Querendo eu contar as coisas desta ilha de S. Miguel, em que vivo, disse à Fama: — Agora, Senhora, vos é necessário ter mais sofrimento em me ouvir do que até aqui tivestes, porque, falando desta ilha , hei-de dizer muitas miudezas que cansam e enfadam a quem as diz ou escreve, e muito mais a quem as ouve. Ao que ela me replicou: — Com esses enfadamentos, Senhora, me desenfado eu, e por isso os peço, quero e desejo, para ser aprazível a todos e desenfadar a uns, que hão-de louvar o bem dito e enfadar a outros, que se desenfadarão com terem que dizer e murmurar do mal feito, que é a mais doce fruta da terra. E assim cumprirei com a obrigação de meu nome, pois este é o meu natural e natureza. Vós, Senhora, segui a vossa, que é dizer verdades gerais e particulares de coisas grandes e pequenas, ainda que elas não sejam aprazíveis, quando tocam em culpas próprias e coisas secas e estériles. Mas, pois eu pretendo saber todas, contai-me vós as mais que puderdes e souberdes, que tudo, como até aqui, me será manjar aprazível e gostoso. Ao que eu respondi, dizendo: — Já que quereis, Senhora, enfadamentos, que somente pertencem aos naturais desta ilha, ouvi-os.

Pois não há aldeia no mundo de que os meus moradores não contem grandes fundamentos de sua primeira habitação, e alguns fingidos, quero, Senhora, contar desta ilha de S. Miguel os verdadeiros, pelo melhor modo que me foi possível saber, com muitas inquirições, perguntas e vigílias, sem ter aceitação de pessoa, para deixar de falar a verdade sabida. E se isto de mim não crerem os maldizentes e murmuradores, que nunca no mundo faltaram, nem faltarão até ao fim dele, eu fico comigo satisfeita, que diante de Deus não terei culpa, nesta parte, de afeição nem lisonjaria, de ódio nem vingança, de temor nem covardia, com que me pudera cegar, se algumas destas faltas tivera para me desviar da verdade das coisas que contei e contar quero.

Porque, posto que seja condição geral de todas as gentes, por darem antigos e ilustres princípios a sua linhagem, sempre fabularem coisas, a que a antiguidade, não testemunha... dá licença; assim como não deixei de contar a certeza do que soube dos ilustres capitães da ilha da Madeira e Santa Maria, e de seus moradores, assim também não deixarei de dizer o que ouvi afirmar por muito certo a alguns antigos, dignos de fé desta ilha de S. Miguel, do que sabiam da origem e feitos de seus ilustres capitães, que dos da ilha da Madeira por linha masculina descendem. E ainda que aqui nascera, sem suspeita de natural, com rosto descoberto, sem pejo, nem empacho, direi verdadeiramente tudo quanto disser dos naturais desta ilha, reprovando alguns fingimentos antigos e ditos fora de propósito e razão, que não levam caminho de verdade, e aprovando os mais razoáveis e verdadeiros.

Já tenho atrás contado algumas razões que deram motivo ao infante D. Henrique para mandar descobrir a ilha de Santa Maria, e as mesmas teve para se mover ao descobrimento desta de S. Miguel e das mais dos Açores; pelo que, depois de achada a ilha de Santa Maria, ordenou de mandar descobrir esta de S. Miguel, a qual empresa cometeu e encomendou a Frei Gonçalo Velho, capitão de Santa Maria, que, então, estava no Algarve. E preparadas todas as coisas necessárias para o novo descobrimento, partiu o dito Frei Gonçalo Velho, com o regimento que o infante para isso lhe deu. E no navio em que vinha de Sagres, navegaram até se pôrem quase na altura da ilha de Santa Maria, vendo por seus rumos e pontos, e depois com seus olhos, que lhe ficava ela da banda do sul; e andando neste meio mar, antre estas ilhas, às voltas, ora com um bordo para uma parte, ora para a outra, não podendo ver esta ilha de S. Miguel, nem achando terra alguma, se tornaram ao Regno .

E sendo perguntados Frei Gonçalo Velho e o piloto, por que banda tomaram a ilha de Santa Maria, disseram que pela parte do norte; ao que replicou o infante, dizendo: — passastes entre o ilhéu e a terra; porque chamava ilhéu à ilha de Santa Maria, por ser pequena e ter notícia disso, pela ver no mapa que tinha, ou pelas outras razões já ditas, e entendia por terra esta ilha de S. Miguel, por ser muito maior. Donde se muitos enganaram e enganam, cuidando que era o ilhéu de Vila Franca e afirmando que antre ele e a terra desta ilha de S. Miguel passou este navio, que veio a este descobrimento, não havendo ele passado senão por antre estas duas ilhas, como já tenho dito.

Alguns dizem que depois tornou o infante a mandar a Frei Gonçalo Velho, e que achou primeiro o ilhéu de Vila Franca, onde saiu sem ver a ilha; e fazendo nele dizer missa, sem consagrar nela, por lhe parecer que estava no mar, como em navio, porque era o ilhéu pequeno. Acabada a missa, começaram a ouvir uns gritos grandes, que eles entendiam ser de demónios, que gritavam e diziam: — nossa é esta ilha, nossa é! Mas, contudo, desembarcaram em terra e tomaram posse dela, desapossando os demónios. Como conta Plutarco outra história quase semelhante de gritos de demónios, que recita o magnífico cavaleiro Pero Mexia, em sua Silva, dizendo o mesmo Plutarco: — Lembra-me haver ouvido a Emiliano, orador, varão prudente e humilde, que vindo seu pai navegando por mar para Itália, passando uma noite muito junto a uma ilha chamada Paraxis, estando toda a gente da nau acordada, ouviram uma grande e temerosa voz, que soava da dita ilha despovoada, chamando pelo nome de Atamano, que assim se chamava o piloto da nau, que era natural do Egipto; e ainda que esta voz foi ouvida por Atamano, e por todos, uma e outra vez, nunca ousou responder, até que, já ouvindo-se chamar a terceira vez, respondeu, dizendo: — quem chama? que quereis? E então a voz soou muito mais alto e disse: — Atamano, o que te quero é que tenhas em todo caso cuidado, em chegando ao golfo chamado Alagoa, de fazer saber ali e dizer a brados que o grande demónio, o deus Pan, é morto. Ouvido isto, toda a gente da nau ficou muito espantada, e acordou-se antre eles que o mestre não curasse de dizer nada, se o tempo lhe servisse quando por ali passasse, senão seguir seu caminho. Mas aconteceu que chegados à Alagoa, que era o lugar assinalado, subitamente lhes acalmou o vento, que não puderam navegar, e, vendo-se assim em calma, determinaram de fazer saber a nova que lhes era encomendada; e pondo-se o piloto ao bordo da nau, alçou a voz quanto pôde e assim ao ar disse: — Faço-vos saber que o grande diabo Pan é morto! E logo em acabando ele de dizer isto, foi tão grande a multidão de vozes e gritos que ouviram, que atroou todo o mar, e durou aquele choro, que ouviram fazer, mui grande espaço. O qual eles ouvindo, com grandíssimo medo fizeram sua viagem o melhor que puderam. E chegados ao porto, e depois de vindos a Roma, se publicou nele e nela este caso por muito estranho. Eu, não somente este, mas também o outro de dizerem que dizendo missa seca no ilhéu de Vila Franca ouviram os gritos dos demónios, que bradavam, dizendo: — nossa é esta ilha! nossa é! ambos tenho por estranhos e mui alheios da verdade, ou, pelo menos, ainda que o da Alagoa acontecesse, permitindo Deus que os demónios fizessem aquelas querimónias do seu gran diabo ser morto de dor e pesar, no tempo da paixão do Salvador do mundo, que lhe desfazia seus enganos e tirou seu domínio e tirania, sem o tal diabo poder morrer, na realidade da verdade; este desta ilha nunca aconteceu, nem saiu no ilhéu de Vila Franca Frei Gonçalo Velho e os que com ele vinham a primeira vez que a acharam. Mas a verdade deste descobrimento passou desta maneira. Há se de notar que sendo a ilha de Santa Maria descoberta por mandado do dito infante D. Henrique, a proveu de gados para multiplicarem na terra; e mandou trazer cavalos e éguas e outras coisas necessárias, e sendo os navios que isso traziam junto dela, com os temporais que lhe deram, não podendo sofrer a tormenta, nem pairar, aos mares, tornaram a arribar; e alijando no meio da travessa, para salvarem suas vidas, botaram as éguas ao mar, donde lhe ficou o nome de val, ou vale, das Éguas, que aqueles primeiros descobridores lhe puseram.

Neste tempo, ou pouco mais além, aconteceu na ilha de Santa Maria, por algum delito ou falta que fez a seu senhor, fugir um escravo, homem preto da Guiné, dos moradores da ilha, e acolher-se à serra, da banda do norte, e por ser em tempo de verão, e o ar sem névoa, via o negro dela, algumas vezes, a ilha de S. Miguel, quando fazia o tempo claro. E depois de ser tornado, dizia que da serra, donde andara, vira uma terra grande para a banda do norte. E sendo disto certificado o infante D. Henrique, por esta notícia e razão que lhe acresceu às outras que ele entendia, posto que já tinha mandado descobrir esta de S. Miguel, sem os descobridores a poderem achar, tornou a mandar o mesmo Frei Gonçalo, por ser capitão da ilha de Santa Maria e já cursado nestas viagens, ao descobrimento destoutra, sua vizinha.

Deixando àparte o que tenho atrás dito dos cartaginenses, que conjecturei haverem sido primeiros e antigos descobridores de todas, ou das mais destas ilhas dos Açores, que me parece ter sombra de verdade pelas razões já ditas, e não falando no que outros dizem, que foi esta ilha de S. Miguel, antes de ser achada pelos portugueses, setenta anos atrás descoberta por um grego, que com tormenta desgarrou de Cález, e vindo a dar nela, a foi pedir a El-Rei, que lha deu, e trazendo gado que nela lançou, logo faleceu, com que ficou a ilha erma até o tempo que os portugueses a descobriram, em que acharam ossada de gados, e que na baía da Lagoa se achou de carneiros, pelo que lhe puseram nome Porto dos Carneiros, o que eu tenho por coisa fabulosa e longe da verdade, direi o que sei do descobrimento dela, certo por memórias e escritos dos antigos e por tradição deles, que de mão em mão, ou de memória em memória, veio ter às mãos e lembrança dos moradores presentes que nela agora vivem, que é o que se segue.

Depois de tornado Frei Gonçalo Velho, capitão da ilha de Santa Maria, da primeira viagem que fez por mandado do infante ao descobrimento desta ilha de S. Miguel, sem a poder achar nem ver, andando perto dela, lavrando com muitos bordos o mar de antre ambas, pelo que o infante sabia, lhe respondeu que andara antre o ilhéu, que é a ilha de Santa Maria, e a terra, que é esta de S. Miguel; e pelo que lhe disseram, que a vira o negro fugido, tornou a mandar o mesmo Frei Gonçalo Velho a buscá-la, dando-lhe por regimento que pusesse a popa no ilhéu, que era a ilha de Santa Maria, e ao norte navegasse, e dariam na ilha que ele mandava buscar. O que cumprindo o dito Frei Gonçalo Velho e o piloto que trazia consigo, que se chamava Foam Vicente, natural do Algarve, cujo nome não soube, quase doze anos inteiros depois de ser descoberta a ilha de Santa Maria, aos oito dias do mês de Maio da era de mil e quatrocentos e quarenta e quatro anos, por dia do aparecimento do arcanjo S. Miguel, príncipe da igreja, foi vista e descoberta por eles esta ilha; que, por ser achada e aparecer em tal dia e festa do aparecimento do arcanjo, lhe foi posto este nome à ilha de S. Miguel, de felicíssima sorte, governando o Reino o infante D. Pedro, filho de el-Rei D. João, de Boa Memória, o primeiro do nome e décimo Rei de Portugal; o qual se prova, pois, por morte deste Rei D. João, de Boa Memória, reinou seu filho D. Duarte, que nasceu na cidade de Viseu no ano de mil e trezentos e noventa e um, e viveu quarenta e dois anos, dos quais reinou cinco, e faleceu na era de mil e quatrocentos e trinta e oito anos; e por sua morte houvera de reinar seu filho D. Afonso, o qual nasceu na era de mil e quatrocentos e trinta e dois anos, e por não ser mais que de seis anos, não foi entregue do Regno, senão seu tio o infante D. Pedro, que governou por seu sobrinho, D. Afonso, até a era de mil e quatrocentos e quarenta e oito anos, em que foi entregue ao dito Rei D. Afonso. Antre os quais anos mil e quatrocentos e trinta e dois, em que nasceu el-Rei D. Afonso e começou a governar o Regno por ele o infante D. Pedro, e o ano de mil e quatrocentos e quarenta e oito, em que acabou de governar, por entregar o governo a el-Rei D. Afonso, se inclui e contém o ano de mil e quatrocentos e quarenta e quatro, quando esta ilha de S. Miguel foi achada, em o qual o infante D. Pedro governava o Reino.

E logo no ano de mil e quatrocentos e quarenta e nove el-Rei D. Afonso, sendo ainda no primeiro ano de seu reinado, deu licença ao infante D. Henrique, seu tio, para mandar povoar estas ilhas dos Açores, que havia dias que eram descobertas.

No ano de mil e quatrocentos e oitenta, outros dizem, de oitenta e um, faleceu este Rei D. Afonso, e no mesmo ano, antes de seu falecimento, fez as pazes com Castela. Chegando aqui às ilhas os novos descobridores, tomaram terra no lugar, onde agora se chama a Povoação Velha, pela que ali fizeram depois, como adiante contarei, e, desembarcando antre duas frescas ribeiras de claras, doces e frias águas, antre rochas e terras altas, todas cobertas de alto e espesso arvoredo de cedros, louros, ginjas e faias, e outras diversas árvores, deram todos, com muito contentamento e festa, graças a Deus, não as que por tão alta mercê se lhe deviam, senão as que podem dar uns corações contentes com o bem tão grande que tinham presente, desejado por muitos dias e com tanto trabalho e enfadamento de importunas viagens por tantas vezes buscado. De crer é que trariam sacerdote consigo, que dissesse ali missa onde no lugar agora está uma ermida de Santa Bárbara, e aquela foi a primeira que nesta ilha se disse; mas que missa fosse ou quem a dissesse, não se sabem as particularidades disso, nem de outras que ali passariam . Andavam os novos então, e agora antigos descobridores, ora pouco pela terra, porque muito não podiam, por lho impedir o espesso mato, ora muito mais pelo mar, no barco de seu navio, correndo parte da costa, vendo das águas salgadas as doces ribeiras, que, por antre o arvoredo, pelas rochas caíam, examinando e atentando todas as particularidades que podiam e os lugares sós e saudosos da erma e solitária ilha, acompanhados de uns altos montes e baixos vales, povoados de arvoredo, com cuja verdura vestida estava toda a terra, dando grandes esperanças de ser mui fértil e proveitosa a seus moradores, que nela viessem a fazer suas colónias. E dizem comummente os antigos que, vendo muitos açores e bons, dos quais levavam daqui para o Reino alguns no princípio, como tinham visto na ilha de Santa Maria, lhe puseram nome ilhas dos Açores, o que bem podia ser; mas o que outros têm por mais verdade é que, por aqui não haver senão poucos e como adventícios, vinham a esta ilha doutras terras não sabidas, vendo no ar muitos milhafres que havia, que com eles se pareciam e por tais os julgavam, como agora há, e assim parecerem, lhe puseram este nome de ilhas dos Açores, o qual também se apegou às outras ilhas de baixo, que depois se descobriram, onde não faltam estas aves de rapina; ou também por então nelas se acharem açores, ainda que depois e agora os não houve, nem há em nenhuma delas, senão alguns que com temporais e tormentas acertam de vir desgarrados de outras partes. E não fazendo os novos descobridores detença muitos dias nos que ali estiveram, tomando águas, ramos de árvores e algum caixão de terra, e pombos que, sem trabalho e sem laços, às mãos tomavam, e outras coisas que aí acharam, para levar por mostra ao infante, se partiram para ele, que, contente com tal nova, os recebeu, contentes por lha levarem, e lhes fez mercês a todos com a benignidade que se devia a tão bons servidores e tais serviços mereciam, fazendo particular mercê a Frei Gonçalo Velho da capitania da ilha que novamente achara, com a outra capitania que lhe tinha dado da ilha de Santa Maria, com que ficou capitão de ambas, porque os multiplicados e continuados serviços não se pagam com singelos prémios, senão com mercês dobradas .

COMO FOI ACHADA A ILHA DE SÃO MIGUEL POR FREI GONÇALO VELHO, COMENDADOR DE ALMOUROL, DA QUAL TAMBÉM FOI FEITO CAPITÃO, SENDO-O JÁ DA ILHA DE SANTA MARIA, ENVIADO PELO INFANTE DOM HENRIQUE A ESTE DESCOBRIMENTO

Querendo eu contar as coisas desta ilha de S. Miguel, em que vivo, disse à Fama: — Agora, Senhora, vos é necessário ter mais sofrimento em me ouvir do que até aqui tivestes, porque, falando desta ilha , hei-de dizer muitas miudezas que cansam e enfadam a quem as diz ou escreve, e muito mais a quem as ouve. Ao que ela me replicou: — Com esses enfadamentos, Senhora, me desenfado eu, e por isso os peço, quero e desejo, para ser aprazível a todos e desenfadar a uns, que hão-de louvar o bem dito e enfadar a outros, que se desenfadarão com terem que dizer e murmurar do mal feito, que é a mais doce fruta da terra. E assim cumprirei com a obrigação de meu nome, pois este é o meu natural e natureza. Vós, Senhora, segui a vossa, que é dizer verdades gerais e particulares de coisas grandes e pequenas, ainda que elas não sejam aprazíveis, quando tocam em culpas próprias e coisas secas e estériles. Mas, pois eu pretendo saber todas, contai-me vós as mais que puderdes e souberdes, que tudo, como até aqui, me será manjar aprazível e gostoso. Ao que eu respondi, dizendo: — Já que quereis, Senhora, enfadamentos, que somente pertencem aos naturais desta ilha, ouvi-os.

Pois não há aldeia no mundo de que os meus moradores não contem grandes fundamentos de sua primeira habitação, e alguns fingidos, quero, Senhora, contar desta ilha de S. Miguel os verdadeiros, pelo melhor modo que me foi possível saber, com muitas inquirições, perguntas e vigílias, sem ter aceitação de pessoa, para deixar de falar a verdade sabida. E se isto de mim não crerem os maldizentes e murmuradores, que nunca no mundo faltaram, nem faltarão até ao fim dele, eu fico comigo satisfeita, que diante de Deus não terei culpa, nesta parte, de afeição nem lisonjaria, de ódio nem vingança, de temor nem covardia, com que me pudera cegar, se algumas destas faltas tivera para me desviar da verdade das coisas que contei e contar quero.

Porque, posto que seja condição geral de todas as gentes, por darem antigos e ilustres princípios a sua linhagem, sempre fabularem coisas, a que a antiguidade, não testemunha... dá licença; assim como não deixei de contar a certeza do que soube dos ilustres capitães da ilha da Madeira e Santa Maria, e de seus moradores, assim também não deixarei de dizer o que ouvi afirmar por muito certo a alguns antigos, dignos de fé desta ilha de S. Miguel, do que sabiam da origem e feitos de seus ilustres capitães, que dos da ilha da Madeira por linha masculina descendem. E ainda que aqui nascera, sem suspeita de natural, com rosto descoberto, sem pejo, nem empacho, direi verdadeiramente tudo quanto disser dos naturais desta ilha, reprovando alguns fingimentos antigos e ditos fora de propósito e razão, que não levam caminho de verdade, e aprovando os mais razoáveis e verdadeiros.

Já tenho atrás contado algumas razões que deram motivo ao infante D. Henrique para mandar descobrir a ilha de Santa Maria, e as mesmas teve para se mover ao descobrimento desta de S. Miguel e das mais dos Açores; pelo que, depois de achada a ilha de Santa Maria, ordenou de mandar descobrir esta de S. Miguel, a qual empresa cometeu e encomendou a Frei Gonçalo Velho, capitão de Santa Maria, que, então, estava no Algarve. E preparadas todas as coisas necessárias para o novo descobrimento, partiu o dito Frei Gonçalo Velho, com o regimento que o infante para isso lhe deu. E no navio em que vinha de Sagres, navegaram até se pôrem quase na altura da ilha de Santa Maria, vendo por seus rumos e pontos, e depois com seus olhos, que lhe ficava ela da banda do sul; e andando neste meio mar, antre estas ilhas, às voltas, ora com um bordo para uma parte, ora para a outra, não podendo ver esta ilha de S. Miguel, nem achando terra alguma, se tornaram ao Regno .

E sendo perguntados Frei Gonçalo Velho e o piloto, por que banda tomaram a ilha de Santa Maria, disseram que pela parte do norte; ao que replicou o infante, dizendo: — passastes entre o ilhéu e a terra; porque chamava ilhéu à ilha de Santa Maria, por ser pequena e ter notícia disso, pela ver no mapa que tinha, ou pelas outras razões já ditas, e entendia por terra esta ilha de S. Miguel, por ser muito maior. Donde se muitos enganaram e enganam, cuidando que era o ilhéu de Vila Franca e afirmando que antre ele e a terra desta ilha de S. Miguel passou este navio, que veio a este descobrimento, não havendo ele passado senão por antre estas duas ilhas, como já tenho dito.

Alguns dizem que depois tornou o infante a mandar a Frei Gonçalo Velho, e que achou primeiro o ilhéu de Vila Franca, onde saiu sem ver a ilha; e fazendo nele dizer missa, sem consagrar nela, por lhe parecer que estava no mar, como em navio, porque era o ilhéu pequeno. Acabada a missa, começaram a ouvir uns gritos grandes, que eles entendiam ser de demónios, que gritavam e diziam: — nossa é esta ilha, nossa é! Mas, contudo, desembarcaram em terra e tomaram posse dela, desapossando os demónios. Como conta Plutarco outra história quase semelhante de gritos de demónios, que recita o magnífico cavaleiro Pero Mexia, em sua Silva, dizendo o mesmo Plutarco: — Lembra-me haver ouvido a Emiliano, orador, varão prudente e humilde, que vindo seu pai navegando por mar para Itália, passando uma noite muito junto a uma ilha chamada Paraxis, estando toda a gente da nau acordada, ouviram uma grande e temerosa voz, que soava da dita ilha despovoada, chamando pelo nome de Atamano, que assim se chamava o piloto da nau, que era natural do Egipto; e ainda que esta voz foi ouvida por Atamano, e por todos, uma e outra vez, nunca ousou responder, até que, já ouvindo-se chamar a terceira vez, respondeu, dizendo: — quem chama? que quereis? E então a voz soou muito mais alto e disse: — Atamano, o que te quero é que tenhas em todo caso cuidado, em chegando ao golfo chamado Alagoa, de fazer saber ali e dizer a brados que o grande demónio, o deus Pan, é morto. Ouvido isto, toda a gente da nau ficou muito espantada, e acordou-se antre eles que o mestre não curasse de dizer nada, se o tempo lhe servisse quando por ali passasse, senão seguir seu caminho. Mas aconteceu que chegados à Alagoa, que era o lugar assinalado, subitamente lhes acalmou o vento, que não puderam navegar, e, vendo-se assim em calma, determinaram de fazer saber a nova que lhes era encomendada; e pondo-se o piloto ao bordo da nau, alçou a voz quanto pôde e assim ao ar disse: — Faço-vos saber que o grande diabo Pan é morto! E logo em acabando ele de dizer isto, foi tão grande a multidão de vozes e gritos que ouviram, que atroou todo o mar, e durou aquele choro, que ouviram fazer, mui grande espaço. O qual eles ouvindo, com grandíssimo medo fizeram sua viagem o melhor que puderam. E chegados ao porto, e depois de vindos a Roma, se publicou nele e nela este caso por muito estranho. Eu, não somente este, mas também o outro de dizerem que dizendo missa seca no ilhéu de Vila Franca ouviram os gritos dos demónios, que bradavam, dizendo: — nossa é esta ilha! nossa é! ambos tenho por estranhos e mui alheios da verdade, ou, pelo menos, ainda que o da Alagoa acontecesse, permitindo Deus que os demónios fizessem aquelas querimónias do seu gran diabo ser morto de dor e pesar, no tempo da paixão do Salvador do mundo, que lhe desfazia seus enganos e tirou seu domínio e tirania, sem o tal diabo poder morrer, na realidade da verdade; este desta ilha nunca aconteceu, nem saiu no ilhéu de Vila Franca Frei Gonçalo Velho e os que com ele vinham a primeira vez que a acharam. Mas a verdade deste descobrimento passou desta maneira. Há se de notar que sendo a ilha de Santa Maria descoberta por mandado do dito infante D. Henrique, a proveu de gados para multiplicarem na terra; e mandou trazer cavalos e éguas e outras coisas necessárias, e sendo os navios que isso traziam junto dela, com os temporais que lhe deram, não podendo sofrer a tormenta, nem pairar, aos mares, tornaram a arribar; e alijando no meio da travessa, para salvarem suas vidas, botaram as éguas ao mar, donde lhe ficou o nome de val, ou vale, das Éguas, que aqueles primeiros descobridores lhe puseram.

Neste tempo, ou pouco mais além, aconteceu na ilha de Santa Maria, por algum delito ou falta que fez a seu senhor, fugir um escravo, homem preto da Guiné, dos moradores da ilha, e acolher-se à serra, da banda do norte, e por ser em tempo de verão, e o ar sem névoa, via o negro dela, algumas vezes, a ilha de S. Miguel, quando fazia o tempo claro. E depois de ser tornado, dizia que da serra, donde andara, vira uma terra grande para a banda do norte. E sendo disto certificado o infante D. Henrique, por esta notícia e razão que lhe acresceu às outras que ele entendia, posto que já tinha mandado descobrir esta de S. Miguel, sem os descobridores a poderem achar, tornou a mandar o mesmo Frei Gonçalo, por ser capitão da ilha de Santa Maria e já cursado nestas viagens, ao descobrimento destoutra, sua vizinha.

Deixando àparte o que tenho atrás dito dos cartaginenses, que conjecturei haverem sido primeiros e antigos descobridores de todas, ou das mais destas ilhas dos Açores, que me parece ter sombra de verdade pelas razões já ditas, e não falando no que outros dizem, que foi esta ilha de S. Miguel, antes de ser achada pelos portugueses, setenta anos atrás descoberta por um grego, que com tormenta desgarrou de Cález, e vindo a dar nela, a foi pedir a El-Rei, que lha deu, e trazendo gado que nela lançou, logo faleceu, com que ficou a ilha erma até o tempo que os portugueses a descobriram, em que acharam ossada de gados, e que na baía da Lagoa se achou de carneiros, pelo que lhe puseram nome Porto dos Carneiros, o que eu tenho por coisa fabulosa e longe da verdade, direi o que sei do descobrimento dela, certo por memórias e escritos dos antigos e por tradição deles, que de mão em mão, ou de memória em memória, veio ter às mãos e lembrança dos moradores presentes que nela agora vivem, que é o que se segue.

Depois de tornado Frei Gonçalo Velho, capitão da ilha de Santa Maria, da primeira viagem que fez por mandado do infante ao descobrimento desta ilha de S. Miguel, sem a poder achar nem ver, andando perto dela, lavrando com muitos bordos o mar de antre ambas, pelo que o infante sabia, lhe respondeu que andara antre o ilhéu, que é a ilha de Santa Maria, e a terra, que é esta de S. Miguel; e pelo que lhe disseram, que a vira o negro fugido, tornou a mandar o mesmo Frei Gonçalo Velho a buscá-la, dando-lhe por regimento que pusesse a popa no ilhéu, que era a ilha de Santa Maria, e ao norte navegasse, e dariam na ilha que ele mandava buscar. O que cumprindo o dito Frei Gonçalo Velho e o piloto que trazia consigo, que se chamava Foam Vicente, natural do Algarve, cujo nome não soube, quase doze anos inteiros depois de ser descoberta a ilha de Santa Maria, aos oito dias do mês de Maio da era de mil e quatrocentos e quarenta e quatro anos, por dia do aparecimento do arcanjo S. Miguel, príncipe da igreja, foi vista e descoberta por eles esta ilha; que, por ser achada e aparecer em tal dia e festa do aparecimento do arcanjo, lhe foi posto este nome à ilha de S. Miguel, de felicíssima sorte, governando o Reino o infante D. Pedro, filho de el-Rei D. João, de Boa Memória, o primeiro do nome e décimo Rei de Portugal; o qual se prova, pois, por morte deste Rei D. João, de Boa Memória, reinou seu filho D. Duarte, que nasceu na cidade de Viseu no ano de mil e trezentos e noventa e um, e viveu quarenta e dois anos, dos quais reinou cinco, e faleceu na era de mil e quatrocentos e trinta e oito anos; e por sua morte houvera de reinar seu filho D. Afonso, o qual nasceu na era de mil e quatrocentos e trinta e dois anos, e por não ser mais que de seis anos, não foi entregue do Regno, senão seu tio o infante D. Pedro, que governou por seu sobrinho, D. Afonso, até a era de mil e quatrocentos e quarenta e oito anos, em que foi entregue ao dito Rei D. Afonso. Antre os quais anos mil e quatrocentos e trinta e dois, em que nasceu el-Rei D. Afonso e começou a governar o Regno por ele o infante D. Pedro, e o ano de mil e quatrocentos e quarenta e oito, em que acabou de governar, por entregar o governo a el-Rei D. Afonso, se inclui e contém o ano de mil e quatrocentos e quarenta e quatro, quando esta ilha de S. Miguel foi achada, em o qual o infante D. Pedro governava o Reino.

E logo no ano de mil e quatrocentos e quarenta e nove el-Rei D. Afonso, sendo ainda no primeiro ano de seu reinado, deu licença ao infante D. Henrique, seu tio, para mandar povoar estas ilhas dos Açores, que havia dias que eram descobertas.

No ano de mil e quatrocentos e oitenta, outros dizem, de oitenta e um, faleceu este Rei D. Afonso, e no mesmo ano, antes de seu falecimento, fez as pazes com Castela. Chegando aqui às ilhas os novos descobridores, tomaram terra no lugar, onde agora se chama a Povoação Velha, pela que ali fizeram depois, como adiante contarei, e, desembarcando antre duas frescas ribeiras de claras, doces e frias águas, antre rochas e terras altas, todas cobertas de alto e espesso arvoredo de cedros, louros, ginjas e faias, e outras diversas árvores, deram todos, com muito contentamento e festa, graças a Deus, não as que por tão alta mercê se lhe deviam, senão as que podem dar uns corações contentes com o bem tão grande que tinham presente, desejado por muitos dias e com tanto trabalho e enfadamento de importunas viagens por tantas vezes buscado. De crer é que trariam sacerdote consigo, que dissesse ali missa onde no lugar agora está uma ermida de Santa Bárbara, e aquela foi a primeira que nesta ilha se disse; mas que missa fosse ou quem a dissesse, não se sabem as particularidades disso, nem de outras que ali passariam . Andavam os novos então, e agora antigos descobridores, ora pouco pela terra, porque muito não podiam, por lho impedir o espesso mato, ora muito mais pelo mar, no barco de seu navio, correndo parte da costa, vendo das águas salgadas as doces ribeiras, que, por antre o arvoredo, pelas rochas caíam, examinando e atentando todas as particularidades que podiam e os lugares sós e saudosos da erma e solitária ilha, acompanhados de uns altos montes e baixos vales, povoados de arvoredo, com cuja verdura vestida estava toda a terra, dando grandes esperanças de ser mui fértil e proveitosa a seus moradores, que nela viessem a fazer suas colónias. E dizem comummente os antigos que, vendo muitos açores e bons, dos quais levavam daqui para o Reino alguns no princípio, como tinham visto na ilha de Santa Maria, lhe puseram nome ilhas dos Açores, o que bem podia ser; mas o que outros têm por mais verdade é que, por aqui não haver senão poucos e como adventícios, vinham a esta ilha doutras terras não sabidas, vendo no ar muitos milhafres que havia, que com eles se pareciam e por tais os julgavam, como agora há, e assim parecerem, lhe puseram este nome de ilhas dos Açores, o qual também se apegou às outras ilhas de baixo, que depois se descobriram, onde não faltam estas aves de rapina; ou também por então nelas se acharem açores, ainda que depois e agora os não houve, nem há em nenhuma delas, senão alguns que com temporais e tormentas acertam de vir desgarrados de outras partes. E não fazendo os novos descobridores detença muitos dias nos que ali estiveram, tomando águas, ramos de árvores e algum caixão de terra, e pombos que, sem trabalho e sem laços, às mãos tomavam, e outras coisas que aí acharam, para levar por mostra ao infante, se partiram para ele, que, contente com tal nova, os recebeu, contentes por lha levarem, e lhes fez mercês a todos com a benignidade que se devia a tão bons servidores e tais serviços mereciam, fazendo particular mercê a Frei Gonçalo Velho da capitania da ilha que novamente achara, com a outra capitania que lhe tinha dado da ilha de Santa Maria, com que ficou capitão de ambas, porque os multiplicados e continuados serviços não se pagam com singelos prémios, senão com mercês dobradas .