O sono, Senhora, e pouca vigia, é às vezes causa de se perder a fazenda e vida; este, ocasionalmente, fez cortar a cabeça a Holofernes e desbaratar seu exército; este deu ânimo e forças a uma fraca mulher, com que matou ao valente capitão Sisara; este deu atrevimento a dois ladrões, com que mataram a Isboseph; este foi meio com que David tomou as armas a Saúl de sua tenda e cabeceira, e, segundo ficções poéticas, foi ocasião com que tomassem e se assolasse a soberba Tróia e Mercúrio furtasse a vaca Io ao pastor Argos, de cem olhos, quando com todos dormia; este privou ao grande gigante Polifemo de um só olho que tinha e causou outros muitos males, perdas e ruínas de castelos, cidades e vilas estranhas, como também foi causa de se tomar, roubar e saquear pelos cossairos uma só vila que havia na ilha de Santa Maria, aqui nossa vizinha, de que vou contando, há muito pouco tempo, como agora direi.
Um sábado à tarde, às três horas depois de meio-dia, pouco mais ou menos, quatro dias de Agosto do ano do Senhor de mil e quinhentos e setenta e seis, véspera de Nossa Senhora das Neves, que aquele ano caiu ao domingo, passou de Ponente para o Oriente, ao longo desta ilha de São Miguel, um grande galeão de cossairos franceses e uma nau mais pequena e uma zabra; e, indo ter a Vila Franca a zabra, perto do ilhéu, que está defronte da Vila, e o galeão grande perto da zabra, e a outra nau mais pequena engolfada no pego do mar, estando, pegada com o ilhéu uma nau armada do Grão-Capitão Francisco do Rego de Sá, a gente da qual e de outro navio que ali estava, vendo ir os cossairos, fugiu para a terra, ficando um só homem dentro, porque quis ficar, o qual, vendo a lancha perto, pôs o fogo a tiro, e outro lhe atiraram de terra, o que sentindo os da lancha dos imigos, eles e as suas naus se fizeram todos na volta do mar, e, navegando para o Sul com vento galherno (sic) Noroeste Nornoroeste, que, então, ventava de cima, escassando-lhe (sic) e faltando-lhe o vento, deitando ante-manhã a lancha diante a remo, e o galeão e nau indo detrás, foram amanhecer ao dia de Nossa Senhora das Neves, que era domingo, um quarto de hora antes de sair o Sol, junto do porto da Vila da ilha de Santa Maria, achando a gente da terra sem vigia, ainda dormindo e descuidada naquele tempo, sendo dantes ordinariamente vigiada de dia e de noite por mui boa ordem. Mas, porque havia oito dias, pouco mais ou menos, que eram chegadas duas caravelas que foram desta ilha de São Miguel, uma de José Gonçalves e outra de António Roiz, e sendo-lhe perguntado ao despacho se havia novas de cossairos, disseram que não, e um dia antes que a terra fosse entrada chegara um navio de Cezimbra do Porto, que viera da ilha da Madeira, respondeu, sendo-lhe perguntado, não haver novas de cossairos; com o dito dele e das caravelas vieram a descansar da vigia na terra, com lhe parecer que o mar estava seguro, o que não fizeram se tiveram outra nova, sem embargo de lhe ser muito custoso vigiarse em tal tempo, por serem todos os moradores dali lavradores e seareiros, que naquela conjunção estão sempre nas suas eiras, fora da Vila, como, então, estavam. E, pelas novas, acima ditas, de não haver imigos, estavam todos tão descansados do trabalho que tinham de se vigiarem, que, no princípio da noite dantes, a mulher do almoxarife Tomé de Magalhães, homem dos mais principais da terra, filho de Bento Dias, que também foi almoxarife, disse a seu marido que muitos anos havia que tão descansada se não achara, sem temor de imigos; e, por este seguro, que todos tinham entendido, não foram vigias à Ribeira Seca, defronte do ilhéu, que está do porto ao Sudoeste pouco menos de meia légua, que é a principal vigia para guarda da terra; e, pela mesma causa, não foi também vigia à ponta do Marvão, que fica da outra banda de Leste pouco espaço do porto, com as quais vigias se não pode entrar no porto sem serem os que entrarem sentidos. Somente vigiaram da ermida de Nossa Senhora da Concepção, que está sobre o porto, quatro homens, dois dos quais, acabando de vigiar o seu quarto, se foram dormir a suas casas; os dois, que ficaram, adormeceram por serem homens trabalhadores e irem ali cansados do trabalho.
Sucedeu também que o sábado à tarde, véspera do dia da entrada, se achou um mancebo na vigia, por nome João de Matos, que aquele dia lhe coube no pico do Figueiral, que está da Vila para a banda de Leste meia légua, donde se vigia de dia o mar, o qual vigiando e não vendo vela nenhuma, antes que se tornassem para sua casa, atou dois fachos com tenção de os pôr no lugar costumado, para que na Vila vigiassem de noite, e por temer alguma reprensão o deixou de fazer; mas, sendo caso que se puseram, não há dúvida senão que se vigiaram de noite muito, como faziam dantes.
Estando o povo desta maneira descansado, e as duas caravelas desta ilha de São Miguel, carregadas para partir para cá, já de largo, se diz que meia hora antes que nascesse o Sol três moços da caravela de José Gonçalves foram tomar cranguejos (sic) ao ilhéu e à terra, que está um quarto de légua da Vila, e, chegando ao pesqueiro, que chamam de Malamerenda, viram antre o ilhéu e a terra ir remando a lancha, e, suspeitando o que era, tornaram logo com muita pressa, remando e gritando, caminho do porto, a dar aviso às caravelas que se recolhesse a gente delas para terra; e, antes de chegarem na bateira, indo uma moça, chamada Caterina Gaspar, filha de Florença de Seixas, mais vizinha do porto, buscar água à ribeira, que está abaixo da ermida de Nossa Senhora da Concepção, viu de cima da rocha ir remando a lancha muito depressa e os moços da bateira diante dela fugindo, e, vendo isto, dando gritos, foi bater à porta de um Belchior Lourenço, pescador, dizendo com voz alta que vinha ali uma barca remando e não sabia se seriam franceses; e, alevantando-se com pressa o pescador, e vendo a lancha, foi gritando pela rua acima, apelidando a gente, dizendo que acudissem, que eram entrados franceses no porto.
Entretanto, as barcas se vinham, com o bradar dos moços, atoando para terra até abicarem nela, e a lancha atrás delas, dentro pela baía do porto, os quais, vendo os das barcas perto de si, se lançaram ao mar e a nado escaparam.
Com os brados do pescador Belchior Lourenço acordaram e se alevantaram algumas pessoas, acudindo com muita pressa com as armas com que cada um podia, e alguns sem elas, e, chegando sobre o porto e vendo a lancha, pareceu a todos que não queriam mais os imigos que levar as caravelas que nele estavam, pelo que, ao desembarcar, lhe não fizeram resistência, nem havia com quê, ainda que lha quiseram fazer; nem um homem que tinha cuidado de umas peças de artilharia, que aí estavam, estava, então, na Vila, porque ia para fora com os vereadores a fazer exame pelos lugares da banda do Norte, e, quando chegou, já eles estavam em terra.
Mas antes que a ela chegassem, trazendo o beneficiado Pero de Frielas fogo de cima da rocha, onde se ajuntaram três ou quatro homens, um dos quais era António Fernandes, escrivão, home animoso, puseram fogo a um tiro que passou por alto, por estarem já os franceses debaixo da rocha, o qual ouvindo eles, acharam-se embaraçados, como gente que não sabia haver artilharia na ilha; e, tornando-se a determinar, arremeteram à terra e, enxorando a lancha nela, desembarcaram como homens que já não tinham outro remédio, porque, tornando atrás, os podiam meter no fundo; pela qual razão se suspeita que não vinham a mais que a saltear os navios, e assim parece ser pelo arreceio que tiveram no saltar em terra e pela desordem com que acometeram, e eles próprios, depois, se espantavam da maneira com que a tomaram.
Mas, por irem enlevados nas caravelas que se acolhiam à terra, foi causa de desembarcarem nela e, por não verem mais gente que os que lhe tiraram com o tiro, escolheram e tiveram por mais seguro o ir por diante que o tornar para trás, por sentirem estarem os da terra poucos e descuidados, como na verdade o estavam. Assim que é de crer (segundo alguns) que, se as caravelas não foram, tal não cometeram, as quais caravelas houveram de partir ao sábado, véspera da entrada, mas, impedidas pelos oficiais da Câmara, por dizerem que levavam trigo sem despacho, não partiram (porque quando há-de vir algum mal, tudo se vai asando para ele). Outros dizem que vinham determinados para tomar a terra, e sinal disto é trazerem eles, como traziam, cada soldado seu cordel na cinta para amarrarem as mulheres e matarem os homens, e com tenção de chegarem duas horas ante-manhã; e, por ser longe o lugar donde a lancha se apartou das naus, não puderam os que nela iam vingar mais que ir amanhecer ao porto e, entrando pela baía dele, remando com grande força e pressa, passaram por antre as barcas e um navio que aí estava, sem fazerem caso dele, e enxoraram na areia, onde logo saltaram fora, e o primeiro que saltou, com uma partesana nas mãos, fez na areia uma cruz e se benzeu, chamando os outros com a mão que saíssem depressa. E, seguindo o capitão, começando a caminhar pela ladeira arriba, ouviram uma voz dos da terra dizendo: “Não há aqui fogo?”, agastado de o não achar para atirar aos contrários; o que ouvido por eles, disse o capitão: “Arriba, canalha, que não têm fogo!”. E depressa começou a andar, chamando pelos companheiros, que logo o seguiram, indo todos subindo pelo caminho de carro e ladeira, direito para a Vila.
Ao qual acudiram alguns homens, sc. Brás Soares de Sousa, logo-tente de seu pai, e António Fernandes, escrivão, o vigairo Baltazar de Paiva, o padre Pero de Frielas, beneficiado, Belchior Homem, o Moço, Joanne Anes, criado do Capitão, António Fernandes, sapateiro, filho de Cristóvão Fernandes, sapateiro, e Manuel Fernandes, alfaiate, lançando-lhe de cima pedras grandes pela rocha abaixo, com que os espantaram e fizeram tornar atrás, ao porto, onde se recolheram. E, antre estes primeiros que ali acudiram da terra, foi também uma mulher, natural desta ilha de São Miguel, que fez maravilhas, atirando às pedradas e acarretando pedras, trazendo-as aos homens para atirarem com elas.
Como tenho dito, da banda do Sueste da Vila está uma ribeira grande, de muita água, com que moem muitos moinhos todo o ano, e onde esta ribeira se mete no mar era antigamente o porto da Vila, a que chamam agora o Porto Velho, e passaram a serventia dele à outra banda do Noroeste, por ser melhor porto, junto de uma ribeira que leva pouca água no Inverno e no Verão nenhuma; além da qual está outra ribeira, também de pouca água, a que chamam ribeira do Sancho, e vem-se ajuntar com outra no porto, onde faz um rechão; e antre estas ribeiras fica uma lomba com um fragoso espigão, estreito e íngreme, que se vai para cima cada vez mais alargando, correndo direito ao Nordeste, e no meio a semeiam de trigo, e sempre fica a dita lomba ao nível com a Vila, ou padrasto dela; pela qual os franceses, fugindo das pedras que lhe lançavam de riba, e recolhidos ao porto, havendo seu conselho, fizeram subir vinte, outros dizem que trinta, arcabuzeiros dos seus por esta lomba, que está defronte, donde lhe botavam as pedras, para a banda do Noroeste, e dali se puseram a fazer seus tiros aos da terra para os fazer recolher; e os outros tornaram a cometer a Vila ao longo de uma ribeira, encobertos das pedras, e, com os tiros que os da lomba tiravam, tiveram estes lugar para subir, por haver da parte dos da ilha pouca gente e poucas armas, defendendo as espingardadas dos imigos que na lomba estavam que ninguém acudisse a defender a entrada, botando pedras pela rocha e ladeira abaixo contra os que subiam, e alguns da terra, que se quiseram desmandar e defender-se, foram feridos e outros mortos; os quais tinham o encontro às pedradas, só os que subiam a entrar na Vila, por não terem armas de que melhor se pudessem valer, o que não puderam sofrer nem sustentar por muito espaço pelos matarem e ferirem com a arcabuzaria os que estavam na lomba.
E a primeira pessoa que mataram com um tiro foi Amador Vaz Faleiro, homem animoso e principal, que aquele ano servia de vereador, e feriram a Francisco de Andrade, escudeiro, fidalgo nos livros de el-Rei, em um braço, e um seu irmão, por nome Duarte Nunes, em uma perna, naturais da terra e dos mais honrados, e a Jácome Tomé Faleiro, dos principais, e a um António Fernandes, sapateiro, homem mancebo e animoso, com que durou até o outro dia, em que faleceu, e a Domingos Jorge, ferreiro.
E os que daqui escaparam, fugindo dos tiros que da lomba lhes tiravam e neles faziam pontaria, se abrigaram com as casas, metendo-se na rua do Capitão, esperando detrás delas o segundo encontro dos imigos. Neste tempo, alguns dos contrários, que se meteram pela ribeira acima, subiam pela ladeira, pelo quintal do vigairo Baltazar de Paiva e defronte do granel de Baltazar Velho de Andrade, por onde cometiam entrar na Vila, e, querendo os da terra defender a entrada, mataram os cossairos a um Frutuoso Fernandes, homem trabalhador, o que vendo os outros da terra, começaram a fugir e, dizendo um Amador de Goes, surrador, a Manuel de Sousa, soldado de Itália, de quarenta anos, e irmão do Capitão Pero Soares de Sousa: — “Senhor, vamo-nos daqui que nos matam com os tiros”, lhe lançou ele mão do gorjal do pelote, dando duas espaldeiradas a dois homens que se retraíam e dizendo: — “Tá, não fujais nem se vá daqui ninguém!”. E como os imigos vinham depressa, não houve mais vagar que de largar Manuel de Sousa a Amador de Goes e com a sua espada e rodela se arremessar a eles, dizendo: — “Ah, duns perros, cães, que aqui vos hei-de comer os fígados!”; as quais palavras o Amador de Goes, indo com outros fugindo, lhe ouviu e, virando o rosto, o viu derribado em terra de um tiro de escopeta, que um dos contrairos lhe tirou de tão perto, que quase lhe pôs a escopeta nos peitos. E é de notar o juízo de Deus que, sendo este Manuel de Sousa absente da dita ilha havia quarenta anos, pelo homízio e morte do filho de Rui Fernandes de Alpoem, que atrás disse, e tido já por morto, veio aquele ano à dita ilha para nela pagar daquele modo o mal que nela fizera.
E também feriram a Pero de Andrade, escrivão da Câmara, atravessando-lhe uma perna pela coxa da banda de dentro, o qual se acolheu pela ribeira do Sancho arriba, onde esteve aquele dia, que era domingo, até a segunda-feira à noite, que, de gatinhas, se saiu por uma lomba e foi ter a uma eira, onde o foram achar muito mal tratado, mas, depois de curado, sarou bem e viveu.
E em chegando Amador de Goes ao canto de Simão Álvares, viu vir outro magote de franceses pela rua do Capitão arriba, muito depressa, que eram os que subiam pela ladeira do porto, onde os estavam esperando os que de cima do mesmo se recolheram, e ali feriram na mão direita, na raiz do dedo mindinho, ao filho mais velho e morgado do Capitão Pero Soares de Sousa, chamado Brás Soares de Sousa, que, como valente soldado e homem de grandes espíritos e esforço, estava na dianteira, e a Fernão Monteiro de Gamboa, capitão de uma companhia, pela barriga, ambos de um tiro, passando o pelouro de uma parte a outra pela carne, junto do embigo (sic), sem penetrar as tripas, de que esteve muito mal, e se curou depois nesta ilha de São Miguel, deixando-se escalar todo com muito ânimo; e feriram a Manuel Jorge, alfaiate, valente mancebo, e mataram Aires Gonçalves, também alfaiate, e a Nicolau Álvares, pescador, e Simão Álvares, cirurgião, que havia estado de princípio sobre a rocha e se tornou a recolher em sua casa, e se trancou de dentro, donde, ouvindo o estrondo que na rua se fazia, saiu à sua janela e, deitando fora a cabeça para ver se vinham os franceses, lhe deram uma arcabuzada nela, passando-lha com o pelouro de parte a parte, de que logo caiu para trás no sobrado, onde depois foi achado, inchado e podre.