Como atrás tenho contado, quando tratei das ilhas Canárias , governando o Regno de Castela a Rainha D. Catarina, mulher que foi de el-Rei D. Henrique, terceiro do nome, pelo príncipe, seu filho D. João, que foi o segundo Rei do nome, como governadora dos Regnos, um Mossem Rubem, ou , se foi a França refazer de novo para a conquista e deixara ali um sobrinho, chamado Mossem Menante, ou Mossem Maciot de Betancor; o qual, não tornando seu tio de França, por não poder sustentar a guerra, vendera as Canárias ao Infante D. Henrique, por certa coisa que lhe dera na ilha da Madeira, que adiante direi, quando tratar de Rui Gonçalves, Capitão terceiro desta ilha e primeiro do nome, e de sua mulher D. Maria de Betancor, que veio das Canárias com seu pai Mossem Maciot de Betancor para a ilha da Madeira, onde casou com este Capitão, e daí veio com ele para esta ilha de S.
Miguel, de que era Capitão, e por estar aqui sem parentes mandou vir depois da dita ilha a um seu sobrinho, chamado Gaspar de Betencor, filho de Mici Maciot, ao qual encabeçou em um morgado, que fez por não ter filhos de seu marido, como adiante direi.
Este Gaspar de Betencor, sobrinho da primeira Capitoa D. Maria de Betancor e parente muito chegado de Mossem Rubem, ou Rubim de Brancamonte, almirante de França e descendentes de Mossem ou Mossior João de Betencor, Rei das ilhas Canárias, se foi desta ilha solteiro dar a el-Rei e casar em Portugal, como casou, com D. Guiomar de Sá, dama do Paço, filha de Henrique de Sá, do Porto, que os mouros mataram, estando servindo a el-Rei em Cepta ; e por ser costume naquele tempo não casarem dentro no Paço, consertando o casamento, se desposaram em casa de D. Violante, sua prima cõ-irmã, mulher do Conde da Castanheira. E não deixarei de dizer o que na verdade aconteceu antes dos desposouros e foi assim que, andando a dita D. Guiomar de Sá no Paço, fazendo certa devoção de São João, ou outra de outro Santo, em que esperava, no derradeiro dia dela, que o primeiro homem que ouvisse nomear do mesmo nome havia de ser o marido que com ela casasse, e se havia de ser português ou não; como é costume de mulheres, ou supersticiosas, ou demasiadamente desejosas de saber o que lhe há-de socceder, às quais o demónio responde por sucessos, permitindo Deus que sejam enganadas dele, ou às vezes certificadas, pois em lugar de Deus o vão buscar no que pretendem; sucedeu ser o tempo e dia que Gaspar de Betancor foi beijar a mão a el-Rei, vestido de verdoso, e o mesmo dia, antes que o visse, contava a mesma D. Guiomar ir ter um som a seus ouvidos que o marido que com ela houvesse de casar havia de ser francês, e a primeira vez que o visse, viria vestido de verdoso, como veio. Com estes sucessos engana muitas vezes o demónio a muitas mulheres, que façam semelhantes superstições, como esta. Depois de casados em Portugal, como tenho dito, se vieram para esta ilha e viveram ambos em Vila Franca, antes dela subvertida, algum tempo, e nesta ilha houveram os filhos seguintes: o primeiro filho legítimo, chamado Henrique de Betancor, andou no Paço com boas moradias, servindo a el-Rei D. Manuel, ao qual o mesmo Rei fez mercê das saboarias destas ilhas; casou com D. Maria de Azevedo, filha de Manuel de Oliveira, estribeiroSAUDADES DA TERRA SAUDADES DA TERRA Livro Quarto Capítulo IX 42 mor do Cardeal, e teve uma filha que casou com D. Álvaro de Luna, filho de D. Pedro de Gusmão, castelhano, que foi um dos cabeças das comunidades, e faleceu ela sem haver dentre eles mais filhos.
O segundo filho, João de Betancor de Sá, foi o melhor cavalgador das ilhas e apanhava muitas laranjas do chão na carreira, indo correndo à espora fita, e corria também a cavalo, indo em pé sobre a sela, e fazia outras muitas destrezas de extremado cavaleiro; casou com Guiomar Gonçalves, filha de Gonçalo Vaz, o Moço, chamado Andrinho, e neta de Gonçalo Vaz Botelho, o Grande, da qual houve os filhos seguintes: O primeiro, Francisco de Betancor de Sá, que lhe soccedeu no morgado, e teve também as saboarias da ilha da Madeira, o qual foi casado com D. Maria de Medeiros, filha de Diogo Afonso Colombreiro, homem fidalgo, muito principal e rico nesta terra, de que houve um filho, chamado André de Betancor, que ficou só e herdou o morgado, e outros que faleceram. O qual André de Betancor casou na ilha da Madeira, com Dona Isabel de Aguiar , filha de Rui Dias de Aguiar e de sua mulher Francisca de Abreu, mulher que foi de João Dornelas de Sayavedras, que vivia na capitania de Machico, que é do senhor Tristão Vaz da Veiga, que foi capitão de Malaca e agora capitão de Machico, e capitão-mor da guerra em toda a ilha da Madeira e alcaide-mor da fortaleza, e tio de D. Isabel, filha de seu primo com-irmão, e sobrinha dos Capitães da ilha e sobrinha do Marechal e de D. Diogo de Sousa, que foi viso-Rei da Índia.
Seus filhos, o mais velho, se chama Francisco de Betancor de Sá; o segundo, Rui Dias de Aguiar; o terceiro, Gaspar de Betancor de Sá; o quarto, Mice Maceote de Betencor; e uma filha, por nome D. Guiomar de Sá. Valerá sua fazenda cento e cinquenta mil cruzados. Tem de morgado mil e quinhentos cruzados de renda.
Outro filho teve João de Betencor, chamado Simão de Betancor, que casou na vila da Ribeira Grande com D. Margarida Gaga, filha de Luís Gago, de que houve os filhos seguintes: João de Betancor, que faleceu clérigo de Evangelho, e António de Sá, de que já disse, cavaleiro do hábito de Cristo com boa tença, que casou com D. Filipa Pacheca, filha de Pero Pacheco, de que houve os filhos atrás ditos na geração de Gonçalo Vaz Botelho, chamado o Grande. Houve Simão de Betancor, de sua mulher D. Margarida Gaga, outro filho, que foi religioso, chamado Frei Pedro, frade de missa, observante da ordem de S. Francisco; e quatro filhas, freiras no mosteiro de Jesus da Vila da Ribeira Grande, sc., Guiomar de Jesus, que foi muitos anos abadessa, Beatriz da Madre de Deus e Francisca dos Anjos e Maria de Santa Clara, professas e perfeitas religiosas e de muita virtude.
Teve João de Betencor outro filho, chamado Gaspar de Betencor, que casou com D. Breatiz de Melo, filha do capitão da Graciosa, de que não houve filhos, e depois casou com D. Isabel Fernandes, filha de António Lopes, que morou na Relva, homem muito honrado, da governança da cidade, e rico, e de Maria Falcoa, de que também não houve filhos.
Teve também João de Betencor de Sá outro filho, chamado António de Sá, muito bem posto e gentil homem e valente de sua pessoa, que serviu a el-Rei em África e faleceu solteiro.
Estando em cabo de Gué, cercada esta vila e não tendo língua, ele saindo dela achou um mouro de resgate, e jogando às lançadas com ele o prendeu e levou dentro dos muros às costas; do qual souberam o que se passava entre os Mouros. Teve também João de Betencor outro filho, chamado Rui de Sá, que casou com D. Maria Cabeceiras, filha de Bartolomeu Roiz da Serra, homem principal e rico, morador nos Fenais, termo da cidade, da qual houve muitos filhos.
Teve o dito João de Betencor outro filho, chamado João de Betencor, muito discreto e prudente, sacerdote e beneficiado na igreja principal de S. Sebastião da cidade da Ponta Delgada.
Teve mais o dito João de Betencor uma filha, por nome D. Margarida de Sá, que casou com Gaspar do Rego Baldaya, de que houve um filho, chamado Francisco do Rego, muito rico, a quem ficou muita fazenda por morte de seu pai e gastou muita dela na corte e em armadas que fez à sua custa, para guardar o mar de entre estas ilhas, por servir a el-Rei nisso, e em outros serviços que lhe fez, do qual direi na geração dos Regos.
Teve mais João de Betencor de Sá outra filha, chamada D. Isabel, que depois de ser freira professa no mosteiro de Jesus da vila da Ribeira Grande, onde está boa religiosa, se chamou Isabel da Madre de Deus.
Houve também Gaspar de Betencor, de sua mulher D. Guiomar de Sá, algumas filhas: a primeira, D. Breatiz de Sá, que foi dama do Paço, em tempo de el-Rei D. Manuel, o qual lhe deu seis moios de trigo cada ano de tença, nos próprios da fazenda de Martim Vaz, contador, e depois por sua morte, dela, trespassou esta mercê a D. Isabel, irmã da dita D. Breatiz. A qual D. Breatiz se criou com el-Rei D. João, terceiro do nome, e foi para Castela com a Princesa de Portugal, quando casou com o Imperador Carlos Quinto e no caminho, sendo muito privada da princesa, D. Pedro de Lasso da Veiga, que fora nas comunidades de Castela com D. Pedro Girão e D. João da Padilha, andando fora da graça do dito imperador, que por este caso lhe tinha tomado sua fazenda e alcaidarias, e todo seu senhorio, vendo que pela privança de D. Beatriz poderia ser restaurado, teve inteligência de casar com ela, o que se efectuou. E por ela lhe foram tornadas as vilas dos Arcos, Bactles e Corquos, e outras de que dantes era senhor.
Estando casada com ele, adquiriu a si e por sua privança a sua irmã D. Isabel, segunda filha de Gaspar de Betencor, por dama da Imperatriz, que desta ilha foi chamada para isso. E morrendo D. Beatriz sem ter filhos de D. Pedro Lasso, teve tal estrela sua irmã D. Isabel, que veio a ser camareira-mor da imperatriz e aia dos príncipes, e em tanta conta era tida que nos anos últimos de sua privança, estando já fora do Paço, quando el-Rei Filipe falava nela, não a nomeava senão por D. Isabel, mi madre; tendo toda esta privança e estrela por si com os príncipes castelhanos, fez uma coisa que se lhe estranhou muito, que foi casar-se com D. Pedro Lasso, seu cunhado, marido que fora de sua irmã D. Beatriz; e assim andou encobertamente dois ou três anos, sem ser de todo manifesto o desposouro , ainda que se murmurava disso, até que a Imperatriz, adoecendo de uma grave enfermidade, a chamou e lhe disse que casasse com D. Pedro Lasso, se tinha alguma obrigação de casar com ele, ainda que ela levara desprazer por razão do que se dizia amigo reconciliado; e com esta licença da Imperatriz e com dispensação do papa se receberam. E também de entre ambos não houveram filhos.
Outra filha teve Gaspar de Betencor de sua mulher, chamada D. Guiomar de Sá, como sua mãe, que casou com António Juzarte de Melo, fidalgo, natural de Évora, a que deu em casamento quinhentos mil reis, que naquele tempo era muito dinheiro, pelo pouco que havia.
Perdeu-se António Juzarte de Melo em uma armada que fez o marquês de Ayamonte ao Rio da Prata, por naquele tempo viver no dito lugar de Ayamonte e andar fora do Reino de Portugal, por razão de um corregedor que matou quase na face do Rei, que dele lhe tinha dado seguro real. Houve D. Guiomar do dito António Juzarte de Melo quatro filhas, as quais todas foram para o Reino de Castela a servir a Imperatriz de suas damas, por razão da valia de sua tia D. Isabel, irmã de sua mãe, de que já fica dito que as adquiriu lá e lhe deu os dotes, e casou algumas: uma, chamada D. Breatiz está em Toledo, freira professa da ordem de Santiago, e prioresa muitas vezes; outra, chamada D. Maria, foi casada com D. Francisco de Cisneiros, padroeiro dos estudos de Alcalá, os quais fundou o arcebispo de Toledo, seu tio, e senhor de catorze mil cruzados de renda, do qual houve a dita D. Maria, que é já falecida, três filhos e duas filhas, damas do paço, hoje em dia. Outra, chamada D. Guiomar, casou com Luís Vanhegas, aposentador-mor de el-Rei Filipe, que veio por embaixador a este Reino de Portugal e foi estribeiro-mor da Rainha, última mulher do mesmo Rei, por ser enviado a Boémia a tratar este casamento e trazer, como trouxe, a Rainha a Castela do mesmo Reino de Boémia, onde comeu com o Imperador por razão da embaixada que levava; do qual tem D. Guiomar cinco filhos, entre machos e fêmeas, eles com boas e ricas comendas de Santiago. Outra filha de António Juzarte de Melo e de D. Guiomar de Sá, chamada D. Isabel, por não terem nesta ilha tanta renda, a queriam casar aqui com Rui Gago da Câmara, e ele não quis pelo pouco dote que tinha; e Deus que faz de pobres ricos, e de pequenos grandes, e sabe com quem reparte seus dons, e quem melhor os merece, ordenou como fosse levada a Castela, e por ser a dita D. Isabel muito grave e formosa, e de grande virtude, casou lá com D. João Colomo, viso-Rei da ilha Cerdenha que agora é conde de Lhoas, em Valença, e tem nove contos de renda; do qual tem catorze filhos e filhas. De modo que por todos tem agora D. Guiomar de Sá, mulher de António Juzarte de Melo, destas ditas três filhas, vinte e oito netos em Castela. A qual D. Guiomar de Sá, falecido António Juzarte de Melo, casou com D. Fernando de Crasto, de que não houve filhos, e faleceu nesta ilha e está enterrada na capela-mor do mosteiro de S.
Francisco da cidade da Ponta Delgada, onde deixou sua capela e um moio de trigo, para sempre, de renda cada ano aos Lázaros desta ilha. Era seu administrador António de Sá seu sobrinho.
Outra filha teve Gaspar de Betencor, de sua mulher D. Guiomar de Sá, chamada D. Margarida de Betencor, que casou com Pedro Roiz da Câmara, filho natural de João Roiz da Câmara quarto capitão desta ilha, único do nome, ao qual deu em casamento duzentos e cinquenta mil reis, que naquele tempo era como dar agora muitos mil cruzados, da qual houve estes filhos: João Roiz da Câmara, Manuel da Câmara, Simão da Câmara, Rui Gonçalves da Câmara, António de Sá, Henrique de Betencor, todos fidalgos com moradias nas casas dos Reis de Portugal, e alguns comendadores da ordem de Cristo; e D. Francisca, mulher de D. António de Sousa, e D. Maria, dos quais direi particularmente, quando adiante tratar dos capitães desta ilha, da geração dos Câmaras.
Faleceu Gaspar de Betencor no ano de mil e quinhentos e vinte e dois, antes do dilúvio de Vila Franca; foi enterrado na capela-mor de el-Rei da igreja antiga do mártir S. Sebastião, da cidade da Ponta Delgada, por alvará que teve de mercê do Rei da sepultura para ele, mulher e filhos, em que também lhe concedia que pudesse ter sobre ela suas armas dependuradas com bandeira de seda, como teve alguns anos, até que se desfez a igreja, para se acrescentar como agora está; e depois não houve filho, nem neto, a quem lembrasse uma mercê tão grande, que a nenhuma pessoa dos Infantes abaixo se concede. D. Guiomar de Sá, sua mulher, que faleceu no ano de mil e quinhentos e quarenta e sete, também está com ele enterrada. Fez na cidade doação de quinze alqueires de terra aos padres de S. Francisco, onde pudessem fazer casas e oficinas, para nelas servirem a Deus, como depois fizeram um sumptuoso mosteiro, com encargo de uma missa rezada cada semana, e missas rezadas por Natal e Páscoa e Espírito Santo.
Sua filha D. Isabel, mulher de D. Pedro Lasso, de que atrás fica dito, morrendo em Castela no ano de mil e quinhentos e setenta e quatro, deixou toda a herança, que nesta ilha tinha de seu pai, em capelas, e por administradores o provedor e irmãos da casa da Misericórdia da cidade da Ponta Delgada, e por capelães parentes da sua linha; fez também esmola dos chãos em que se fez a igreja do Corpo Santo, na mesma cidade, para os mareantes dela.
Deixou também Gaspar de Betencor um filho natural, que houve de Maria Dias, moça solteira, e legitimou-o depois, por nome Gaspar Perdomo , o qual, como já disse na geração dos Velhos, casou com Breatiz Velha, filha de João Afonso Corquós e de Lianor Velha, filha de Pero Velho, da qual houve os filhos e filhas já ditos na geração dos Velhos, sc., Ibonel de Betencor, que casou primeiro com uma filha de João do Porto, irmão de Manuel do Porto, e depois com D. Isabel, irmã de Belchior Roiz, escrivão da Câmara da cidade, e de nenhuma houve filhos; e Baltazar de Betancor, que casou e não houve filhos; e Belchior Betancor que casou e teve filhos e filhas.
Houve mais Gaspar Perdomo duas filhas, a primeira, D. Francisca, que não casou; a segunda, D. Simoa, que casou em Portugal com D. João Pereira, bisneto do conde da Feira, de que houve uma filha, chamada D. Breatiz que casou com João Frias, filho do licenciado Bertolameu de Frias, da qual tem alguns filhos.
Teve mais Gaspar de Betencor outro filho natural, homem baço, chamado Rafael de Betancor, que faleceu sem ter filhos.
São os Betancores fidalgos de solar conhecido, dos principais deste Regno e dizem que descendem dos doze pares de França, e dos Reis das Canárias, como tenho dito, que eles de França vieram a conquistar, como pessoas nobres e poderosas antigamente. E têm por insígnias de suas armas as sete ilhas de Canária, e sete coroas entremetidas em seu escudo ao redor de um leão, que está, de uma parte, no meio dele com uma coroa na cabeça, e da outra parte um castelo com sete bandeiras, e em cima do escudo uma águia partida com duas cabeças, e uma coroa como a teve o que de sua progénia foi Rei das mesmas ilhas de Canária, e sobre ela uma flor de lis, que é das armas de França: o qual título de Rei lhe concedeu a Rainha de Castela D. Caterina, por seus antecessores terem ajudado a el-Rei de Castela em certas guerras.