas casas, delas caídas, onde ficaram vivas até setenta pessoas, pouco mais ou menos, as quais todas começaram a dar grandes gritos, chamando uns por Deus, outros por Santa Maria, na qual aflição Ihe foi grande consolação a presença e doctrina do padre Frei Afonso de Toledo, que com eles escapou no mesmo arrabalde, amoestando-os que se confessassem e pedissem a Deus misericórdia, pondo por intercessora a Virgem Nossa Senhora, a que fez fazer uma casa de invocação do Rosairo, onde depois se fez mosteiro de frades franciscos, porque o que estava arriba da vila, quase ao pé da serra, foi o primeiro edifício que se cobriu de terra, onde morreram até vinte pessoas, entre sacerdotes e coristas e hortelão.
Dois homiziados que ali estavam, sentindo o tremor, fugiram por uma rua abaixo, bradando à gente que fugisse; um deles alcançou a terra e morreu; o outro, fugindo mais prestes, escapou; e sós três frades escaparam, que foram do mosteiro para a vila, não se sabe como, se por seu pé, se por os levar a terra sobre si, até junto onde está agora o mosteiro das freiras, e aí se tiveram em uns dragoeiros derrocados e caídos.
Pouco antes disto havia que eram vindos dois clérigos do bispado do Algarve, fugidos das asperezas do Bispo, que os tratava muito mal; um deles, homem de respeito e de idade de cinquenta anos arriba, e outro, mancebo, e se recolheram em uma casa sobre a ribeira, onde ambos pousavam e, como não ficaram muito cobertos de terra, os comeram os cães.
Uma menina, de idade de três ou quatro anos, que depois foi mulher de um Fernão Pires, escapou em cima de uma tábua, não se sabe como, mas o pai e mãe e toda mais gente de casa ficou soterrada e morta.
Um padre, chamado Álvareanes, beneficiado na dita vila tinha uma negra, a qual, ficando a casa de seu senhor coberta da terra e ele soterrado nela, foi sã e salva, estando na mesma casa, ao barco em que havia vindo o barqueiro atrás dito, da Povoação, o qual estando varado, parece que o ímpeto da terra o levou ao mar e pela manhã apareceu a negra dentro dele, onde se salvou.
Da banda do ponente da ribeira, onde estava a cadeia, foi também correndo a terra, encostando-se a ela, mas não a derribando, escaparam os presos, os quais logo foram soltos pela gente que acudiu. Abaixo da cadeia morava uma mulher viúva, a qual, alevantando-se da cama pelo tremor que ouvira, abrindo a porta, deu o entulho da terra ou barro nela, encostando-a a uma das ombreiras da porta, e ainda que a não cobriu de todo, ali apareceu, ao outro dia, entalada e morta. Dali foi correndo uma lista de terra ao longo da ribeira, onde havia mui formosa casaria, a qual também toda se destruiu e morreu toda a gente que nelas morava, salvo Estêvão Nunes de Atouguia e um negro seu, o qual, ouvindo o tremor, se saiu de uma câmara que estava da banda da ribeira, por onde ia a maior força da terra, para a sala, e ali escapou, ainda que da mesma sala ficou pouca parte em pé. Isto era às costas da ermida de Santa Catarina. Dali para o ponente, onde havia poucas casas, escaparam todas e os moradores delas, que seriam setenta almas.
O Capitão Rui Gonçalves da Câmara, que era ido, dois ou três ou mais dias havia, para uma sua quinta do Cavouquo com sua mulher D. Filipa e seu filho Manuel da Câmara, lá escaparam; mas suas casas, ainda que estavam desta mesma parte da ribeira, chegadas a ela, se perderam e nelas Ihe morreram duas filhas, D. Hierónima e D. Guiomar, e seu filho morgado, e uma sua irmã, chamada D. Melícia, e um filho natural, com muita gente que ficou em casa.
Escapou também Augustinho Imperial, genoês, e sua mulher Aldonça Jácome, saindo da câmara para a sala, e quantos ficaram nas outras casas morreram.
Assim que correndo esta terra logo no princípio, assolou a vila toda em tão breve espaço que se não pôde ninguém salvar, e tomou grande posse do mar, entrando por ele.
Ficaram também outras duas casas em pé à borda dele, porque ia a terra cansada e não com tanta fúria: uma foi a de Rui Vaz da Mão, por cansar ali o entulho da terra que corria, cobrindo um dos dois sobrados que a dita casa tinha; a outra era de João d’Outeiro, um dos mais ricos homens desta ilha, que foi sogro de D. Gilianes da Costa; mas as câmaras e recâmaras ficaram mais danificadas.
Muitos se acolhiam dos lugares onde a terra que corria não chegou para a igreja de S.
Miguel, principal, cuidando ter nela refúgio, e os afogou o lodo e polme, que já ali não corria com muita pressa e ligeireza, senão com algum vagar; quase como foi aqui o biscoito que correu na vila da Ribeira Grande e outros biscoitos que correram vagarosos; pelo que parece que se correra de dia, tomando a gente acordada, que vira por onde e para onde fugia, se salvaríam quase todos os que as casas caídas não mataram; mas como era de noite, no quarto da modorra, quando dorme quem de noite às vezes não pode dormir, alcançou tantos a morte dormindo e amanheceu-lhe aquela noite na outra vida aos que, vigiando, pode ser que ficaram ainda vivos nesta. E não seria para eles grande mal amanhecer na outra vida, ou dormindo acordar lá, se não houvesse ali alguns dormentes em pecado mortal, que com culpas mortais amanhecessem na noite do inferno para sempre.
Está o monte donde arrebentou a terra, como sabão e pedra pomes tudo misturado, um quarto de légua da vila que cobriu; com o qual polme saíram grandes penedos pela concavidade da ribeira, por onde ia a maior quantidade e enchente dele, um dos quais ficou abaixo do mosteiro de S. Francisco que então havia, de cujas oficinas não ficou figura alguma, nem rasto. E outro penedo muito grande atravessou a vila toda, da serra ao mar, onde se foi assentar no porto antigo, que então servia, entrando pela água alguns quarenta passos e, chegando ao lugar onde está posto, e aparece parte dele sobre as águas, quase defronte da casa que foi de Jorge Furtado; parece que não podia trazer outro caminho senão pela igreja principal, que era um sumptuoso templo do Arcanjo S. Miguel, que havia pouco tempo que se acabara, mas em mais poucos acabou de desaparecer de todo.
Havia no porto então quatro ou cinco navios, abrigados ao ilhéu, para partirem para Portugal, o que foi causa de morrer mais gente ali, onde se ajuntava de toda a ilha para fazer aquela viagem.
Depois de coberta a vila da terra corrida, e sendo já dia claro, se ajuntavam algumas pessoas que viviam pelos montes e nas quintas e os que ficaram vivos no arrabalde, espantados todos dos grandes tremores e estrondos que ouviram, e vendo a vila no estado em que estava, pasmavam.
Foi um deles dar as tristes novas ao Capitão Rui Gonçalves e sua mulher D. Filipa Coutinha e a seu filho Manuel da Câmara que então seria de catorze anos, como alguns dizem; o qual Capitão, com grande tristeza e maior pressa, acudiu logo a ver o que era e chegando à grota do Barro, que está perto da vila, não pôde passar por estar arrasada de lodo; pelo que foi buscar outro passo mais arriba para a serra, por onde passou. Chegando à vila, não viu figura nem sinal dela, nem os soberbos paços de grande casaria, nem filhos e filhas, irmã, criados, criadas, escravos, escravas e a grande família que ali poucos dias antes tinha deixado. Tudo estava coberto de terra e campo raso que agora serve de lavoura e onde estão ricas hortas e muitos pomares.
Chegou neste tempo também à dita vila o contador Martim Vaz Bulhão e outra muita gente de toda a ilha, ajuntando-se com a que ali escapou, todos tão desconsolados e tristes, como tal perda a tal tempo requeria; e estando presente o pregador Frei Afonso de Toledo Ihe fez fazer a ermida de Nossa Senhora do Rosairo, que tomaram por advogada, a qual brevemente fizeram em poucos dias e com muitas lágrimas e devaçam , acarretando todos a pedra, madeira e achegos necessários, a seus próprios ombros, em a qual se recolhiam e foi sua paróquia alguns dias, servindo-lhe, dantes dela feita, de freguesia a ermida de Santa Catarina, que escapou sem cair.
Fez também o dito pregador fazer um voto a todos de irem a esta casa do Rosairo com procissão, todas as quartas-feiras, e dizerem uma missa, que ao seu dia dizem, e de que há confraria, em memória daquela quarta-feira, triste dia, indo ali procissões de noite ou de madrugada, o que se cumpriu sempre; mas de poucos anos a esta parte, por algumas justas e honestas razões, já cessaram, fazendo-as cada ano, de dia, em toda a ilha.
O Capitão Rui Gonçalves da Câmara, ainda que mui sentido com a mágoa de perder filhos e filhas, parentes e família, antes de acudir a sua casa, fez fazer uma procissão em que foi direito, com todo o povo, ao lugar em que estivera a igreja de S. Miguel, onde mandou cavar primeiro tanto, direito do altar da capela-mor, esforçando o povo, até que os que cavavam entenderam cavando que primeiro com o tremor fora derribada e depois correra a terra sobre ela e sobre a igreja, também caída, em pouca altura. E buscando no sacrário o Santíssimo Sacramento, o não acharam, senão somente um pequeno cofre em que estava dantes e costumava estar, já aberto e com uma lasca quebrada. E, não o achando dentro, começaram a dar grandes gritos e, com um grande coro, derramar muitas lágrimas, não sabendo se o levara o lodo para o mar, ou os anjos para o Céu, pedindo todos a Deus misericórdia e perdão de suas culpas, vendo tal maravilha, entendendo que seus pecados foram causa de seu Deus se absentar deles; e esta foi, para todos os que ali se acharam, a maior e mais triste de todas as mágoas.
Parece que nem a terra que correu levou o Santíssimo Sacramento, pois o cofre estava cerrado , nem os anjos o levaram para o Céu, ou ele mesmo subiu lá; mas ele se foi ou o levaram os anjos pelos ares a algum sacrário de alguma igreja mais perto da dita vila, como é a igreja da vila de Água do Pau, onde conjecturo que o puseram, por alguns sinais que algumas pessoas disto viram, como foi um Fernão Vanhegas, castelhano, e outras pessoas que então se acharam em Vila Franca; os quais estando no arrabalde, viram alevantar pelo ar, do lugar onde a igreja matriz estava, uma grande claridade e logo disseram todos que era o Santíssimo Sacramento que alguns anjos levariam para o pôr em algum sacrário de outra igreja, que devia ser, como tenho dito, a da vila de Água do Pau, que estava mais perto. Concorda com isto o que aconteceu a uma Constança Vicente, que foi casada duas vezes, a primeira com um João Pires, de que estava viúva no tempo da subversão de Vila Franca, a segunda com um João Pequeno, de que também viuvou; a qual, estando aquela noite na mesma Vila Franca, no sobrado de sua casa, fiando à roca, com o tom dela não sentiu o tremor, e ouvindo rumor de uma procissão e som de campainha, cuidou que levavam o Santo Sacramento a algum enfermo; cuidando nisto, com um bafo de vento se Ihe apagou a candeia; indo então à cozinha para a acender, achou-a derribada com o tremor que ela não sentiu. Depois, por não acharem o Santo Sacramento no sacrário de Vila Franca, quando cavando o buscaram, se suspeitou que aquela procissão e rumor, que aquela mulher ouvira, seria de anjos que o levavam para o pôr em algum sacrário com outras hóstias sagradas, ou para onde Deus ordenaria. E posto que a igreja matriz da vila de Água do Pau caiu aquela noite, não houve lesão no sacrairo onde o Santissimo Sacramento estava, nem se achou menos.
Depois mandou cavar o dito Capitão em outras partes, e muitas pessoas de toda a ilha, que ali tinham suas casas, parentes, amigos e conhecidos, mandaram cada um cavar onde Ihe doía, uns para tirar os corpos mortos, outros para ver se achavam dinheiro e alfaias que tinham em suas casas, outros para fazer o mesmo aos corpos e fazenda de seus parentes e conhecidos. E assim se cavava em muitas partes da vila juntamente cada dia, e a uns achavam mortos pelas ruas, outros em suas casas e leitos, entre os quais achavam alguns vivos, como foi um João Cordeiro, que depois foi beneficiado na freguesia de S. Sebastião na cidade de Ponta Delgada; e um moço, chamado Adão, se tirou debaixo de uma casa e viveu servindo na Casa da Misericórdia da dita cidade muitos anos.
Em outra casa escapou um Simão Lopes, que esteve dois dias debaixo da madeira da casa, ao longo de uma empena, coberto de terra, e indo um seu filho por cima dela chorando, ouvindo-o ele, chamou pelo filho a brados, dizendo: Domingos, Domingos; cavando então ali, o tiraram e viveu depois muitos anos.
Cavando e sem cavar achavam muitos homens e mulheres mortos e vestidos, uns com um braço alevantado, outros com as cabeças, outros com os pés, parecendo claramente que com o tremor fugiram dele e a terra os tomara assim fugindo e os envolvia em si ou consigo, da maneira e postura em que os achavam.
O pai de Nuno de Atouguia mandou a uns seus escravos, que levava consigo, que cavassem em um certo lugar, onde ele tinha sua casa e dantes morava, prometendo alforria ao que Ihe achasse o cofre do seu dinheiro; e em poucas enchadadas deram com ele, o que mostra não ter muita altura a terra que correu naquela parte, ou que primeiro caíram algumas casas com o tremor, que alagadas depois com o lodo que sobreveio, ficava dele pouca grossura sobre elas e em cima das coisas, que com pouco cavar e menos trabalho se achavam ; o qual cofre de Nuno de Atouguia desacravaram, tendo bem que fazer seis homens em o levar, e por também estar a terra mole feita massapez, pela qual se não podia bem andar. E o escravo que primeiro deu com o cofre, vendo-o em salvo, pediu ao senhor que o forrasse como prometera; ao qual Ihe respondeu que o dissera zombando, mas importunado do escravo Ihe deu carta de alforria.
Com a pressa do correr da terra, uma mulher se apegou em uma tábua e a corrente a levou ao mar, aonde andando na tábua, foi ter a um penedo muito grande que a mesma terra levou, que está hoje em dia no mar, onde estava dantes o porto da dita vila; e pondo-se sobre ele, foi depois um batel de um navio, que no porto estava, a tomá-la, e assim se salvou e achou sobre as líquidas águas a vida que na massiça terra houvera de perder, se nela ficara.
Na mesma quarta-feira da subversão da vila, que foi de noite, em amanhecendo, entre outras coisas que se acharam, viram uma menina de dois até três anos, pouco mais ou menos, estar sobre umas tábuas, brincando com umas palhas, que parece serem as tábuas e as palhas da cama em que jazia quando o tremor veio; e pondo umas tábuas sobre o lodo, por elas a foram tirar das outras tábuas; a qual foi conhecida por filha de um homem principal e rico, e depois a deram a criar e casou na mesma vila, que se tornou a reedificar da outra parte da ribeira.
Em outra casa onde morava um negro, casado com uma negra, sentindo ele o tremor, se levantou da cama e fugindo, não apareceu mais, pelo encravar a corrente da terra. Mas a negra dormindo, por cima do lodo e polme que corria, foi ter junto do mar, na cama em que dormia, e ali acordou, quando com as mãos deu no lodo, espantando-se e cuidando que era água que chovera na sua cama, mas vendo o que era, se saiu de gatinhas fora, por cima do lodo, para onde ele não chegava, e assim escapou. E escapa quando Deus quer a que dormia e o que dorme; e morre o que vigia e foge, como morreu o marido desta, que vigiava; porque, como diz David, se o Senhor não guarda a cidade, em vão vigia o que a guarda.
Muitas pessoas se enterraram fora de suas casas, que iam fugindo, e depois achadas, as enterraram no adro, onde outras morreram por fugirem para a igreja. E muitos e mais foram os que desta maneira morreram, que os que ficaram debaixo das casas; nas quais se achou muito dinheiro daqueles defuntos e todo por mandado do Capitão se depositava na mão de um depositário, que se chamava João Loução, e de outras pessoas.
Poucos tempos há que um Sebastião Pires , achou, cavando, uma taça de prata e conhecendo cuja era, a deu a seus herdeiros.
Cavando em uma casa, acharam marido e mulher e filhos, todos deitados em uma cama, com uma trave atravessada por cima de seus pescoços, que todos os afogou. E porque cansavam muito os homens cavando, todo o fato e dinheiro que tiravam Ihe davam de meias.
Iam enterrar os corpos mortos onde estivera a igreja principal.
Estando a terra que correu sobre a vila, dali a muitos dias, como lêveda e bêbeda da água, pondo os pés em uma parte dela, tremia em outra dali a certo espaço, como faz o caramelo, e por isso andavam por cima de tábuas que punham sobre ela, enquanto esteve desta maneira brande e mole.
Outro Simão Lopes, homem solteiro, de fora desta ilha, ficou em uma casa em que morava, debaixo da terra que correu, onde agora chamam as Hortas e dali foi tirado vivo e viveu depois muitos anos.
Um Diogo Pinheiro, sacerdote, que depois foi capelão na Casa de Misericórdia da cidade, também escapou vivo. E um homem, por alcunha o Calcafrades, que morava arriba da vila, onde agora se chama a Abegoaria, ali Ihe escapou a casa e curral com o gado, sem morrer ninguém dentro, nem pessoa, nem gado, porque cercou a terra a casa e curral por todas as partes sem a cobrir, estando no princípio da maior força da corrente da terra, por estar ao pé do pico que correu; o qual não correu todo, mas uma pequena parte, que seria como a vigésima, e não parece que saiu debaixo do centro aquela terra, senão uma quebrada da flor dela, só da superfície, que fez uma cava, a qual pelas bordas será em algumas partes de altura de uma lança.
Andando cavando dali uns dias foram dar em uma casa, onde em um vão dela acharam uma mulher que estava de parto, e a parteira debaixo dela com a criança nas mãos, já nascida, todas mortas. E por não estarem afogadas com a terra, se conjectura que morreram à fome e à míngua de não cavarem ali mais prestes.
Uma negra por nome Luzia, cativa de Cristóvão de Braga, genro de Gonçalo Vaz Botelho, que era filho de Gonçalo Vaz, o Grande, e cativa de Helena Gonçalves, mulher do dito Cristóvão de Braga, indo a terra alagando a vila, foi a dita negra naquela volta sobre ela, apegada em uma figueira, ter ao mar, onde escapou com a vida. E disse muitas vezes que vira seu senhor andar no mar, vivo, embrulhado naquela terra, e da mesma maneira dois frades.
Por estar a terra feita lodo, depois de três dias por diante da subversão da vila, começou a gente que escapou a andar por cima dela, chorando seus pecados e a absência e saudade de seus pais e mães, parentes e fazenda.
Um filho de João Gonçalves, do lugar de Rosto de Cão, estando a cavalo, dentro na lógea de seu pai, aquela noite e hora da subversão da vila, com as esporas nos pés e um arremessão na mão, já cavalgado, querendo sair pela porta fora, caiu a casa e o atupiu a ele e ao cavalo, porque assim se julgou, pelos que o acharam sobre o cavalo da maneira sobredita.
Afirmam os antigos que ainda que toda aquela noite era mui serena e apareciam claras as estrelas, depois de correr a terra como ondas do mar, uma diante da outra, sendo já dia claro, cessando a terra de correr, choveu uma chuva miúda.
Da casa de António de Freitas, cavando, tiraram uma sua filha solteira, mulher moça, achando-a na cama deitada de ilharga, com a mão debaixo da face e os toucados de dormir na cabeça; e assim morreu. Parece que não sentiu o tremor e, estando dormindo, a tomou a terra que correu.
Como em Vila Franca estava o porto principal e alfândega, iam deferir a ela e nela moravam muitos mercadores de fora da terra, onde tinham muita fazenda e diversas mercadorias, que ali iam comprar os moradores de toda a ilha. Mandando o Capitão Rui Gonçalves ajuntar muita gente de todas as partes para cavarem e desacravarem os mortos e muita fazenda dos naturais e estrangeiros, dizem uns que andando cavando, outros que indo em uma procissão, cantando as ladainhas, ouviram tom e grita de gente, como chamando por misericórdia; o qual tom ouvindo o Capitão Rui Gonçalves, entendendo que era de gente que ali estava soterrada, mandou cavar no mesmo lugar a grande pressa e cavando não muito espaço, descobriram uma ponta de uma trave, que jazia encostada com outra a uma parede de uma casa de um ferreiro, sobradada, com as traves muito bastas, a qual caindo com o tremor e amassando- se o telhado sobre o sobrado, caiu a parede da banda donde estava a ponta da trave que descobriram, e caíram também todas as traves daquela banda, ficando as outras pontas encostadas à outra parede, que ficou em pé, e tiveram a madeira e pedraria que caiu e terra que correu sobre elas e o sobrado. Viviam naquela lógea três homens naturais de Guimarães, convém a saber, dois irmãos, chamados Marcos Pires e Nicolau Pires, os quais, estando para partir para sua terra em um dos navios que no porto estavam de partida, pousavam ali com um seu natural, que estava com Lopo Anes de soldada, e morava naquela lógea, que tinha uma porta da outra banda para a ribeira, ainda que o sobrado no andar da outra rua se servia para ela. Vindo o terramoto e terra que correu, caíram as traves do sobrado, pondo as pontas no chão, da parte da ribeira, e ficaram eles ali debaixo das traves do sobrado coberto de terra. Quando cavaram, deram na ponta de uma trave daquelas caídas e fizeram um buraco para o vão, por onde logo os ditos três homens saíram, como viram a luz pelo buraco; e, alevantando as mãos, começaram a dar graças a Deus de joelhos, pasmados de ver gente, e a gente pasmada de ver a eles, amarelos, mirrados e quase sem figura, com que se alevantou então um grande grito e choro, bradando todos a Deus por misericórdia.
Tinha o Marcos Pires em um saquinho trinta mil réis em dinheiro, e tornando a entrar pelo buraco o foi tirar. Contam uns que o pai de Nuno de Atouguia o fizera tirar do navio, poucos dias antes de se alagar a vila, por uma dívida que Ihe devia; o qual, vendo-se fora daquele obscuro cárcere, como desenterrado, vendo o pai de Nuno de Atouguia, se foi para ele indignado, dizendo: ó homem, tu me matavas, tu me matavas, e que o Capitão Rui Gonçalves o quisera mandar prender, pois, tirado da prisão de Deus, tinha indignação contra seu próximo; mas não o castigou então, senão com branda repreensão, porque todos os corações então andavam brandos. Até o Capitão, chamando-lhe algum: Senhor, respondia: — não me chameis Senhor, que só Deus o é.
Perguntados estes homens que pensamentos tinham ou com que se mantiveram debaixo da terra aqueles nove dias, responderam que cuidavam diversas coisas: ou que o mundo se acabara e fundira, ou que a só eles acontecera este desastre, e, finalmente, que não sabiam o que cuidassem, tão confusos estavam, sem saber o que acontecera; e que se mantiveram com biscoito, que tinham feito para a viagem do mar, e bebiam água que gotejava do lodo e recolhiam em uma panela, a qual misturavam com um pouco de vinho que tinham em uma pipa, quase já feito vinagre. Nem sabiam determinar as horas, nem a manhã do dia, senão pelo cantar de um galo que consigo tinham. E a maior pena que sentiam era porque, das pessoas que no sobrado moravam, ficou um homem meio metido em um buraco dele e gritou tanto que eles o tiraram do buraco, e vivera com eles três ou quatro dias, acabados os quais faleceu, parece que de ir já ferido ou pisado, e entre si o tiveram os mais dias que ali estiveram, sofrendo com grande pena o seu fedor, o qual morto também tirou o povo logo e Ihe deram sepultura.
De escaparem estes estrangeiros e morrerem os naturais, parece que para o contar eles mandou Deus este castigo e grande açoite, por espelho e exemplo para uns e outros se verem e todos juntamente temerem o juízo de Deus e se emendarem. Como então não havia nenhum dos que ali se acharam que não estivesse muito contrito, porque com grande contrição e dor de seus pecados partiram dali com aqueles homens desenterrados, e com devota procissão, pedindo a Deus misericórdia, até uma ermida de Santa Catarina, que no arrabalde ficou em pé e Ihe servia então de paróquia, onde todos deram graças a Deus por escaparem, uns debaixo da terra e outros sobre ela. Estes homens, que saíram vivos daquela lógea, se foram depois para Portugal, dizendo que nunca cá tornariam, e logo dali a um ano tornaram. Tal esquecimento costuma trazer consigo o perigo passado.
Um João Lourenço Tição fugiu da cama nu para a banda do arrabalde, onde escapou vivo, como outros alguns escaparam, de que não soube os nomes.
Uma mulher, chamada Filipa Gonçalves, ficou debaixo duma casa soterrada; e, tirada dali, viveu 50 ou mais anos, perdida a fala sem mais a cobrar, somente dizia tudo o que queria com esta voz: tefas, tefas; também sabia dizer sim e não, sem mais poder pronunciar outra palavra.
E ainda que perdeu a fala, não perdeu o juízo, nem o ouvir e outros sentidos.
Como tenho dito, por haver muitos mortos debaixo da terra e muitos seus parentes, que ficaram vivos em outras partes da ilha, que pretendiam herdar suas fazendas, durou a cava daquela mina todo um ano. E, andando cavando, acudiam ao mais necessário, principalmente onde os cães uivavam, sentindo os homens que bradavam debaixo da terra e alguns mortos.
Uma mulher, tirando de casa uma menina que criava e não era sua filha, ouvindo o tremor, a pôs sobre um carro que tinha à porta, e tornando dentro a buscar outras crianças, veio a terra e levou a casa e a ela, e ao marido e filhos, e escapou aquela menina ali sobre o carro.
O contador Martim Vaz Bulhão mandou cavar em uma casa, onde acharam uma moça pequena ainda viva, a qual não podendo comer, Ihe deitaram leite de mama pela boca, e, não o podendo levar, faleceu dali a pouco espaço.
Muitos pobres cavaram então ali, que, pela cobiça que Ihes cresceu, ficaram ricos do que escondiam, dinheiro, alfaias, roupa e vestidos que acharam. E algumas pessoas, logo depois de correr a terra sobre aquela vila, viam de noite andar muitas lanternas, candeias e luminárias acesas ao longo do mar de Vila Franca até Água de Alto, e não caindo na conta do que era, uns diziam que seriam os Fiéis de Deus que ali andavam ou as almas dos que ali morreram. Mas, depois se soube que eram homens que naquela praia andavam buscando alguma fazenda, dinheiro ou peças, das que a terra levara, que o mar depois ia descobrindo. Desta maneira, ficaram alguns pobres ricos daquelas minas, que as ondas e mar, e não seus braços, cavaram. E outros muitos pobres das outras partes da ilha ficaram também ricos com as grossas fazendas que herdaram por morte de seus parentes ali mortos.
Assim ficou aquela populosa vila feita um campo raso, como onde Troia estivera, que depois serviu e serve de ricos pomares de frutas de diversa pomagem.
E a vila se tornou a povoar mui lustrosa, como agora é, da outra banda da ribeira, da parte do ponente, onde o arrabalde estava, e ficou o arrabalde vila e a vila arrabalde. E para animar os homens que a povoassem e não se apartassem daquele lugar com medo, el-Rei os dotou de muitos e mui largos privilégios e liberdades, iguais e maiores ainda que os da sua nobre cidade do Porto, em seu Reino; pela qual causa se acabou de reedificar e fazer mui prestes, mais sumptuosa que a primeira, que agora floresce habitada, povoada, regida e governada de muitos nobres e honrados cidadãos e luzido povo.