Por morte do ilustre Rui Gonçalves da Câmara, terceiro Capitão desta ilha de S. Miguel e primeiro do nome, Ihe sucedeu na capitania seu filho João Roiz, que outros chamam João Gonçalves da Câmara, grande cavaleiro, muito discreto e benigno, tanto amigo de seus súbditos, tratando-os com amor, dádivas e cortesia, que convidava e afeiçoava muitos homens fidalgos do Reino para virem viver à sua boa sombra nesta ilha; como de feito vieram alguns, que já tenho atrás ditos, porque, além de ser naturalmente bem acondiçoado, humilde, liberal e grandioso, foi criado na Corte que artificiosamente realça a virtude e habilidade, engenho, discrição e bondade natural com que cada um nasce; como também, pelo contrário, acrescenta e refina a doidice, soberba condição e malícia do que nasceu mal ensinado, em cuja má inclinação a desenvoltura da Corte é como espada em mão de doido. Este Capitão, sendo mancebo, foi a África, onde esteve por fronteiro alguns anos em serviço de el-Rei. E na mesma Corte, onde andava, casou, em vida de seu pai, com D. Inês da Silveira, dama do Paço, a que el-Rei D. João, segundo do nome, tinha feito mercê de dezasseis mil réis de tença em sua vida dela, e pagos das suas rendas nesta ilha, para onde a trouxe seu marido, João Roiz da Câmara, em vida de seu pai, Rui Gonçalves, segundo parece.
Houve João Roiz da Câmara da dita D. Inês da Silveira, sua mulher, os filhos seguintes: o primeiro, Rui Gonçalves da Câmara, que herdou sua casa e Ihe sucedeu na capitania, de que adiante direi.
O segundo filho, chamado João de Melo, foi frade professo da ordem de S. Bento, no mosteiro de S. Bernardo de Alcobaça, de que depois contarei alguns sucessos, e por um desastre que Ihe aconteceu, se foi fora do Reino e dizem que faleceu no mar, indo em uma nau para Frandes; o qual, sendo mancebo, houve de uma Maria Dias um filho natural, chamado Rui de Melo, que casou na Índia e veio dela por capitão de uma nau de seu sogro, e tornando nela, se perdeu seiscentas léguas além da Índia, onde foi ter. De lá tornou para Goa, em uma barca que mandou fazer da madeira da nau.
O terceiro filho, por nome Diogo Nunes, foi esposado com D. Maria, filha de João d’Outeiro e de Guiomar Raposa , mulher que fora de Rui Vaz Gago do Trato, sendo moço de pouca idade, sem fazer vida maridável com ela; o qual, andando em Portugal, na Corte, se passou a África e lá o mataram os mouros em serviço de el-Rei.
Teve mais o Capitão João Roiz de sua mulher D. Inês da Silveira outro filho, chamado Garcia de Melo, e três filhas, D. Joana, D. Beatriz e D. Catarina, que faleceram solteiras, como logo direi.
Dizem alguns antigos que logo quando D. Inês veio a esta terra com seu marido João Roiz da Câmara, em vida do Capitão Rui Gonçalves da Câmara, primeiro do nome, seu sogro, por ela ser ainda muito moça e dama delicada, quando ouvia berrar os touros, que andavam muitos no mato junto das casas e povoados, perguntava a seu marido que era aquilo, e ele zombando Ihe respondia que eram demónios, de que ela ficava muito espantada e cheia de medo; e achando-a uma vez o Capitão, seu sogro, chorando, Ihe perguntou porque chorava, ao que ela respondeu: — Choro, senhor, porque me trouxeram a terra onde andam demónios, que João Roiz me disse que eles eram os que berravam. Ele Ihe tirou o medo com brandas palavras e Ihe provou o contrairo, com mandar ajuntar e trazer diante dela muitas vacas e touros, que com ciúmes berravam e pelejavam, dizendo-lhe: — Vedes aqui, filha senhora, os demónios que vosso marido disse. Com que ela ficou tão satisfeita e contente que, dali por diante, muitas vezes ia onde enfogueiravam a ver os touros pelejar e berrar, e também tomava por passatempo ajudar a enfogueirar. Ela e o Capitão, seu marido, fizeram muito tempo habitação na Ribeira Grande, desta ilha.
Este ilustre Capitão João Roiz da Câmara ainda deu muitas terras de sesmaria a alguns homens principais que em seu tempo vieram a esta ilha por seu respeito. E muitos adquirira e trouxera a si, como a pedra de cevar atrai o fino aço, se vivera muitos anos; mas viveu pouco, depois que teve a capitania, a qual governou com muita prudência, justiça, paz e bom exemplo.
E, adoecendo de uma grave enfermidade, se foi curar ao Reino, onde lá faleceu na era de mil e quinhentos e dois ou três anos.
Depois de seu falecimento esteve sua mulher D. Inês nesta terra dois ou três anos, até que veio da Corte seu filho Rui Gonçalves da Câmara, com sua mulher, a tomar posse da capitania em que sucedeu a seu pai, João Roiz. Chegado ele, se partiu ela para Portugal, em uma caravela que se chamava a Jaca levando consigo Garcia de Melo, seu filho, e as três filhas já ditas, D. Joana, D. Beatriz e D. Catarina, com tenção de as meter freiras em algum mosteiro no Reino, ou casá-las. E todas morreram no mar onde se perdeu o navio com tormenta na mesma noite que partiram, logo junto desta ilha, onde algumas pessoas afirmaram ouvir de noite gritos de gente. Outros dizem que se perdeu nas Formigas; outros no ilhéu de Vila Franca; outros que em Vale de Cabaços, onde se ouviu a grita. Mas parece que mais longe devia ser, pois não saiu à costa nenhum sinal deste naufrágio.
Este Capitão João Roiz da Câmara governou esta ilha com cargo de Capitão, por seu pai Rui Gonçalves da Câmara, algum tempo, sendo ele no Reino, com provisão do Duque, que assim dizia: «Eu, Duque, vos faço a saber a vós, juízes e oficiais, fidalgos, cavaleiros e escudeiros e homens bons e povo da minha ilha de S. Miguel, que a mim disse Rui Gonçalves da Câmara, fidalgo de minha casa e do conselho de el-Rei meu Senhor e Capitão por mercê da dita ilha, como ele deixara ora lá em seu cargo de Capitão a João Roiz da Câmara, fidalgo de minha casa, seu filho; da qual coisa a mim me apraz, por sentir dele que é tal, que usará do dito cargo assim como pertence a serviço de el-Rei meu Senhor e meu, e bem da justiça; pelo qual vos rogo e encomendo e mando a todos em geral e a cada um em especial que obedeçais ao dito João Roiz em todas as coisas que ao cargo da dita capitania pertencerem, assim tão cumpridamente como fareis ao dito Rui Gonçalves, seu pai, se lá estivesse, e de direito sois obrigados fazer. O que de um e outro assim cumprirdes vo-lo agradecerei e terei em serviço. E do contrairo me desprazeria e tornaria a isso como fosse razão. E por este mando ao dito João Roiz que, no dar das terras, tenha esta maneira, sc., que as que forem dadas, não Ihe dê espaço nem Ihe bula com elas, nem dê terra de novo a homens que tiverem terras na dita ilha, e somente dará das terras maninhas àquelas pessoas que terras não tiverem, assim aos moradores da dita ilha, como àqueles que de novo a ela vierem viver. E qualquer coisa que ele acerca do que dito é fizer em contrairo, mando que não seja valiosa. Feito em Santarém aos vinte e cinco de Dezembro. — João Cordovil o fez, ano de mil e quatrocentos e oitenta e sete».
Dizem os antigos que, vindo a Vila Franca do Campo, desta ilha, armada castelhana no tempo das guerras entre Portugal e Castela, este ilustre Capitão João Roiz da Câmara, ou governando ele por seu pai, ou quando já era Capitão, por ver a pouca gente que havia na ilha, mandou pôr à vista, de longe, todas as mulheres e homens velhos e moços, com canas compridas arvoradas, de modo que parecessem lanças e gente armada, e os mais que podiam pelejar, junto do mar, quando os castelhanos quiseram cometer o porto, para os espantar e atemorizar. E cuidando eles que toda aquela mostra era de homens de armas, se foram, não ousando entrar na terra.