Estando os negócios da Terceira um pouco em calma, sem de parte a parte haver cousa notável de que fazer menção, chegou-se o verão do ano seguinte de mil e quinhentos e oitenta e um, em o qual veio uma armada de sete naus grossas de Sua Majestade, de que era general D. Pedro de Valdez, e trazia por regimento vir na volta destas ilhas dos Açores e esperar os navios do Oriente, Índia, Guiné, Mina e de outras partes, para lhe dar favor e ajuda com mil homens que trazia em toda a dita armada, para defensão principalmente dela. E quando fosse tempo se havia de ajuntar com D. Lopo de Figueiroa, que já estava declarado para vir aquele ano com muito pouca gente sobre a Terceira, porque os enganou a fraqueza da ilha, cuidando que, a gente bisonha e pouco prática, bastaria pouca e boa para os render; de maneira que o dito D. Pedro Valdez, com a que trazia, muito lustrosa e valorosa, de soldados velhos e mui esforçados, como mostraram nesta ilha de S. Miguel, onde saíram em terra mui luzidos, se partiu daqui para a Terceira, praticando primeiro com o governador Ambrósio de Aguiar, para que, subjectando-se sempre a seu parecer, por aquela via se reduzisse a ilha Terceira ao serviço de Sua Majestade. E concluíram ambos que se mandasse uma pessoa religiosa, de autoridade, que lhe mostrasse a verdade, a qual pessoa o dito D. Pedro Valdez levaria em sua companhia e quando fosse tempo oportuno a deitaria em terra. E assim mais levaria seu sobrinho Martim Afonso de Melo, a quem delegaria seus poderes; e, sendo caso que sucedesse o fruto que disso se esperava, celebrar em nome de Sua Majestade os concertos e mercês que lhe parecesse que seriam necessários fazerem-se. Consultando assim, por lhes parecer que ninguém podia ser mais idóneo que o reverendo padre frei Pedro Mestre, que era guardião na cidade da Ponta Delgada, por muitas razões: — uma, por muitos anos ser guardião na Vila da Praia, onde mora a gente mais principal da dita ilha; outra, por haver sido comissário em todas estas ilhas, pregador e bom letrado e com outras muitas mais partes. O qual, sendo chamado do dito governador, acceptou aquele trabalho como bom filho do Seráfico S. Francisco. E logo se embarcou com Martim Afonso de Melo, em companhia de D. Pedro Valdez. E foram na volta de Angra, onde andaram vendo por alguns dias, ao redor da ilha, se dela lhes saía algum recado; o que era escusado imaginar, pois estavam então obstinados. Martim Afonso de Melo levava também por regimento que, fazendo pouco fruto, lhe daria embarcações o dito D. Pedro para avisar as naus da Índia, e dizendo-lhe um dia que as desse, respondeu-lhe que nem um marinheiro daria. Isto era por respeito de não querer o D. Pedro que houvesse ninguém que lhe ganhasse, nem por via de outrem se dessem avisos nenhuns, nem quis enviar a terra o padre frei Pedro Mestre, o que vendo o dito Martim Afonso de Melo, se embarcou para esta ilha, ele e o dito frei Pedro, e sucedeu-lhe bem, como direi adiante.
Vinha na companhia do dito D. Pedro Valdez um João ou Diogo de Valdez, seu primo, mui esforçado cavaleiro, por mestre de campo da gente de guerra, o qual, por ser amigo de empreender cousas árduas e repugnantes, para estender mais seu nome, ou por sua cobiça também, que dizem ter demasiada, disse a D. Pedro que pois tinham entre mãos a honra e proveito e tanto aparelho, porque esperavam dar isto a outrem, pois viriam os soldados do Reino e ganhariam tudo, ficando eles sem nada. Ajuntou-se a isto terem tomado o dia de antes um barco do Faial, em que vinha um homem que lhe fez a barra boa, donde lhe assegurou que saísse em terra, que aí não havia senão grandes servidores de el-Rei e que os que podiam pelejar eram quatro gatos. E, como havia de suceder, foi concluído que o dia seguinte, festa do Bemaventurado San Tiago, daquele ano, deitassem gente fora, e seria por esta ordem: que sairiam algumas peças de artilharia e a armada estivesse à mira para socorrer quando fosse necessário, e a ordem da gente, que em bom sítio fariam trincheiras; e, porque a armada não ficasse desamparada de gente, sairiam a metade somente, que foram quatrocentos homens.
Com esta determinação, como as lanchas prestes foram, desembarcaram e ganharam a terra que mal souberam conservar, que vale mais que adquirir. Chama-se ali a Casa da Salga, onde desembarcaram, e logo ganharam umas peças de artilharia que ali estavam. Começou-se a gente a desmandar e a queimar trigo e casas, soltando-se com demasias, as quais se não fizeram, e estiveram juntos, sem falta ganharam a terra. Entretanto acudiu a gente da ilha, e duas vezes os espanhóis os fizeram retirar, o que lhes tinha causado grande temor. Vindo socorro da Praia, trouxeram muito gado encobrado, apicaçado e mosqueado, com que vinham pulando as rezes, e com um frade em hábito de soldado, pregandolhe e animando-os de tal maneira que lhe fez alevantar seus fracos espíritos, e com o gado investiram e desbarataram todos. Dizem que o João ou Diogo de Valdez se pudera embarcar com toda a gente, e o não quis fazer, antes disse que quem se quisesse embarcar o fizesse, porque ele havia de morrer. Acompanhou-o a isto um Filipe Artal, fidalgo aragonês, de muita força, que, saindo com um montante nas mãos, disse que um bel morir toda a vida honrava, e assim o fez. E teve debaixo dos pés, quase morto, ao sirgueiro, que chamam Francisco Dias, que eles tinham por sua escora; e dois negros lhe deram por detrás com duas alabardas, pelo que, deixando primeiro bem vendida sua vida, morreu ele e o João ou Diogo de Baldes , bem mal aconselhado, e morreram muitos fidalgos castelhanos, entre os quais foi um D. Luís de Bazan, sobrinho do marquês de Santa Cruz e um sobrinho do duque de Alva; os quais rendidos, disseram que lhes concedessem a vida, mas eles, como gente que não sabe que cousa é vencer, negaram o que tão justa petição merecia, matando-os desumanamente.
Escaparam alguns que sabiam nadar e os mais morreram. No qual conflito, morreu muita fidalguia e gente nobre. Dizem se até noite se puderam sustentar que muita gente se lhes passara da sua banda.
Ficaram tão ufanos os da terra desta pequena vitória, em comparação dos muitos que eram, que começaram a dar no termo de bisonhos soldados com muita insolência, vestindo-se os plebeus dos muitos vestidos ricos e bons dos honrados moços. E em gente baixa esta novidade altera, e depois, pelo desvio que tiveram os mecânicos, que eram estes, não usaram de seus ofícios, levantando falsos testemunhos a quem tinha alguma cousa, e entravam nas casas e roubavam com crime de dizerem ser algum castelhano. E em uma procissão que fizeram pela tal vitória, da Sé até a Casa da Misericórdia, com as ruas enramadas e janelas alcatifadas, levaram um carro triunfante, carregado das armas que tomaram aos castelhanos, com as cabeças de alguns nas pontas dos piques, arvorados no mesmo carro.
D. Pedro Baldes , fique no peito de quem sabe sentir qual seria sua pena, pois não tendo faculdade para deitar gente em terra, nem licença para mais que esperar D. Lopo de Figueiroa, a cuja ordem a gente de guerra vinha , perder por sua própria opinião e ordem tão ilustres fidalgos, moços de pouca experiência na milícia, que isto só era parte para os não querer degolar, que com razão dele se pudera queixar quem nisto lhe vai. E dado caso que vencera, só por isto não ficara sem repreensão; pois uma das cousas que se imputou a culpa ao conde de Agamonte em Frandes , vencendo muitos mil franceses, foi por romper batalha e dá-la sem licença de el-Rei, quanto mais cometê-la com tamanha desigualdade. Sentiu isto D. Pedro de Valdez de maneira que esteve quase doido e tinha razão. Fez logo a saber o sucesso ao governador Ambrósio de Aguiar, desculpando-se, dizendo que não dera licença mais que para fazer aguada, e João ou Diogo de Baldez excedera a ordem por ele dada; e lhe fosse isto notório e lhe pedia o fizesse a saber a Sua Majestade. Respondeu-lhe o governador consolatórias palavras, como no interim havia mister.
Chegava-se o tempo que a armada havia de vir, e já tardava D. Lopo. Esperavam todos que trouxesse armada bastante para dominar aquela gente, mas por causa dos ponentes tardou e veio à entrada de Agosto de oitenta e um anos com vinte e duas velas, entre naus grandes e galeões. Tomou esta ilha e logo se enxergou na fraqueza dela que não abastava. Fez aqui aguada e partindo para Angra se ajuntou com D. Pedro Valdez. De navios era grande a cópia, mas gente muito pouca. Sabendo D. Lopo como se fora o padre frei Pedro Mestre, sem D. Pedro Valdez o mandar a terra, o mandou buscar a esta ilha de S. Miguel em uma caravela, que o levou, e, chegando, foi em um barco a ver se o deixavam desembarcar na ilha Terceira para dar sua embaixada e o desengano aos moradores dela, que eles sempre enjeitaram.
Chegando perto da terra, ouviram mosquetes e arcabuzes, com que lhe atiravam, sem os deixar chegar; e assim seu desejo ficou em vão e os da terra sem remédio.
Andando o dito D. Lopo voltando ao redor da Terceira, a cabo de oito dias mandou reconhecer a terra de noite; e receberam aos reconhecedores com pelouros. Causou alteração estarem tão alerta. D. Lopo, todavia, alvoroçado disto como soldado, do primeiro moto quis dar batalha: porém, reportado como capitão chamou a conselho, e acordou-se nele que a não deviam dar, pelo que se tornou logo na volta desta ilha, e foi-se ao Reino, onde foi de Sua Majestade agradecido, pelo bom termo que nisto teve, D. Pedro Valdez sentenciado à cabeça fora, mas padrinho como foi o Sereníssimo Cardeal, cunhado de Sua Majestade, o pediu, com sentença que nunca seria ocupado em cousas de serviço de el-Rei. Desta vez a desordem de D. Pedro Valdez e a tardança de D. Lopo de Figueiroa foram causa de não se tomar a Terceira, porque, antes que ele chegasse, chegou a ela Manuel da Silva por seu governador e viso-Rei, com o que ficou mais forte e obstinada.
Sentiu muito D. Pedro de Valdez a sentença dada contra a sua honra, e foi-se para as montanhas, a sua casa, que é em Oviedo, onde esteve algum tempo sem cargo, e dele não há que fazer ao presente mais menção .
O marquês de Santa Cruz, sabendo que seu sobrinho D. Luís de Bazan morreu naquela rota e tão desumanamente, o sentiu muito, porque o moço era para isso, e com desejo de vingança quis pretender o como a pudesse ter daqueles. E foi a el-Rei pedindo-lhe que como soldado lhe desse licença para a empresa da Terceira; ou, sem ele o pedir, El-Rei lhe disse que se fizesse prestes para o verão com os mais navios e doze galés e outros petrechos navais, que lhe fazia mercê de geral do mar e terra. Foi-se logo ao porto de Santa Maria, onde sacrestou todas as naus e navios que achou, assim de levante, como os mais, e em Lisboa os galeões que havia, em uma e outra parte. Vindo Janeiro daquele ano, começou de ordenar, mandando aprestar a gente do terço de Frandres e da Liga. Dizem que dez mil homens tinha prestes e ficavam duas armadas no porto de Santa Maria, quarenta naus grossas aragoesas , e por cabeça Francisco Morena, e D. Francisco de Benevides com dez galés; e que na entrada de Maio partiria para esta ilha de S. Miguel, onde esperaria o marquês que viria com outras quarenta naus, em que entravam os galeões e outros navios de Portugal. Foi declarado por mestre de campo geral desta gente D. Lopo de Figueiroa que, ainda que fosse de mais honra a viagem que cá fizera o ano passado, vindo por geral, por ser de tanta importância esta jornada, não o quis escusar el-Rei.
Tinha escrito o governador a Sua Majestade que a gente desta ilha de S. Miguel estava algum tanto desconfiada, por respeito de verem vir uma armada e outra, sem fazerem nenhum fruto, e a Terceira permanecia; que pedia a Sua Majestade com a brevidade possível viesse. A que foi respondido que ele mandaria armada bastante que trouxesse a seu serviço a ilha Terceira, e disto assegurasse os moradores desta ilha de S. Miguel, e que lhe pesava que a isto chegassem os da Terceira, que quiseram enjeitar a clemência e intentar seu poder.