Também dá esta terra açúquere. O primeiro que o experimentou foi Lopeanes de Araújo, que mandou em sua casa pisar e espremer umas canas de casa de um Sebastião Pires, que foi o primeiro que prantou um alqueire de terra, ou dois, delas, e, cozendo o sumo e deitandolhe senrada, acabado de alimpar e escumar, ficou o melado perfeito, o que vendo Lopo Anes disse: — açúquere temos. Então, que foi na era de mil e quinhentos e quarenta, moeu Sebastião Pires as outras canas que tinha, em um engenho como de pastel, com sua mó e alfarge com uma besta, e fez até obra de quinze pães de açúquere, que foram os primeiros que fizeram nesta ilha. E depois um Sebastião Gonçalves, filho de Hierónimo Gonçalves, morador também em Vila Franca, por ver que havia boa mostra do açúquere e esperança de se poder fazer bom, foi à ilha da Madeira e fez concerto com Baltazar Pardo, que veio com ele a esta ilha e morou nas casas de Marcos Dias, na Praça, trazendo consigo um Fernão Ligeiro, mestre de fazer engenhos de açúquere, o qual fez ao dito Sebastião Gonçalves o primeiro engenho na Água de Alto, arriba do caminho do concelho, em Vila Franca. E depois fez o segundo na mesma lomba da Água de Alto, de Gabriel Coelho, na fazenda de Simão da Mota, que também tinha parte nele. Feitos estes dois engenhos, se tornou Fernão Ligeiro para a ilha da Madeira e ficou um seu criado, chamado Afonso Pires, por alcunha o Pé de Chumbo a que depois chamaram Chumbo, também mestre de engenhos, e fez o terceiro engenho, de André Gonçalves de Sampaio, e de Diogo Gonçalves e de João Anes, mercadores, na Água de Alto, ao longo do mar. Depois, este mesmo mestre Chumbo fez o quarto engenho, de Lopo Anes de Araújo e de Rui Vaz, morador na cidade do Porto, na Ribeira Seca, na fazenda do dito Lopo Anes, junto do caminho que vai para a Maia.
E todos quatro estiveram moentes e correntes alguns anos, mas desfizeram-se como a hera de Jonas, depois que entrou o bicho nas canas, tirando o de André Gonçalves que ainda está em pé, mas não moe, e outro de Lopo Anes que custou seiscentos mil réis de fazer, e foi vendido a Sebastião de Crasto por sessenta mil réis, o qual somente moe agora e tiveram seus filhos António de Crasto e Manuel de Crasto, e depois sua mãe e Diogo Leite, seu cunhado, onde se faz muito açúquere, como nos outros se fazia, mas não tão bom como o da ilha da Madeira.
Naquele mesmo tempo se fez outro engenho do Capitão Manuel da Câmara, abaixo da vila de Água do Pau, o qual também moeu, mas também cessou e se desfez por causa do bicho das canas. Depois destes, se fizeram dois engenhos na vila da Ribeira Grande, um de Diogo de Morim e de Fernão Correia, que foi o primeiro, e outro de Jorge Gonçalves Cavaleiro e de outros companheiros, que também pela mesma causa se desfizeram.
Outros dizem que o açúquere nesta ilha de São Miguel começou desta maneira. Dando-lhe princípio o dito Sebastião Pires, natural de Guimarães, morador em Vila Franca do Campo, abaixo da ermida de Santa Catarina onde tratava de mercador, e no primeiro terramoto perdeu quanto tinha e, vendo-se desbarratado , fez-se serrador de madeira, e sua mulher, vendendo vinho, azeite, mel e outras mercadorias alheias, ganhava assim sua vida; e, vindo a ter alguma posse, ordenaram fazer algumas camas de roupas, dando pousadas a pessoas que as haviam mister, de maneira que era sua casa estalagem onde se recolhiam muitos estrangeiros que acudiam e iam ter àquela vila, pola alfândega que nela estava. Vindo da ilha da Madeira uns mercadores que se agasalharam em sua casa, deram a sua mulher algumas canas de açúquere que traziam, das quais ela, como coisa por demais ou por curiosidade, prantou em um quintal pequeno da casa uns pedaços, que em pouco tempo arrebentaram e cresceram. Vendo-as perfeitas e formosas, as colheu e foi prantar em um sarrado que tinha abaixo da Abegoaria, onde depois viveu muito tempo e agora vive um seu filho, chamado Francisco Pires, e ali se deram muito melhores que as que havia trazido do quintal de sua casa. Dali se começaram de espalhar e repartir por muitas pessoas da dita vila, que prantavam quem uma dúzia de canas, quem mais, quem menos, como cada um as podia haver. Foram assim multiplicando tanto, que em pouco tempo o dito Sebastião Pires e outras pessoas, como Lopo Anes de Araújo, Cristóvão Dias, Manuel Lopes, Marcos Dias, vieram a ter uns alqueires de terra prantados delas, mui douradas e formosas, mas não serviam de mais, até então, que de as comerem, venderem e darem, e assim se gastavam e espalhavam pela ilha.
Mas, Lopo Anes de Araújo, parecendo-lhe que se poderia delas fazer açuquere, disse a Bastião Pires: — quereis, compadre, que façamos ensaio e experiência destas canas, se se fará açúquere delas? Disse Bastião Pires: — e quem saberá fazer isso? Respondeu Lopo Anes: — eu sei quem o fará. E logo fez ir da Ponta Delgada um Fernão Vaz, homem honrado, natural da ilha da Madeira, casado e morador na dita vila, que agora é cidade, o qual deu ordem como se fez um engenho de besta, como de pastel, mas o assento da mó diferente, porque era de uma pedra grande e mui cavada, a maneira de gamela e furada pelo fundo, por onde o sumo das canas, que dentro nela se moiam, ia por debaixo do chão, por uma calle ou bica, sair fora do andaimo da besta que moía, e assim fez fazer também um fuso e caixa para espremer o bagaço, e uma fornalha com uma caldeira em cima, a maior que então se achou, onde cozia aquela calda, e cozida a deitava em uma tacha e ao outro dia fazia o mesmo, até que fez cópia de melado para se poder fazer açúquere. Um Diogo Gomes, morador na Relva, da dita vila, se ofereceu a o temperar e purgar, por haver estado na ilha da Madeira, em casa de um seu tio, senhor de um engenho onde ele comunicava, ainda que não era oficial do mesmo engenho, e fez logo dois pães de açúquere muito fino; mas não moíam senão as meias das canas, que é o perfeito delas, pelo que parece que, com sua pouca ciência e menos experiência, saiu aquele açúquere assim tão bom e tão fino.
Neste meio tempo, veio a ter a Vila Franca um mancebo da ilha da Madeira, que lá servia de caldeireiro, que dali por diante temperava o assuquere que se fazia, até que acaso veio da Canária um castelhano, mestre de açúqueres, o qual fez no mesmo engenho algum açúquere. Logo depois deste, de Sebastião Pires, fez Cristóvão Roiz sete pães, já melhor que o de Sebastião Pires. Fez isto tanto alvoroço na gente e moradores da dita vila, vendo principalmente escusarem-se custos de água para regarem as canas, pois sem regadia se davam mui formosas, que mandou logo Lopo Anes de Araújo buscar à ilha da Madeira um navio de canas para prantar, e foi o primeiro que começou a entender nesta granjearia com alguma companhia; ao qual seguiram outros, como foi um Sebastião Gonçalves com companhia de um Baltazar Pardo, da ilha da Madeira, que fizeram engenho, e Lopo Anes outro. Mas, como viram o princípio não ser como se cuidou e por causa da lenha que importava muito e os açúqures baixos, não quiseram sustentar isto para diante; perderam tanto que se lançaram desta granjearia, e vendeu Lopo Anes seu engenho, dizem que a Gabriel Coelho, que nele tinha parte e aos Crastos. Francisco Vaz e Gabriel Coelho tinha outro com companhia de António de Pesqueira, burgalês, que nesta ilha residiu, onde também Simão da Mota tinha sua parte, o qual engenho se desbaratou e receberam seus autores muita perda. Pero da Costa fez outro com companhia de Sebastião Dias, de Água de Alto, que sustentaram algum tempo e também cessou pelo pouco proveito que nele acharam. E assim cessaram os outros todos, tirando o de Lopo Anes que houveram os Crastos, o qual sustentaram, por serem muito ricos, até a era de mil e quinhentos e oitenta e quatro anos, em que faleceu Manuel de Crasto, derradeiro herdeiro deste apelido, morador que foi na dita vila, e depois sua mãe e Diogo Leite, seu genro, casado com D. Helena, irmã dos ditos Crastos, cuja fazenda valeria quarenta mil cruzados. Os que vieram depois dele, quer herdeiros, quer compradores de sua fazenda, não sei o que farão, se serão curiosos de sustentarem esta doce e rica mercadoria na terra.
Depois dos ditos engenhos se fizeram outros e se carregaram alguns navios de assúqure ; mas, pela vaidade que entrava nos homens com esta riqueza, desfez Deus as canas com um bicho, como a hera de Jonas. E não havendo canas, cessaram os engenhos todos, excepto o dos Crastos, que até esta era de mil e quinhentos e oitenta e oito permanece.
Ultimamente, o senhor Conde Rui Gonçalves da Câmara, de grande curiosidade, fazendo prantar muitas canas no sítio das Furnas, onde trazia muita gente trabalhando nelas, também desistiu de fazer ali engenho e povoação como pretendia fazer, pelo pouco proveito e muito custo delas.
Também há nesta ilha muitas betatas , que se criam debaixo da terra, em canteiros feitos à enxada, a modo de lavoura de camalhão, mas muito maiores, onde prantam a rama delas, que é delgada e tem o talo e folhas como de hera e deita raízes que vão engrossando e crescendo, e são as mesmas betatas; as quais tiveram princípio nesta ilha em casa do dito Sebastião Pires, pelo modo que começaram as canas de açúquere porque vindo à dita Vila Franca uma nau das Índias de Castela e recolhendo-se em sua casa alguns passageiros, deram a sua mulher umas betatas pequenas, delgadas e murchas, como são todas as que de lá vêm, as quais ela prantou no seu quintal, onde nasceram e se fizeram muito formosas. Dali começaram a levar algumas pessoas alguns raminhos que prantaram nos quintais, com que em pouco tempo se foram multiplicando. Depois de haver alguns betatais vieram a criar-se nelas uns bichos grandes, Iistrados de verde e amarelo, tão grossos como um grosso dedo, de mais de meio palmo de comprido, com a boca e cara carrancuda e rabo revitado , os quais se acham e criam também no orjavão e na pimenta redonda do Brasil, que não queima, e nas oliveiras; e, como nesta terra não havia outros senão os bichinhos das hortas, que se criam nas couves e outra hortaliça, tiveram estes por peçonhentos como na verdade o são, e assi aborrecidos e temerosos deles, dizem que largaram a granjearia das betatas e se vieram quase a perder. Mas, correndo tempo e não se achando algum dano que eles fizessem, se tornaram a aproveitar delas e fazerem searas desta fruta como de trigo, de que carregam navios para o Reino, e na mesma terra serve de mantimento à gente pobre e de gulodice à rica, comendo as betatas assadas ou cozidas, as quais já agora não criam tantos bichos, como dantes criavam.