Ver e olhar para esta ilha naqueles dias, como estava esfolada toda, assim a terra do pão, como a do mato, especialmente as das serras corridas em barreiras e quebradas, vermelhas e pardas, fazia muito espanto. E, ainda que alguns dizem que os picos Escalvados correram aquele dia sobre a Maia, todavia outros afirmam que já eram escalvados dantes e que no dia da desolação de Vila Franca, de uma boca que está meia légua à banda da serra, sobre o Loural da Maia, que terá em redondo quatro ou cinco alqueires de terra em campo chão, arrebentou a terra que correu e levou os dois moinhos da Maia e matou a gente atrás dita, levando e cobrindo muitos pomares e figueiras que por ali estavam. E no mesmo tempo correu a quebrada da terra nas Furnas entre a alagoa grande e as ditas Furnas, e levou um grande espaço da superfície sobre si, com as árvores que nela estavam prantadas, ficando todas na ordem que dantes tinham, sem se mudar alguma do seu lugar, como está dito.
O monte das Furnas parece que, quando arrebentou no tempo que se descobriu esta ilha, ou antes dela descoberta, caiu a terra e polme dele ao redor pelo mato, que se chama a Serreta, que nasceu depois sobre o acravado e sobre os montes junto de Vila Franca. O mesmo parece que foi outro monte, onde agora está a grande alagoa das Furnas, como mostram as quebradas e rochas ao redor dela; e daqui, destas partes ou de outras, em tempo de outros antiquíssimos terramotos ou tremores, antes de ser achada esta ilha, saiu a terra e polme que cobriu estes montes ao redor de Vila Franca, como terra adventícia e postiça sobre eles. E, com o tremor grande, que foi no tempo do dilúvio de Vila Franca, quebrou a terra do monte que está sobre ela e correndo sobre a vila, a cobriu toda. Na Ponta da Garça e na Maia fez o mesmo; onde é de notar que a terra que correu sobre Vila Franca era uma quebrada de um pico que está sobre ela, a qual não é o solo e torrão de uma terra natural do pico, mas é terra que parece que caiu sobre aquele pico e ao redor de Vila Franca, no tempo quando arrebentaram as Furnas, ou outros picos em tempo de outros terramotos que antigamente houve nesta ilha, antes de ela ser descoberta, nem povoada. O que claramente se vê, porque a terra que correu sobre Vila Franca foi quebrada da face do pico e não é a natural, mas lodo, como cinzeiro, misturado com pedra pomes, que em outro tempo choveu sobre aquele pico, donde ela quebrou. Quem vir a quebrada e a mossa que fez no pico, com a quantidade, espaço e altura que tem, logo julgará que abasta para cobrir a vila e fazer o dano que fez, sem sair outra do centro, pois não há aí nenhuma mostra nem buraco por onde de baixo saísse; e ainda que parece pouca a terra que correu do monte, assim parece pouca pedra a que tem uma casa feita, porque está toda arrumada nela, mas desfeita a casa, ou antes de se fazer, enche rua e ruas e não cabe nas praças.
Assim a terra estava ali arrumada naquele monte, e, espalhada dali, cobriu praças e ruas de toda a vila, e posto que parece estar a terra enxuta no lugar onde está, cavando-a, se acha húmida, e, espalhada, parece lodo, como foi a que correu sobre Vila Franca, sacudida com algum espírito ou vento que, não cabendo nas cavernas da terra, andava buscando lugar de um lado para outro, fazendo tremer a terra para os lados e não tendo tanta força para sair e fazer lugar e boca por onde saísse, fez sacudir a terra do monte que estava sobre Vila Franca, e o da Ponta da Garça e o das Furnas e o da Maia, e fazerem os danos que tenho dito; porque, como diz Aristóteles no segundo Livro dos Metheuros , há duas maneiras de terramotos, uma que se chama tremor, quando se move a terra para os lados, com grande espírito ou vento que está debaixo das cavernas dela, o qual se chama tremor, o que acontece poucas vezes, porque poucas vezes se ajunta muito espírito ou vento que isto cause.
Outra maneira de tremor há de baixo para cima, porque se requere muito princípio e muita exalação congregada debaixo da segunda costa da terra, para que a faça arrebentar, como foi o segundo tremor da terra nesta ilha, no tempo do Capitão Manuel da Câmara , onde arrebentaram os montes e deitaram muita terra de si, como pelouro, o que propriamente se chama terramoto. Ainda que o arrebentar da terra, que então aconteceu, foi causado, não de exalações nem espírito ou vento, senão de minerais de salitre e enxofre que, crescendo muito debaixo da terra, se acendeu, pode ser que assoprada de algumas exalações e vento, e como fogo de bombarda deitou para cima toda a terra e arvoredo que sobre si em um monte tinha; como aconteceram desta maneira quase todos os terramotos desta ilha antes de ser achada, que foram tantos quantos são os picos dela, como eles estão dando testemunho com as bocas que têm abertas.
Mas, este terramoto de Vila Franca não foi causado por fogo, senão por ar encerrado nas concavidades da terra, que, buscando respiração por onde resfolegar, lidando e procurando ter porta sem a abrir, por não ser em muita quantidade, sacudiu a côdea da terra do monte que tenho dito, sobre Vila Franca, não correndo direita ao mar, senão de ponente para o oriente, um pouco espaço, passando uma ribeira, até se pôr sobre a vila, ao pé da serra e, alagando ali primeiro o mosteiro de S. Francisco, começou a descer direita ao mar e de caminho cobriu a vila.
Nem terá mais quantidade toda esta terra corrida que a que se vê faltar no monte; o que julgará quem bem o quiser considerar, e afirmará que nenhuma terra saiu do centro do dito monte, pois também não está feita nele boca alguma por onde saísse.
Bem podia ser este tremor causado por se converter alguma água ou humor nas concavidades e opacidades da terra, com proporção décupla em dez tanto de ar, e, não cabendo no mesmo lugar, fazer tremer a terra e dar grandes golpes para os lados, buscando parte para sair, e, sem a fazer, sacudiu a terra dos lados desta ilha, nos lugares que tenho contado.
A causa dos ventos e do tremor da terra declara maravilhosamente o Mestre Aleixo Vanhegas, no seu Livro Natural, aos trinta e dois capítulos, dizendo que, a maneira de animal, resfólega e arrota a terra, quero dizer que os espíritos que estavam encerrados nas concavidades na terra, como não puderam estar em pequeno lugar, buscaram saída, como a busca o arroto que não cabe no corpo do animal. Assim os ventos são uns arrotos que faz a terra, os quais sobem até a meia região do ar, que está mui fria, pelo qual não podem subir dali, e pelo conseguinte rebatem-se ali para os lados, como o fumo que topa no telhado e se quebra para os lados, umas vezes se acanala para um lado, e outras vezes se parte em duas partes contrairas, e outras vezes se redobra em círculo, derramado por todas as partes do circuito. Desta mesma maneira, a exalação ou vento que sobe da terra, se quebra no meio interstício, ou meia região; porque, pela densidade e espessura do frio, não a pode passar, pelo qual se rebate ali e se torna à terra e, tornando a ela, se vem pela parte do oriente, chama-se leste, e se vem pela parte do ponente, chama-se oeste, e se vem pela parte do setentrião chama-se norte, e se vem pela parte do meio dia, chama -se sul. E assim também cobra outros nomes vindo por entre estes quatro.
Algumas vezes, este arroto que faz a terra, está tão ensarrado nas cavernas da mesma terra, que não pode sair facilmente; e com a quentura do sol penetra alguma coisa do corpo da terra, resolve as humidades das concavidades e, como não cabem juntas com as exalações em um lugar, não saem remissamente como os ordinários espritos ou resfôlegos de que se fazem os ventos; mas, com o demasiado apressuramento, não se dão espaço nem vagar, e querem sair a tropel, da maneira que sai o espírito do corpo do homem. De maneira que podemos dizer que os ventos são os ordinários arrotos e o tremor o espirro que faz a terra.
Se enchemos uma alcanzia de água e a pomos ao fogo brando, pouco e pouco sai pela abertura o vapor; mas, se soldamos o agulheiro e a pomos a fogo rijo, antes que passe uma hora saltará e se fará pedaços, porque, à maneira do espirro, sairá subitamente o vapor que a quentura do fogo havia levantado da água; assim como diremos que também espirra o vapor da castanha que se deitou inteira no fogo, porque o humor da castanha, convertido em vapor, não cabe em tão pequeno lugar como é na casca. Também espirram os ovos que se põem a rijo lume quando não se Ihe quebra um pouco a casca, para que pela abertura saia o vapor que não pode caber, em forma de vapor, em pequeno lugar. Desta mesma maneira, diremos que espirra a terra o demasiado vapor que o calor do sol gerou em suas concavidades; e assim como o homem dá um e dois e três e quatro e mais espirros, assim a terra faz um e dois e três e quatro e mais tremores, quando espirra; mas, é de notar que, se estes espirros não saem direitamente para a face da terra, senão para os lados então se diz propriamente tremor da terra; mas, se não acharam concavidade aos lados para se estenderem e alargarem, senão direitamente saíram à face da terra, este tal espirro se diz terramoto, ou evulsão, ou empuxão, com que a terra se alça tão alta que se tira de uma parte e por grande espaço notavelmente vai pelo ar a vista de olhos, e se passa a outra; por onde acontece fazerem-se montes e vales onde não os havia, cerrarem-se umas fontes e abrirem-se outras, fundirem-se povos e quebrarem-se as rochas de pedra viva, e mudarem seus caminhos os rios e encolher-se por uma parte o mar e alargar-se por outra, e outras coisas semelhantes a estas.
Os tremores e terramotos soem acontecer quase ordinariamente às costas do mar e nas ilhas, pela abundância do humor que o calor do sol soe resolver em vapor. Nas partes secas que estão longe do mar, poucas vezes acontece tremer a terra; mas se precedessem três ou quatro anos de seca, que se quebrasse e fendesse a terra, e após eles sucedessem outros tantos de água, e após eles sucedessem grandes calmas, logo se seguiriam tremores e terramotos.
Estes perigos, com os raios, ventos e trovões, nos estão dando brados que velemos, que não sabemos o dia, nem hora em que nos hão-de chamar. Ainda com estes perigos e outros muitos que cercam ao homem, não falta quem se deite a dormir mui descuidado, como fizeram os de Vila Franca aquela noite do tremor. Que fizera, se não houvera perigo na vida e morreram todos os homens morte segura? Provavelmente se pode cuidar que amaram a Deus com amor mercenário e não foram bons de vontade, até os sinais antecedentes e preparações que às mortes naturais soem preceder. Mas, todavia, como quem estende um pouco o prazo, a imensa misericórdia de Deus ordenou que aos terramotos prece-dessem sinais que são: se o mar se alevanta sem vento, se as aves andam atordoadas por terra, se a água dos poços sai turva, e finalmente precede um estrondo e tom do ar, como no segundo terramoto que contarei, se ouviu dantes um estrondo pelo ar, como aves que vão voando e batendo as asas. E nos homens precede vágado de cabeça e debilitação dos membros, para que, sequer com estes sinais, se provejam e Ihes pese do mal passado e emendem o porvir. De algumas perdas e mágoas que causou este tremor que contei, em Vila Franca do Campo e em toda a ilha, se fez, Senhora, o romance seguinte.