Depois de partido o sargento-mor da ilha de São Miguel, ainda que o Grão-capitão Francisco do Rego de Sá requeria que lhe dessem gente e artilharia para sua nau e outros navios, oferecendo-se a pelejar com os cossairos, arreceando Rui Gonçalves da Câmara, Capitão-mor desta ilha de São Miguel, que não era caça tão pequena nau e navios, ir cometer umas naus tão poderosas e alterosas como eram as dos imigos, com parecer de todos se ordenou que o socorro fosse desembarcar a terra, para dela lançarem os contrários, sem pelejar com eles, pois não havia navios de porte para isso.
E sendo electo por capitão-mor da gente, que havia de ir ao socorro, Francisco de Arruda da Costa, fidalgo escrito nos Livros de el-Rei, homem, por seus grandes espíritos, de esforçado ânimo e, por sua prudência e discrição e grandiosa condição, digno de grandes e honrosos cargos, se aparelhou com muita pressa e diligência de todo o necessário para um tal encontro, assim de artilharia, armas e munições como de mantimentos, levando consigo a Sebastião da Costa, seu filho, e João de Melo, seu genro, mui nobre fidalgo; indo também a este socorro, em sua companhia, muitos homens fidalgos e honrados, muito valentes e esforçados, que para isso de sua livre vontade se ofereceram, como foram André Botelho, filho de Jorge Nunes Botelho, Henrique Moniz, cavaleiro de África, António de Benavides, Cristóvão Cordeiro, o Moço, Brás Coelho, Pero Roiz de Sousa, seu irmão, filhos de Baltazar Roiz de Sousa, de Santa Clara, João de Frias, filho do licenciado Bartolomeu de Frias, Ambrósio Nogueira, filho de Estêvão Nogueira, João Pacheco, filho de Marcos Fernandes, António Mendes, filho de João de Arruda da Costa, Amador Fernandes, irmão de Sebastião Luís, que foi cativo no Cabo de Guel com o Capitão Manuel de Câmara, onde pelejou como mui esforçado cavaleiro, António Botelho, escrivão da Câmara da mesma cidade da Ponta Delgada, Hierónimo Mendes, filho de António Mendes, Gaspar Camelo, o Moço, sobrinho de Jorge Camelo, Aires Pires Correia, filho de Gaspar Correia, que foi juiz dos órfãos na dita cidade da Ponta Delgada, e neto de Lourenço Aires, e Manuel Lobo, filho de Francisco Lobo, Luís Mendes Vitória, feitor do Católico Rei D. Filipe de Castela, João de Robles, espanhol, casado na mesma cidade, muito esforçado, valente e destro nas armas, e outra gente nobre, e vinte e sete cavouqueiros, arcabuzeiros, que estavam servindo a el-Rei na fortaleza desta ilha, e outros muitos, que podiam ser por todos duzentos homens de peleja, afora a gente do mar, os quais, sendo preparados, se partiram terça-feira à tarde, sete dias de Agosto, em um navio, em que levavam a artilharia e seis berços, um só dos quais levava trinta e nove homens.
Com este socorro (que aproveitara muito, se chegara a tempo), à meia-noite seguinte da mesma terça-feira, em que se embarcaram os cossairos com o aviso que tiveram do negro da terra, que se foi com eles, da ajuda que desta terra se esperava, chegaram à ilha de Santa Maria e, não podendo com a tormenta sair no porto de Sant’Ana, correram pela banda do Norte e foram desembarcar no de São Lourenço à quarta-feira, duas horas ante-manhã, e daí foram, com a maior pressa que podiam, marchando por terra, com carros de artilharia e suas armas, duas léguas pela serra até chegarem à Vila do Porto, a tempo que estavam recolhidos os imigos daquela noite. E entraram na Vila com as bandeiras baixas para ver se tornavam, porque estavam ainda ancorados o galeão e nau e lancha e duas caravelas, uma de José Gonçalves, mareante, morador na cidade da Ponta Delgada desta ilha de São Miguel, e outra do Algarve, que os franceses tinham todas carregadas de fato e mantimentos, os quais, vendo dali, donde estavam surtos, um navio que vinha da ilha da Madeira muito empegado, longe ao mar, da banda do Sudoeste, alevantando âncora, se fizeram à vela, levando as caravelas consigo; o qual navio eles tomaram e, descarregando e despejando nele a caravela de José Gonçalves, a largaram, a qual veio depois ter à cidade da Ponta Delgada com os homens do navio roubado, porque os das caravelas ficaram na ilha de Santa Maria, por fugirem, vendo ir para si a lancha o domingo pela manhã, quando entraram em terra e a tomaram.
Neste tempo, na mesma quarta-feira e na quinta seguinte chegaram nove navios da ilha da Madeira, com muito dinheiro, a buscar trigo, a que o capitão Francisco de Arruda mandou avisar que se recolhessem ao porto da dita Vila, onde os teve dez dias, no fim dos quais os trouxe consigo ao porto da cidade da Ponta Delgada, vindo por todas catorze velas, sc. os nove navios e o em que fora da armada, e quatro barcos, por ter mandado dantes de aviso à mesma cidade da Ponta Delgada os outros que dela levara.
Na mesma quarta-feira, pela manhã, quando chegou o capitão Francisco de Arruda com sua gente ao porto da Vila, mandou tirar debaixo do mar uma rodela de aço do capitão dos imigos, e nove arcabuzes, e duas alabardas, e uma adaga, e achou no mesmo porto muito fato da terra e algumas rezes, que, com a pressa de se embarcarem, pelo aviso do socorro, deixaram os franceses à borda da água, onde se embarcou um barco deles com a mesma pressa, sem se achar na Vila coisa viva, nem galinha, nem galo, nem cão, nem gato, senão somente um bugio de Belchior Homem, que eles não mataram, cuidando de o levar, e com a pressa do embarcar o deixaram; achando também o dito capitão Francisco de Arruda a praça, ruas e casas juncadas de buchos de porcos e de outras alimárias, e muitas porcelanas e outras peças e bandejas da Índia, quebradas pelas ruas, porque (parece) as quebravam pelas não poderem levar e por não aproveitarem para os da terra.
E estando o domingo seguinte às duas horas andadas da noite ceando, vindo os da vigia gritando que eram chegados os franceses e uma lancha a terra, mandando com este rebate o capitão Francisco de Arruda tocar arma, se alevantaram todos das mesas e, acudindo ao porto e a outras partes onde se presumia poderem sair imigos, acharam que era um patacho que vinha de Arguim, do Cabo Branco, carregado de cação; e todos acudiram, postos em ordem pelo capitão Francisco de Arruda, com muito ânimo e desejo de pelejar, e, sendo já três horas da noite, mandou-lhe o dito capitão atirar com um falcão. Gritaram os do patacho, dizendo que eram castelhanos de paz e, então, os mandou reconhecer com batéis, que trouxeram um homem dele à terra, com que acharam ser assim como diziam, e se aquietaram todos.
Esteve o capitão Francisco de Arruda na ilha de Santa Maria (como tenho dito), por falta de tempo, dez dias com toda a gente que levou, agasalhando-a à sua custa com grande liberalidade e vontade, como sempre costuma ter para todos, de que é tido e julgado por príncipe na condição grandiosa que nele para grandes e pequenos resplandece, com que gastou de sua fazenda nesta viagem, em serviço de Deus e dos próximos e moradores da ilha de Santa Maria, quatrocentos cruzados, como tem feito e faz outros gastos grandes, assim em sua casa, como fora dela, outras muitas vezes, em qualquer honroso feito ou necessidade que se oferece. E, passados os dez dias que estiveram na terra, se partiram, e, acabados doze, chegaram ao porto da cidade da Ponta Delgada desta ilha de São Miguel, com as ditas catorze velas, em que trazia os nove navios da ilha da Madeira, que livrou dos imigos, porque, se ele não fora, todos houveram de ser tomados e roubados, vindo mais descontentes que alegres, por lhe escapar dantre as mãos uma ocasião tão bem oferecida e mal lograda. Com cuja chegada se aquietaram os corações de suas mulheres e parentes, que, como gente virtuosa, andavam fazendo muitas devações, romarias e orações por eles.
Depois dos imigos serem idos e Francisco de Arruda da Costa, capitão da gente do socorro, tornado com ela a esta ilha de São Miguel, uma segunda-feira, ao Sol posto, perto de vinte dias depois de ser saqueada a Vila, tornou uma grande nau de cossairos à dita ilha de Santa Maria com uma lancha e, chegando ao porto, ancorou logo nele, mas, sendo perto de meia-noite, se alevantou e foi com um bordo ao mar, e, como foi manhã, andando a nau à vela, veio a lancha cometer o porto, chegando tão perto de terra como um tiro de arcabuz, fazendo muito por entrar na ilha, e a nau na sua esteira. O qual cometimento vendo o Capitão Pero Soares de Sousa, mandou a Baltazar Velho de Andrade, natural da cidade do Porto, fidalgo de cota de armas, casado na dita ilha, homem principal, com perto de sessenta homens, que defendesse a desembarcação aos imigos, que vinham ao porto direitos, os quais, como viram a gente posta em ordem para lhe resistirem, tornaram atrás, aonde a nau vinha e, depois de estarem nela espaço de uma hora, tornou a lancha com um barco a cometer a terra, e, indo correndo a costa para a banda Leste, foram deitar gente na ponta de Malbusca, duas léguas da Vila, a que acudiram alguns homens aí moradores e outros que da Vila foram ao longo da costa para lhe defenderem a desembarcação, querendo sair em terra, e, vendo que desembarcavam, acudiram depressa, fazendo-os tornar a embarcar às arcabuzadas para onde a nau andava, que logo foi seu caminho, sem mais ser vista.
Presume-se ser esta nau a maior das que tomaram a Vila e que a mais pequena era ida com o despojo que dela levaram, e esta grande tornava a tomar terra para se fornecer de algumas coisas necessárias, e principalmente de água, porque o tempo que estiveram na ilha não foi mais que para recolher o que nela acharam, e nem para isso o tiveram, porque ainda lhe ficaram muitas coisas que puderam levar, e algumas delas entrouxadas que não levaram, por o tempo lhe não dar lugar, pela pressa com que se embarcaram.
Também se suspeita que, desta segunda vez que esta nau se foi da ilha de Santa Maria, tomou o galeão S. Lourenço, em que este mesmo ano veio Rui Gonçalves de Câmara, Capitão desta ilha de São Miguel, que viera da armada em companhia de D. Pedro de Almeida, que aquele ano veio por capitão-mor às ilhas. Este D. Pero é filho de D. Lopo de Almeida e irmão do ilustríssimo D. Jorge, arcebispo benemérito que foi de Lisboa , e é casado com uma filha de D. Francisco Pereira; esteve por embaixador em Castela, homem de muito nome.
Vinha por capitão do galeão S. Lourenço Cristóvão Juzarte, homem fidalgo, natural das partes da Índia e soldado de muitos anos e muito esforçado, e, por ser tal, tinha nome “Tigre” de alcunha; e indo-se D. Pedro, capitão-mor, para o Regno, em companhia de três naus da Índia que achou, ficou o Cristóvão Juzarte por capitão-mor da armada que ficava, a que outros capitães não quiseram obedecer, pela qual razão se tomou o galeão, pelejando esforçadamente o capitão e alguns criados de el-Rei, que iam nele. A mais gente dizem que deixou de pelejar por verem o capitão ferido, de que morreu daí a poucos dias em poder dos imigos, e outros muitos mortos e feridos, de maneira que se renderam, o que não fizeram, se o capitão não fora ferido de feridas mortais e os mais criados de el-Rei, que com ele pelejaram.
Ainda que não deixou de haver algum descuido, que é certo em portugueses, e se não houvesse, antre alguns deles, desejosos de querer mandar, desprezarem-se de obedecer, cuidando cada um que é mais para ser obedecido, segundo são determinados, e têm por pundonor não tornar atrás no que uma vez emprendem (sic), a que querem de verdade poor o rosto, de maravilha, ou nunca seriam vencidos, e sempre ficariam vencedores