A vila da Ribeira Grande, nobre com seus moradores, rica em suas terras, bem assombrada com seus campos e fértil com seus frutos, está situada de aquém e de além de uma grande ribeira, de que ela tomou o nome, quase no meio da ilha, em uma grande baía da banda do norte, ao pé de uma serra muito fresca : e a ribeira corta a vila em duas partes, de pouco tempo a esta parte, porque até ao ano de mil e quinhentos e quinze não havia da ponte para a parte do ponente mais de duas casas somente.
Mas, veio depois em tanto crescimento, que é agora a maior vila, mais rica e de mais gente que há em todo este Bispado de Angra. Dantes era lugar sufragâneo a Vila Franca do Campo, até que el- Rei Dom Manuel, quatrozeno Rei de Portugal e primeiro deste nome, estando em Abrantes, aos quatro dias do mês de Agosto da era de mil e quinhentos e sete, o fez vila, com uma légua de termo ao redor, contada do Pelourinho dele para todas as partes em redondo.
Um Lopo de Ares escudeiro, criado do Marquês de Vila Real, D. Pedro, o primeiro, porque fora ao Regno com procuração dos moradores do lugar da Ribeira Grande, a este requerimento, pedir a el-Rei Dom Manuel que o fizesse vila, depois de o ter alcançado, veio na era de mil e quinhentos e oito, no mês de Marco, e trouxe a carta de vila, que apresentou aos principais moradores dela e a todo o povo; e no mesmo ano de mil e quinhentos e oito, aos três dias do mês de Abril, estando Rui Gonçalves da Câmara, fidalgo da casa de el-Rei, Capitão e governador da justiça pelo dito Rei nesta ilha, na casa do concelho, sendo para isso requerido por António Carneiro e Rui Tavares, por parte de todo o povo, que com pregão e campa tangida foi junto e chamado, estando presentes o dito Lopo de Ares, escrivão da Câmara, e Tomé Vaz, tabelião público e judicial, ambos de Vila Franca, e João de Aveiro, do dito lugar da Ribeira Grande, deu juramento o dito Capitão a Jorge da Mota, juiz ordinário em Vila Franca e a João do Penedo e António Carneiro, homens nobres, moradores na Ribeira Grande, que escolhessem doze moradores da dita vila, os mais suficientes que em suas consciências achassem ser, para governar e andar na Câmara dela, segundo costume das outras vilas da mesma ilha; elegeram Pero Roiz da Câmara, fidalgo da casa de el-Rei, João do Penedo, Félix Fernandes, António Carneiro, Rui Tavares, Luiz Gago, Pero Teixeira, João Fernandes, Henrique da Mota, Joane Anes Columbreiro, Afonso Jorge e João de Orta; e, dando o Capitão juramento a estes doze, juraram de reger e governar bem a república. Com as mais vozes do povo, saíram por eleitos Félix Fernandes, João do Penedo, António Carneiro, Luiz Gago, Afonso Jorge e Pero Teixeira, os quais seis eleitos elegeram os juízes, vereadores e procuradores do concelho, que o Capitão sorteou, fazendo seus pelouros, como era costume nas outras vilas. E, metidos em três sacos com suas pautas, do Capitão e eleitos, sc., um saco dos juízes; outro dos vereadores e outro dos procuradores do concelho, tirou um minino um pelouro, em que saíram por juízes primeiros, Félix Fernandes e Rui Tavares; e em outro pelouro, vereadores, Pero Teixeira e João Fernandes, uns dizem o Escudeiro, e outros um genro de Preamonte e em outro pelouro, João de Orta, por procurador do concelho; os quais cargos serviram estes primeiros oficiais da Câmara até dia de São João de mil e quinhentos e nove, em que, segundo seu regimento, se tiraram outros para servirem o ano seguinte. E dali a dez anos, na era de mil e quinhentos e vinte, aos quatro dias do mês de Julho, se fez a escritura em que se obrigou Fernão de Alvres, pedreiro, fazer a ponte de pedra junto da praça da dita vila da Ribeira Grande , tão alta que viesse com a praça o andar dela, e o arco de doze côvados de largo em vão e de altura do assento da dita ponte, até ao lume do arco, em vão de doze côvados, e a ponte de largura em vão por dentro de vinte e dois palmos, com seus poiaes e peitoris, e o arco da melhor cantaria que se achasse no termo da vila, e bem lavrado; todo o qual se obrigou a fazer o dito Fernão de Alvres por cinquenta mil reis, que se tinha naquele tempo, em que havia pouco dinheiro, por grande preço. Mas, depois se chamou por algumas vezes ao engano e veio chegar o que custou a ponte a mais de quatrocentos mil réis, em que o Fernão de Alvres perdeu muito de sua fazenda, ficando a ilha toda bem servida, com boa serventia e a vila da Ribeira Grande muito enobrecida com esta e com outra ponte que se fez abaixo, para a banda do mar, primeiro de pau e depois de pedra, mais pequena, com suas casas altas de sobrado, e seus jardins e pomares de diversas árvores fruteiras, e moinhos ao longo da ribeira, que faziam a vila mui fresca e bem servida. E para ser mais nobre, fizeram os moradores uma sumptuosa igreja Matriz, da advocação da Purificação de Nossa Senhora, que vulgarmente se chama Nossa Senhora da Estrela, por estar nesta ilha da parte da estrela do norte.
No ano de mil e quinhentos e sete, fizeram concerto com João de la Peña, mestre de obras, biscainho, Pedro Roiz da Câmara, António Carneiro, Luiz Gago, Rui Garcia, Pero Teixeira. Estêvão Martins João de Orta e Lopo Gonçalves, todos moradores na Ribeira Grande, que ainda então era termo de Vila Franca, mas pretendia e esperava cedo ser vila, aos quatro dias do mês de Junho do dito ano, que havia de fazer o dito João de la Peña a obra de pedraria da dita igreja de Nossa Senhora da Estrela, da feição e grandura da igreja de São Miguel de Vila Franca, por cento e quarenta mil réis e obrigaram-se mandar-Ihe acarretar toda a pedra e lenha necessária para cozer cal, com declaração que haviam de ser as paredes da nave do meio de trinta e seis palmos em alto, as quais, achando-se serem baixas, — de pedras — defeitas, Pero Roiz da Câmara mandou acrescentar nelas duas fiadas à sua custa; e o lajeamento da dita igreja foi arrematado na era de mil e quinhentos e vinte e oito a Fernão de Alvres, pedreiro, com obrigação de fazer e lajear os poiais ao redor, dentro na mesma igreja, tudo por preço de cinquenta mil réis e mais oitocentos réis de alças. A qual era uma só freguesia de setecentos e noventa e quatro fogos e duas mil e oitocentas e treze almas de confissão, das quais eram de comunhão duas mil e cento e quarenta e seis, na era de mil e quinhentos e setenta e seis; mas, depois que o Bispo D. Gaspar de Faria, no seguinte de setenta e sete, criou nova freguesia de São Pedro na Ribeira Seca, seu arrabalde, ficou esta de Nossa Senhora separada por si, e tem setecentos e trinta e quatro fogos e duas mil e quinhentas e oitenta e três almas de confissão, das quais são de comunhão mil e novecentas e quinze. O primeiro vigairo desta vila e freguesia foi Rodrigo Anes, que depois foi vigairo de São Sebastião na Ponta Delgada; o segundo, Frei Amante, que deixou umas casas para os vigairos que Ihe sucedessem, com obrigação de um ofício de três lições por sua alma em cada um ano; o terceiro, Frei Diogo Gusmão, castelhano, que dizem ser frade disfarçado em hábito de clérigo; o quarto, Manuel de Contreiras; o quinto, Frei Vicente; o sexto, Frei Manuel Pereira, que foi muitas vezes visitador e ouvidor do eclesiástico muitos anos e pregador na mesma vila; o sétimo, o Dr. Gaspar Frutuoso, que ora serve os mesmos cargos de vigairo e pregador. O primeiro beneficiado e tesoureiro, na mesma freguesia de Nossa Senhora, foi Inácio Dias; o segundo, António Lopes, e somente estes dois houve no princípio. Depois de acrescentarem outros dois, sc., Francisco Alvres e Vicente Anes, o Bispo D. Rodrigo Pinheiro acrescentou o quinto beneficiado, João Folgado, natural de Vila Franca; e por falecimento de Inácio Dias, primeiro beneficiado, sucedeu o sexto em ordem, Simão Correia Tavares, que depois foi na Beira prior de Rapa e Mangual; o sétimo, Pedro Anes, que sucedeu no benefício de António Lopes; o oitavo, Belchior Manuel, que depois foi vigairo do Faial; o nono, Jorge Fernandes, o Damão, que depois foi beneficiado em Porto Formoso; o décimo, Luiz Anes, que depois, trocando com João Nunes Velho da Câmara, foi vigairo e ouvidor na ilha do Corvo; o undécimo, Miguel Dias que, sendo beneficiado em Porto Formoso, trocou com Jorge Fernandes Damão; o duodécimo, Manuel Tavares Furtado que sucedeu a seu irmão Simão Correia Tavares, prior de Rapa; o décimo terceiro, Manoel Vaz; o décimo quarto, o bacharel Ascêncio Gonçalves, que sucedeu no benefício de Vicente Anes; o décimo quinto, Gaspar Alvres, o Velho, que o Bispo D. Jorge de Santiago acrescentou de novo; o décimo sexto, Ascêncio Gonçalves, o Velho, que sucedeu a Francisco Alvres; o décimo sétimo, Salvador Roiz, que sucedeu no benefício de Gaspar Alvres, o Velho; o décimo octavo, Cristóvão Ferreira, que sucedeu ao bacharel Ascêncio Gonçalves, que fizeram vigairo de Santa Clara, na cidade da Ponta Delgada e depois de São Pedro da Ribeira Seca; o décimo nono, Gaspar Alvres, o Moço, que do lugar de Rabo de Peixe mudou o Bispo Dom Pedro de Castilho para a dita vila da Ribeira Grande; o vigésimo, Baltasar Gonçalves, que sucedeu no benefício de Cristóvão Ferreira; o vigésimo primo, António Roiz, que o Bispo D. Pedro de Castilho acrescentou de novo; o vigésimo segundo, Duarte Lopes, que sucedeu no benefício de Manoel Vaz, defunto; pelo que ao presente tem esta freguesia oito beneficiados. O primeiro cura nela foi Gaspar Alvres, o Moço; o segundo, António Roiz; o terceiro, Mateus Nunes, que agora serve. E o primeiro tesoureiro foi Inácio Dias, primeiro beneficiado; o segundo, Manoel Dias Barroso; o terceiro, Baltazar Gonçalves; o quarto, Agostinho Tavares, que agora serve com muita limpeza e cuidado. E, além dos padres que servem na igreja, o mais do tempo havia nesta vila seis, sete extravagantes. A igreja é de naves e tão grande que depois de feita diziam alguns que era grande pombal para tão poucas pombas, por ser então a gente pouca, mas já agora não cabe nela. Da sua porta principal se vê a maior parte da vila, que tem defronte, e muito grandes e formosos campos de terras lavradias e fertiles e altas terras, montes e vales, e se descobre o mar, com que fica muito alegre, graciosa e bem assombrada, e poucas igrejas se acharão de tão boa vista, nem tão ricas de ornamentos, por ter um pontifical de brocado que os moradores compraram com suas esmolas e mandaram consertar com grande custo, tão rico que em poucas partes dos Regnos de Portugal e Castela se há- de achar seu igual. Tem esta freguesia de Nossa Senhora da Estrela sufragâneo o lugar de Rabo de Peixe e anexas cinco ermidas, sc., de Nossa Senhora do Rosairo, Santa Luzia, Santo André, São Sebastião, Nossa Senhora da Concepção, afora a do Espírito Santo, que é um sprital para pobres e doentes, situado junto da praça, e afora um sumptuoso mosteiro da advocação de Jesus, acima do sprital, não tão rico em edifícios, como em virtudes de nobres e virtuosas religiosas, o qual fez em suas próprias casas Pero Roiz da Câmara. E na era de mil e quinhentos e quarenta e cinco, ele e sua mulher, D. Margarida de Betancor, fizeram partido com Manuel Machado, mestre de obras, filho de Afonso Machado, de Ihe fazer uma capela de abóbada, com seu coruchéu alto e um portal da igreja do Bom Jesus do dito mosteiro, por oitenta e cinco mil réis, aos dezasseis dias do mês de Março do dito ano, e obrigou-se o dito Pero Roiz dar toda a pedra e cal e as mais coisas necessárias para a dita obra. Depois de caído com o tremor da terra, tornou a refazer grande parte dele seu filho, Henrique de Betancor de Sá; em que há quinze religiosas de véu preto e dez noviças. O qual parece que, estando antre a vila e a serra, que a está ameaçando com fogo e fumo, estão suas religiosas com sua religião e virtudes detendo os montes que não corram sobre ela. Teve este mosteiro boas rendas de que perdeu muita parte por se cobrirem suas terras de pedra pomes no segundo incêndio, que contarei a seu tempo. São da ordem de Santa Clara observantes e dão obediência aos frades de São Francisco.
A freguesia de São Pedro da Ribeira Seca que se desmembrou da vila da Ribeira Grande e distará dela um tiro de mosquete para a parte do ocidente, com uma ermida da Madre de Deus, que fez Manoel da Costa, junto da sua quinta, tem cento e noventa e um fogos, e seiscentas e oitenta e três almas de confissão, das quais são de comunhão quatrocentas e noventa. O primeiro vigairo foi Luís Cabral; o segundo, o bacharel Ascêncio Gonçalves, que agora tem o dito cargo. Há nela muitos homens honrados e boas terras que se chamam do Morro, por um alto que está junto do mar, assim chamado, e outras duas lombas em que têm as mesmas granjearias que os da Ribeira Grande, com que uns e outros fazem soma ao presente de novecentos e vinte e cinco fogos, e três mil e duzentas e sessenta e seis almas de confissão, das quais são de comunhão duas mil e quatrocentas e cinco. Nestas duas freguesias há muita gente de armas; primeiro houve quatro bandeiras de duzentos e cinquenta homens em cada uma, sc., três na vila e uma em Rabo de Peixe, cujos capitães foram: o primeiro, Rui Gago da Câmara, e seu alferes António de Sá, seu primo, e sargento, Pero Lourenço; o segundo, João Tavares, e seu alferes, o primeiro, Gaspar de Braga, o segundo, Ciprião da Ponte, o terceiro, Baltasar Tavares, que depois foi capitão da mesma bandeira, o quarto alferes dela, Sebastião Jorge Formigo; o terceiro, Gaspar do Monte, e seu alferes, Diogo de Morim, seu genro. Em Rabo de Peixe, foi capitão Fernão de Anes e alferes, Brás Raposo, seu genro. Por falecimento de Gaspar do Monte sucedeu em seu lugar João do Monte, seu filho, e por falecer Diogo de Morim ficou por alferes Nuno de Sousa, da Ribeira Seca. Na segunda eleição que mandou el-Rei fazer foi o Capitão Manoel da Câmara à casa do concelho da Ribeira Grande e elegeu outros capitães a vozes, em que foi eleito por capitãomor Rui Gago da Câmara, e Lopo Dias Homem, por capitão; da segunda bandeira, Pero de Paiva, seu alferes, Simão de Sousa, sobrinho, sargento, António Cansado; Nuno de Sousa, capitão da gente da Ribeira Seca, seu alferes Ciprião da Ponte, sargento, Estêvão Pires; e em Rabo de Peixe, por capitão de outra bandeira, João Roiz, do Pico da Pedra, e seu alferes Bertolameu Roiz, seu irmão, e sargento, Amador de Sousa; e foi eleito por sargento-mor, Duarte Privado. Dos que agora servem direi adiante. Também poucas vilas haverá de tão boa serventia de água e moendas, porque tem dentro em si seis moinhos, cada um de duas pedras, melhores e que melhor moem que todos os da ilha e Portugal, nos quais o Capitão tem de renda perto de trezentos moios de trigo cada ano, em que vão fazer os da cidade suas farinhas; e é abastada de pão, carnes, pastel, linho e legumes, tem criações de gados, ainda que depois do incêndio segundo falta de lenha. Chega o dizimadouro dela , uns anos por outros, a render três contos para el-Rei, pouco mais ou menos, e o dízimo do linho a quarenta mil molhos. Nela se davam os melhores melões de toda a ilha ou iguais com os da fajã dos Mosteiros, o que se perdeu com a alforra que caiu depois do segundo terremoto desta ilha. E muito mais nobre e rica fora, se os senhorios das suas terras viveram nela. Os moradores não são tão ricos como honrados e nobres, por perderem muito de suas fazendas com fianças e invenções de canas de açúquere que o bicho comeu, como a hera de Jonas. O porto de Santa Eiria pela costa ser brava, não presta a esta vila para navios, nada se carrega nele e só serve de batéis; e para saída de seus frutos e carregação de seu trigo se serve do porto da vila da Alagoa, que Ihe está julgado por sentença do Regno.
Esta vila, tão bem situada antes do dilúvio segundo, com trazer depois a ribeira nos Invernos muitas águas de enxurro, com pedra e madeira do mato, atupiu a sua foz e levou ao mar a maior parte e acravou a menor, derribando e assolando duas ruas principais e uma menos principal, em que levou ao mar perto de duzentas casas, as mais delas sobradadas, e o melhor da vila, com que ficou sem lustro e com uma só ponte de madeira que depois fizeram, e já a tornou a levar a ribeira quatro ou cinco vezes, e com grande custo se tornava a reedificar cada uma vez destas; mas se a ribeira assolou as casas e pontes, não caiu tanto cinzeiro por esta parte que deitasse a perder as terras. Contudo os homens honrados, não podendo reedificar suas casas, nem sanear estas quebras e perdas, como cada um melhor pôde, se arredaram os mais para fora da vila, perto das suas lavranças, em que granjeiam de tal modo que com todo o trabalho passado vivem à lei da nobreza, com seus cavalos na estrebaria e suas casas abastadas. E ainda esta vila é a mais bem servida, abastada e farta de toda a ilha e tem muita granjearia para homens trabalhadores e pobres porque, além de seus jornais e empreitadas, em diversas maneiras de serviço, recolhem-se nela em cada um ano cinco mil pedras de linho, que eles lavram e granjeiam, das quais se vendem as três mil para fora e por os da cidade da Ponta Delgada mandarem moer aos moinhos dela há na dita vila mais de cinquenta homens que os servem neste trabalho, com duas bestas cada um, levando por cada um alqueire meio vintém, que em cem carregas somam cada dia seis mil réis, que ao cabo do ano valem seis mil cruzados que, com quatro mil do linho, vêm a montar dez mil cruzados. Mais colhem também quatrocentos e, pelo menos, trezentos moios de favas, das quais vendem mais de duzentos, e muita junça, em que mandam engordar porcos de toda a ilha; além do que ganham em carretos de lenha para a vila e de carros da cidade para a dita vila, e dela para a cidade, em pastel que acarretam e outras coisas; com que está averiguado valerem os serviços destes homens, uns e outros, em sua granjearia, mais de vinte mil cruzados cada um ano, e tudo isto de homens pobres e nenhuma coisa dos que governam a terra, porque se não prezam disso. Pelo que parece que em nenhuma terra do mundo se acharão homens mais isentos que os pobres dela que, como têm quatro sacos de trigo, duzentas abóboras, dez alqueires de favas e algumas cebolas, com dois cabos de alhos e um porco à porta, e cada um tem sua casinha, ou própria ou de foro, sem sentir necessidade alguma, têm-se por mais fortes e ricos que todo mundo. Mas, a gente honrada e da governança é mais macia, porque não são arreigados em raiz e suas lavouras não Ihe abastam tanto conforme ao estado de suas pessoas. Além das águas que tem esta vila, da ribeira e levadas dela, que somente servem para a lavagem de roupa, e outras muito longe de que bebem os que moram ao longo delas , há algumas fontes que estão perto, acima da vila. A fonte de que se tirou a água do chafariz ou fonte da vila, que nela se bebe, sai perto de umas pedras brancas ; era muito boa água até ao terremoto e incêndio que aconteceu nesta ilha o ano de mil e quinhentos e sessenta e três, porque devia de ter seu nascimento em alguma concavidade limpa; achavam-se nela as condições que se requerem a uma boa água, quase nascia com o rosto ao sol, era delgada e fria, sem nenhum sabor, e assim satisfazia com sua bondade a quem a bebia, porque se bebia dela o que a vontade pedia e nada embaraçava o estômago nem impedia as mais obras da natureza. Mas, com o terremoto que disse, que teve a força toda perto da mesma fonte, detrás da serra de Vulcão, arruinou-se a terra, abrindo-se em muitas partes e rebentou o biscouto de pedra fervida para a mesma parte da fonte, muito perto, e parece claro que para a dita fonte e concavidade do monte se abriram comissuras e veias de pedra hume e enxofre, que inficionaram e corromperam a dita água, que agora é grossa e cheira a lodo, e muitos anos depois do terremoto fedia a enxofre e se sentia nela fedor de pedra hume. Desta mesma água se deu um cano para a freguesia da Ribeira Seca, de que bebem os seus moradores porque com a quentura do enxofre vem como cozida.
Acima desta vila está perto um pico, que se chama Monte de Trigo, por o parecer posto na eira; logo mais para a parte da serra, o lugar onde esteve uma sumptuosa fábrica em que se fazia pedra hume, como adiante direi; e mais pela terra dentro, quase ao pé da mesma serra, perto de meia légua da vila, antre a dita Ribeira Grande e a Ribeirinha, estão aparecendo na terra umas furnas pequenas, chamadas por isso Caldeiras, de que adiante direi. Sobre a Ribeira Seca, da banda da serra, está um pico chamado do Sapateiro, porque foi dum oficial deste ofício, de que correram duas ribeiras de fogo no tempo do segundo terremoto, de que depois contarei, uma delas pela Ribeira Seca, que tem este nome por não chegar a água que por ela desce abaixo ao mar e secar de todo no Verão, ainda que algumas vezes traga enchente no Inverno.