D. Gilianes da Costa, filho de D. Alvarinho, sendo fidalgo, como era, andando na corte, lhe cometeram um casamento nesta ilha, com grande soma de dinheiro e fazenda, que lhe deu João d’Outeiro, com D. Maria, sua filha, que houve de Catarina Gomes Raposa, sua mulher e mulher que fora de Rui Vaz do Trato, antre o qual dote lhe deram na vila da Ribeira Grande e seu termo, e na cidade e em Vila Franca, quatrocentos moios de trigo de renda, que rendiam naquele tempo, e agora rendem muito mais. Deram-lhe também na dita ilha, de renda, duzentos cruzados em dinheiro e em foros de casas.
Viveu D. Gilianes com esta primeira mulher dois anos, pouco mais ou menos, porque morreu ela, e ficou ele viúvo, onde esteve um ano sem casar. Depois, andando no paço, muito favorecido do Rei, o casaram com D. Joana da Silva, prima do Regedor, e muito parenta do Governador, muito fidalga e discreta com a qual lhe deram dote que chegou a quarenta mil cruzados em dinheiro e fazenda. Tiveram quatro filhos e quatro filhas, de cada um dos quais tratarei adiante. Vivendo ambos na corte, vieram a multiplicar tanto com sua fazenda e ter tanto crédito com o Rei, que o mandou por embaixador a França, onde esteve por espaço de três anos, muito favorecido de el-Rei D. João, terceiro do nome, o qual, depois de sua vinda, gostou tanto de seu serviço que o tornou a mandar por embaixador para Roma e Alemanha, nas quais partes tratou os ditos cargos muito a gosto de quem lhos encarregou. Depois de sua tornada, estando na corte com grande crédito, e fazendo-lhe el-Rei muitas mercês, lhe mandou que fosse veador de sua fazenda, do qual cargo ele se escusava por muitas vezes, porque o não queria servir, sem el-Rei lhe receber escusa, ao que ele lhe disse, que pois os fidalgos da corte tinham inveja dele e de sua privança, lhe pedia que primeiro que começasse de servir o dito ofício, Sua Alteza lhe mandasse fazer inventario de sua fazenda, porque havendo algum tempo algum mexeriqueiro, se soubesse quanto dantes tinha; respondeu-lhe el-Rei que não havia necessidade de lhe fazer inventário pois confiava dele; mas, não contente D. Gilianes, chamou certos escrivães e contadores, com que fez resenha de sua fazenda, mostrando-lhe os títulos que tinha dela, a qual feita, montou a de móvel e de raiz, que tinha assim nesta ilha, como no Reino, entrando um conto e duzentos mil reis que lhe pagava el-Rei de juro cada um ano, uma e outra veio a somar duzentos mil cruzados, naquele tempo do inventário, somente, afora o que depois multiplicou, e outras mercês grandes que lhe el-Rei fez, que à hora de sua morte podia ser toda trezentos mil cruzados. Serviu de veador muito tempo a contentamento de el-Rei, servindo-se magnificamente, acompanhado de todos os fidalgos, e muitos deles ricos.
Houve D. Giliãnes, de sua mulher D. Joana da Silva, primeiramente um filho, que chamam D. Álvaro da Costa da Silva, o qual sendo menino muito mimoso de seu pai e mãe, por ser o primeiro, lhe aconteceu um grande desastre; porque tendo alguns barris de pólvora em sua casa, que lhe ficou de quando veio a esta ilha visitar sua fazenda, em uma nau armada, que lhe el-Rei deu para vir em sua guarda, mandando deitar pólvora ao sol a secar em uns guadamecis, D. Álvaro com outros meninos pages , quiseram fazer foguetes e trouxeram lume, donde se veio a pegar na pólvora, e alcançando-os o fogo matou dois deles, e outros ficaram aleijados, como ficou D. Álvaro, que lhe queimou todos os peitos e o rosto, donde ficou cego de um olho, muito disforme das costuras do fogo, e as mãos e dedos muito aleijados, como são hoje em dia; e sem embargo disso é muito bom escrivão. Vendo seu pai e mãe esta desgraça, foram muito anojados por ser o primeiro filho morgado. Depois quis-lhe Nosso Senhor dar outro filho logo após ele, D. António da Costa da Silva, moço muito discreto, como eles eram todos; determinou o pai e mãe com o Cardeal fazê-lo sacerdote para que o segundo fosse herdeiro no morgado, como de feito o fizeram clérigo; e o dito D. Álvaro depois que o entendeu e se viu que não podia herdar o morgado, ficou muito triste, e apartando-se logo de seu pai, sem nunca mais serem amigos, se foi para o estudo de Coimbra, onde lhe mandava dar o pai mil cruzados de renda, cada ano; estudou alguns anos em que tomou grau; e com isto se foi para Roma sem o pai o saber, e quando o soube, contente com isso, o mandou prover lá de todo o necessário com muito dinheiro. E como D. Giliãnes era muito conhecido em Roma, de quando fora por embaixador, era lá favorecido de todos os cardeais e senhores, e tratava-se como grande senhor; e desta vez privou tanto, que trouxe cinco benefícios muito bons, vindo-se para Coimbra sem ir a casa de seu pai, e ali tornou a estudar até que se pôs em grau de doutor, como é; comendo as rendas de suas igrejas, que lhe podiam, naquele tempo, render dois mil cruzados, com mais mil que lhe dava seu pai. E indo algumas vezes à corte se tratava com quinze, dezasseis pages, todos vestidos de seda, com gorras de veludo e com quatro ou cinco homens de pé e outros de cavalo, de modo que na corte não havia quem lhe fizesse avantage. Depois não contente com isto se tornou a Roma; esteve lá três anos, donde trouxe, desta segunda vez, nove benefícios, afora o Dayadego da Guarda, que é uma grave e proveitosa dignidade, que lhe rende cada um ano seiscentos e cinquenta mil reis, que serve um criado por ele, em seu nome como coadjutor; que eram já quinze benefícios. Depois tornou outra vez a Roma a trazer três, que são dezoito; tem dados a dois criados dois, ficamlhe dezasseis. Também alcançou com o Papa, por seu favor e de seu pai, que lhe deu os benefícios das igrejas em transferende e diz no transferende logo desta maneira: que o dito D. Álvaro poderá dar e renunciar as ditas igrejas nas pessoas em quem ele mais quiser, contanto que tenham ordens menores e não sejam parentes no quarto grau; e esta dada será valiosa sem mais autoridade do Papa, nem Bispo; e será renunciado vinte e quatro horas antes de sua morte para que esteja em seu siso; e logo diz que, se àquele tempo não estiver tão prestes notairo ou escrivão, para fazer a tal renunciação, que renuncie perante duas testemunhas, e que seja válido, e depois de renunciado será confirmado pelo Bispo do bispado, aonde estiver o benefício. De maneira que lhe renderão os benefícios, em cada um ano, dois contos, forros para si. Além destes benefícios, tem de património, de herança de seu pai, trezentos e setenta mil reis de juro, que lhe paga el-Rei em cada um ano no almoxarifado de Santarém.
Tem mais nestas ilhas a sua parte, que lhe rende cada um ano cem moios de trigo, pouco mais ou menos; rendem-lhe mais em dinheiro os foros que aqui tem, trinta mil reis; e tem quintas, propriedades, moinhos, e marinhas e casas, que lhe rendem, em cada um ano, mais de dois mil e quinhentos cruzados. Não tem casa certa; tem uma casa em Lisboa, outra em Coimbra, outra no Porto, outra na Guarda, e outras onde tem as igrejas; e estando quinze, vinte dias em uma parte, vai estar outros tantos em outra. Não quer estar na corte, nem ser bispo, nem ter outra dignidade; desta maneira passa a vida quietamente. Depois D. António herdou o morgado, que lhe poderá render perto de quatro contos cada um ano, onde entra uma rua que fez D. Giliãnes, em seu tempo, ao Pelourinho Velho, nas casas que foram dos Contos, que é a melhor coisa que há em Lisboa, que lhe rendem cada um ano, os alugueres das casas, três mil cruzados. E tem três filhas e nenhum filho. Foi com el-Rei para África; dizem que lhe deram quatro lançadas de que morreu .
O terceiro filho, D. João da Costa, é muito rico: casou já duas vezes e de ambas lhe deram grossos dotes, além do património que lhe deu seu pai, que passa de dois contos de renda, onde não entra o destas ilhas, cento e quarenta moios de trigo, afora os foros de dinheiro.
O quarto filho, D. Gilianes da Costa, mancebo já casado, é o mais novo; deixar-lhe-ia seu pai um conto e meio de renda, que come; onde não entram cem moios de trigo, que tem cada ano nesta ilha, afora os foros de dinheiro; é homem de raro engenho, músico, latino e bem entendido na língua italiana; tem grande habilidade na arte da poesia, e na oratória; tem escrito muitas coisas, e a Jornada de el-Rei D. Sebastião, com grave estilo. De moço começou a andar nas galés que andavam de armada, e ainda de pouca idade fugiu de casa de seu pai para Tânger, onde residiu quatro anos, e é agora capitão de Ceuta .
Uma das filhas, D. Filipa, casou com D. Fernando Mascarenhas, fidalgo muito principal e grande capitão que foi em Tânger muitos anos, e muito querido de el-Rei; tão esforçado e manhoso, que fazia muitas avantages de cavalarias diante do Rei, e tão apessoado que tinha feição de gigante na grandura e nas forças; e está sabido que na coutada de Almeirim, indo com el-Rei correndo no cavalo, debaixo do arvoredo, se apegava em cima das árvores e apertando as pernas alevantava do chão o cavalo com elas. O qual os mouros mataram com el-Rei Dom Sebastião, tendo ele primeiro mortos muitos. Outra filha de D. Giliãnes casou com D. Tomaz de Noronha, grande fidalgo, dos principais do Reino, rico, devoto, tão amigo de Deus que não faz outra coisa senão sempre rezar e estar na igreja.
Tem outras duas filhas freiras no mosteiro de Almostér junto de Santarém, a que deu grossos dotes. E todos são vivos; somente D. António, morgado, com quatro contos de renda, ao qual, tendo quatro filhas de sua mulher, sem filho barão , levou el-Rei D. Sebastião consigo na jornada de África, e aos dois irmãos D. João e D. Giliãnes, e na batalha se diz que mataram os mouros o dito morgado. Outros dizem que foi visto cativo em Constantinopla. Os dois irmãos ficaram cativos em Berbéria, e saíram por resgate: D. João dizem que custou sete mil e quinhentos cruzados, D. Giliãnes cinco mil e quinhentos cruzados. E porque ao dito D. António não ficou filho barão, fica o morgado, segundo se diz, a D. João, por ser irmão segundo de D. António; porquanto o pai o instituiu com condição que sempre andasse por via masculina. De modo que ao filho a que menos deixou D. Giliãnes da Costa, foi um conto e meio de renda. A qual fazenda manou do princípio que teve nesta ilha com o grande dote que lhe deram em casamento com a filha de João d’Outeiro e da mulher que foi de Rui Vaz Gago do Trato, donde toda procede. E nesta era de mil e quinhentos e oitenta e sete se acha nesta ilha de S. Miguel render a fazenda, que ficou do dito Rui Vaz Gago do Trato, mil e trezentos moios de trigo cada ano, de raiz ou propriedade, pouco mais ou menos; a qual renda está nas mãos dos filhos de D. Giliãnes da Costa, como tenho dito, e em Aires Jácome Correia, e em D. Violante da Silva, e em D. Diogo de Sousa, e em D. Francisco Manuel, e em Hierónimo d’Araújo e Ana d’Abreu, viúva, mulher que foi de Pero d’Azurar e filha de Sebastião Alvres d’Abreu, e em Nuno d’Atouguia, e em Tomé Vaz Pacheco, e Braz Raposo e Jordão Pacheco, seus irmãos, e nos herdeiros de Jordão Jácome, e morgado que possui agora Bertolameu Jácome Raposo, nesta ilha.