Por não dilatar isto para diante, continuarei logo contando os heróicos feitos e grandes serviços que fez à Coroa o Grande Capitão Francisco do Rego de Sá, o qual, sendo mancebo, foi servir a el-Rei no cerco da ilha da Madeira, em companhia do capitão-mor Sebastião de Sá, e por ele capitão-mor lhe requerer na dita ilha que cumpria a serviço de Sua Alteza ir por capitão do galeão S. Dinis, em que fora por capitão D. Francisco de Almeida, por se passar ao galeão S. João, de que fora por capitão Pantaleão de Sá, que ficou na dita ilha, por Sua Alteza o haver assi por seu serviço, ele, Francisco do Rego, vendo quanto importava ao serviço de el- Rei ir no dito galeão, o aceitou. E por partir da dita ilha, que estava roubada e falta de mantimentos, lhe custou três vezes mais do que lhe custara se partira do Reino, e logo se fez prestes em dois dias, com muitos soldados e mantimento, tudo à sua custa, e foi por capitão do dito galeão às ilhas das Canárias e a Cabo Verde até tornar ao Reino. E no caminho lhe faleceu muita gente com os féberes do Cabo Verde; ele veio muito mal tratado dos ditos febres, sem receber de Sua Alteza nenhum ordenado, nem mercê.

No ano de sessenta e nove, Sua Alteza houve por seu serviço que ele fosse em companhia do capitão-mor Jorge de Lima, quando veio às ilhas a buscar as naus da Índia, por capitão da nau Nossa Senhora da Guia, para o qual ele se fez prestes de mantimentos e soldados, para o ir servir. E estando para partir, o barão de Alvito, veador da fazenda, lhe disse e escreveu uma carta que mandava Sua Alteza que ficasse para ir a correr a costa, por ter novas de cossairos e se passasse logo para o galeão S. Paulo, que tinha já mantimentos; ao qual se passou, por a dita nau ir para a Malagueta. Na passagem, gastou muito por fazer duas despesas, e depois Sua Alteza lhe mandou outra provisão para que fosse correr a costa por capitão do navio Misericórdia, onde se tornou a passar. E por neste tempo morrerem em Lisboa de peste, Lisuarte Peres de Andrade, provedor dos almazens , lhe mandou da parte de Sua Alteza desistisse da dita viagem, por a gente fugir do dito mal e nas naus morrerem; e por ele estar ainda esperando o que dele mandava Sua Alteza, D. Martinho Pereira, veador da fazenda, lhe mandou da parte de el-Rei que se podia ir para onde quisesse, pois o tempo não dava lugar para o ir servir e haver três meses que estava esperando mandado de Sua Alteza, em tempo de tanto perigo, e sustentar os soldados que tinha para o servir, tudo à sua custa, no que gastou muito de sua fazenda e se foi para sua casa.
Estando ele nesta ilha de S. Miguel, onde é morador, na força da peste, por lhe parecer que do Reino não podia vir armada às ilhas, por a muita peste que havia em Lisboa e haver falta de gente e Sua Alteza estar longe para socorrer estas necessidades, com o zelo que tinha de o servir, vendo que era chegada uma nau da Índia e nas ilhas não andava armada, ele se foi oferecer à ilha Terceira, trinta léguas, onde morava João da Silva do Canto, que servia de provedor das armadas nas ditas ilhas, com um navio armado à sua custa de mantimentos e artilharia, com oitenta soldados e marinheiros de sobresalente , e comprimento para a dita nau se prover do que houvesse mister. E o dito provedor mandou logo após ele um recado que a seguisse e acompanhasse, dando-lhe regimento do que havia de fazer na derrota, o que ele fez com brevidade e diligência. Chegando à costa, logo escreveu a Sua Alteza e a D. Martinho Pereira da vinda da dita nau e que visse o que mais mandava dele. E Sua Alteza lhe escreveu que logo fosse em busca de D. Francisco de Menezes, capitão-mor, e o acompanhasse e fizesse o que lhe ele mandasse, o que ele fez, e tudo à sua custa, sem receber nada da fazenda de Sua Alteza. E o encontrou e com ele arribou à barra de Lisboa, com tempos contrairos. E estando no rio com a armada, veio nova ao dito capitão-mor que vinham duas naus da Índia de arribada e ele capitão-mor se meteu na caravela de Francisco do Rego e as foram buscar, as quais acharam quinze léguas ao mar e as levaram ao porto; e na vigia que Francisco do Rego teve na guarda das ditas naus, tomou muito cravo e canela, que se delas tirou escondido, que todo foi entregue a Simão Cabral, em que deu à fazenda muito proveito.
Sua Alteza lhe mandou por uma sua carta que tornasse às ilhas, com mais duas caravelas da armada, e fizesse o que lhe mandasse o dito João da Silva do Canto; e por lhe a ele parecer ser mais serviço de Sua Alteza ir com sua gente embarcada com o dito capitão-mor, por lhe faltar gente, se embarcou com ele com setenta pessoas, sem nenhum soldo, nem mantimentos de Sua Alteza, tudo à sua própria custa.
E porque a dita armada veio ter a esta ilha de S. Miguel, o dito capitão-mor lhe deu licença que ficasse em sua casa, por vir muito mal disposto, onde ficou. E por neste tempo virem novas da ilha da Madeira ao dito capitão-mor de como Jacques Soria, cossairo de França, com sua armada, tinha tomado muitos navios sobre a dita ilha, esperando a armada do governador do Brasil, D. Luís, para com ele pelejar, e ter mais por novas de outros cossairos da Rochela andarem pelo mar roubando e dizerem que havia de ir ter com ele, lhe escreveu uma carta, em que lhe pedia que, com a mais brevidade que pudesse, fizesse prestes um navio armado e a melhor e mais gente que pudesse, porque cumpria assi muito a serviço de Sua Alteza, por as novas que tinha; o que ele logo fez, e em três dias, com muita diligência, se aviou e foi para o dito capitão-mor com um navio de cento e vinte tonéis, com oitenta homens e muitos parentes seus, e o acompanhou até o porto de Lisboa, levando a nau capitânia da Índia. E tudo fez à sua custa, em que gastou muito do seu, porque não tão somente gastou nas ditas viagens, mas também gastou muito na cidade de Lisboa com a gente que tinha, a que dava de comer e todo o necessário para consigo os ter, esperando assi alguns meses, por mandado de el-Rei, com um galeão e um patacho seus, em que o havia de ir servir.
Sua Alteza lhe mandou que se não fosse de Lisboa, que se queria servir dele, pelo que lhe foi necessário mandar uma nau sua às ilhas a buscar-lhe mantimentos e provimento. E estando carregada a dita nau, com o temporal que sucedeu, se fez em pedaços na costa e importava a perda mais de três mil cruzados.
Seu pai, Gaspar do Rego Baldaia, vendo isto, lhe fez logo prestes uma caravela, fornecendo-a de mantimentos, artilharia e muitos soldados, e lha mandou ao Reino, para com ela servir a el-Rei, e, chegando a dita caravela a Nossa Senhora da Guia, na entrada da barra de Lisboa, encontrou um ladrão com que pelejou, e o ladrão a tomou e lhe matou o capitão com vinte e cinco homens; em a qual ia o provedor da fazenda Francisco de Mares. E Sua Alteza mandou visitar a Francisco do Rego por D. Martinho Pereira, pela dita perda.

No ano de setenta e um, o mandou el-Rei de armada às ilhas, em companhia de João de Mendonça , capitão-mor, e Bernaldim Ribeiro, dizendo-lhe por uma carta fizesse o dito serviço com o seu galeão, à sua custa; e ele o fez e levou as naus da Índia, daquele ano.
No dito ano, lhe tornou Sua Alteza a mandar que fosse com o dito galeão, à sua custa, com Bernaldim Ribeiro Pacheco, a correr a costa do Reino, o que ele fez, e achando-se apartado da armada, com tempo que lhe deu, tomou duas naus ingresas que levou a Lisboa, e foram presos no Limoeiro e entregues a Simão Cabral, por mandado de el-Rei, que lho agradeceu.
O ano de setenta e quatro, vindo Francisco Nobre, por capitão-mor da armada, ter a esta ilha de S. Miguel, a justiça da terra lhe requereu da parte de Sua Alteza fosse tomar umas três naus de cossairos, em que entrava a nau Príncipe, que estavam surtos daí cinco léguas, fazendo aguada; ao que respondeu que iria, mas com condição que havia Francisco do Rego de fazer uma nau e ir em sua companhia pelejar com os ditos cossairos, porque estava com um galeão muito pequeno e não tinha mais que uma caravela e zabra, em sua companhia.
Vendo Francisco do Rego de Sá o que ele, capitão-mor, e a terra lhe pedia, armou logo uma nau à sua custa e gente, e acompanhou ao dito capitão-mor, e todos juntos foram buscar aos cossairos com os quais pelejaram e lhes mataram muita gente.

No ano de setenta e cinco, estando ele, Grão Capitão, nesta ilha de S. Miguel, veio ter aqui Vasco Lourenço Carracão, capitão de uma nau da Índia e pediu ao feitor da dita ilha a provesse de mantimentos e artilharia e gente, porque não pudera tomar a cidade de Angra, sendo a armada de Sua Alteza ida para o Reino, de que era capitão-mor Pero Correia de Lacerda; e por lhe o feitor não dar os homens e artilharia e pólvora e munições, que lhe pedia, ele, Grão Capitão, por entender ser serviço de el-Rei e ver o perigo em que a dita nau estava, por andar só, lhe deu muita gente feita a soldo e parentes seus, à sua custa, com também fazer uma caravela de armada, com que acompanhou a dita nau da Índia até o Reino. E deu à nau munições, artilharia e pólvora e toda a gente necessária, sem o feitor da dita ilha a nada disto acudir, o que fez com muito gasto e despesa e risco de sua pessoa.

No ano de setenta e seis, estando ele nesta ilha de S. Miguel, el-Rei escreveu uma carta ao doctor Diogo Alvres Cardoso, corregedor da correição destas ilhas, e outra carta a ele, Grão Capitão, que lhe mandou o corregedor a esta ilha de S. Miguel, trinta léguas duma ilha à outra, em a qual lhe mandava se fosse logo ver com o dito corregedor e fizesse tudo o que lhe mandasse da sua parte; e isto com todo segredo e que não o soubesse pessoa nenhuma, e de assi o ele fazer lho agradeceria muito, por cumprir muito a seu serviço, o que vendo ele, fretou logo uma caravela, dizendo que ia em romaria a Nossa Senhora de Guadalupe, à Terceira, e em vindo da romaria se foi ver com o corregedor, a quem deu a carta de el-Rei, e lhe ficou na mão, por Sua Alteza assi o mandar.
O corregedor lhe mostrou outra carta do mesmo Rei, escrita a ele corregedor, em que lhe mandava a lesse a ele, Grão Capitão, e lhe dissesse da sua parte que armasse dois navios para guarda da costa de todalas ilhas, assi dos navios que a elas vêm, como dos que delas partem. E que todos os navios que achasse, franceses e ingreses, parecendo-lhe serem de mau título, metesse no fundo e não desse vida a nenhum, e das fazendas lhe fazia mercê, para ele e sua soldadesca, dizendo mais que desta fazenda não pagasse direitos nas alfândegas; e que se fosse descoberto este segredo por ele, lhe mandaria cortar a cabeça e que não houvesse medo se em algum tempo o mandasse prender nos seus castelos e fortalezas, porque seria parte de o fazer dos grandes homens do seu Regno.
O corregedor assentou com ele, Grão Capitão, vendo os muitos cossairos que andavam nas ilhas, que armasse logo. E tomando uma fermosa caravela que estava no porto de Angra se vieram a esta ilha de S. Miguel, onde logo puseram em ordem a dita armação.
O corregedor lhe mandou dar uma nau que no porto estava, vianesa, foi à fortaleza de que era Capitão D. Rui Gonçalves da Câmara, para lhe dar a artilharia necessária e munições e pólvora, por Sua Alteza assi o mandar, e que disso não houvesse autos púbricos , senão entre eles, corregedor e Grão Capitão, o praticassem e assentassem. O ouvidor do Capitão lhe defendia a artilharia, e lha não queria dar, pelo que o corregedor se ajuntou em Câmara e com os da governança assentaram darem-lhe a artilharia e munições, e pondo bandeira na porta da alfândega da feitoria, a modo de almazém, com muito dinheiro, e tambores tocados pela cidade, com pregões que diziam: quem quiser assentar-se em soldado nesta armada que faz Francisco do Rego de Sá, paga mil reis por mês, vá-se assentar à porta da alfândega, onde está a bandeira e muito dinheiro.
Armados os ditos navios e matalotados e postos em ordem de guerra, se embarcou o corregedor com ele para o pôr na Terceira, donde partiu e se foi na volta do mar, correndo as ilhas todas e fazendo seu ofício de capitão-mor o melhor que sabia e podia; onde andou quatro meses de armada e se encontrou com muitos cossairos com que pelejou, e lhe aconteceram bons sucessos e com uma nau que trazia dezoito remos por banda, de cujo sucesso escreveu a Sua Alteza.
Em todo o tempo que andou de armada, que foi até chegar D. Pedro de Almeida, se não tomou navio, nem roubou, nem fez agravo, porque os amparava com sua armada, trazendo-os aos portos das ilhas, para onde vinham; e como D. Pedro de Almeida, capitão-mor, chegou às ilhas Terceiras, com a sua armada, que eram duas naus e duas caravelas, as que trazia, se foi a ele, oferecendo-lhas para o que fosse necessário ao serviço de el-Rei.
E por o capitão-mor lhe dizer que trazia a armada convalescente e por saber que havia quatro meses que ele, Grão Capitão, andava de armada, em que trazia trezentos homens à sua custa, com os gastos e fretes das naus, lhe pedia se fosse desarmar, o que ele fez.
Estando já desarmado nesta ilha, lhe veio uma carta de el-Rei, em que lhe mandava que se ajuntasse com D. Pedro de Almeida, capitão-mor, com a sua armada, e andasse debaixo de sua bandeira todo o tempo que ele cá andasse, e tirasse a bandeira que trazia e assi fosse ao Reino com sua armada.
E por estar desarmado e a artilharia entregue à fortaleza, a tornou a pedir ao Capitão da dita ilha, a qual lhe não quis dar, de que tirou um estromento , de agravo e se fez prestes em uma nau ingresa que trazia tomada, e com gente e convalescente artilharia da mesma nau se foi à Terceira, com o capitão de Viana que encontrou, onde o corregedor, o doutor Diogo Alvres Cardoso, veio a seu bordo e lhe deu conta como D. Pedro de Almeida era partido e os capitães que deixara andavam divisos com o seu capitão-mor, e que fora para os prender e os não pudera acolher em termos para isso, e lhe pedia acudisse a isto, porquanto andavam antre as ilhas diferentes.
Ao que ele foi, com o capitão de Viana em sua companhia, e achou as duas zabras, de que era capitão Gaspar Pereira e Diogo da Silveira; para que os mandou vir a seu bordo e lhes perguntou por seu capitão-mor, e eles responderam que não tinham capitão-mor, nem o conheciam; a que ele respondeu: Nem a mim conhecereis por capitão-mor, pois rejeitais a Cristóvão Juzarte Tição, tão bom fidalgo: de ambos de dois vêde qual quereis que seja capitãomor? Porque eu vos obedecerei, até encontrarmos o nosso capitão-mor. E eles elegeram a ele, Grão Capitão, e o foi.
E com vento sudoeste rijo que lhe deu, foram ter sobre Angra, onde em amanhecendo encontrou o galeão francês Príncipe do Mar, de quinhentas toneladas, com o galeão S.
Lourenço, de el-Rei, e uma caravela do Cabo Verde e outra de Sanaguá, o que tudo o cossairo trazia tomado. E as zavras de el-Rei amanheceram dele, Grão Capitão, três léguas detrás da ponta dos Altares, e ele, só, foi após o ladrão, o qual lhe foi largando o galeão de el-Rei, que trazia tomado com as mais caravelas, às quais não tinham ainda feito dano algum; e dando-lhe caça todo o dia, ia alijando o ladrão muitos cofres encourados, pipas, quartos, rumas de balaios, e os batéis e fogão, mas, ele ao ladrão e ambos, andaram às bombardadas toda a tarde daquele dia, matando-lhe o Grão Capitão muita gente e assi à sua lancha, a vista da ilha Terceira; e dando-lhe o ladrão muitas bombardadas, antre elas lhe deu com uma espera ao poio da verga, que se ia a nau ao fundo e dando com ela à banda, lhe botou um coiro, com que piedosamente se sustinha a nau sobre a água e os seus mantimentos e pipas andavam a nado dentro na nau. E assim andou todo dia pelejando, e com uma hora da noite chegou o vianês e as zavras a ele, e todos foram à nau francesa até o outro dia, que amanheceu uma zavra para o sul, outra para o norte, sem o capitão de Viana, nem os mais, fazerem nada; e por se a sua nau ir ao fundo, atirou um tiro de recolher e se virou na volta desta ilha de S. Miguel, por ser a mais perto terra e favorável ao vento, onde botou os rombos das bombardadas e tábuas necessárias à sua nau, por estar mui desroçada.
Nisto lhe vieram cartas do provedor da ilha Terceira, como era chegada a nau da Índia, derradeira, de que era capitão D. Luís de Almeida, que fosse para a acompanhar até o Reino, como fez, e de caminho, por entender ser serviço de el-Rei, prendeu os capitães das zavras e os entregou presos, aos quais Sua Alteza mandou punir, como já tenho contado, e a ele prometeu de fazer grandes mercês.

No ano de setenta e sete, o mandou el-Rei a estas ilhas por capitão do galeão S. Lourenço, em companhia de D. Jorge de Menezes, seu capitão-mor, o qual o mandou ao Reino com duas naus da Índia: em os quais serviços tem gastado mais de quarenta mil cruzados, com muitos trabalhos e riscos de sua pessoa, gastando sua fazenda e mocidade.
Este Grão Capitão Francisco do Rego de Sá, havia tomado a voz de D. António, nesta ilha, o ano de oitenta; em a qual ilha teve provisões para ser governador dela, e depois de proceder nisto, lhe escreveu o dito D. António que o fosse buscar a Aveiro, onde o esperava, o qual fez uma caravela de armada e nela embarcou muitos mantimentos para ir onde lhe mandava e levou em sua companhia cento e vinte espingardeiros, todos homens e a mor parte parentes, levando sua ordem de desembarcação sc., capitão, alferes, sargentos, cabos de esquadra. E foram ter sobre a barra de Buarcos, donde fez seu sinal, como lhe era mandado pelo dito senhor. E por de terra lhe não responderem conforme ao sinal que levava, andou um dia e uma noite esperando se lhe respondiam de terra com o sinal esperado. E por lhe suceder tempo travessia, se foi na volta do mar sobre a barra de Aveiro; tornou ao outro dia, e por se lhe sarrar a barra foi ter sobre os Cavalos do Porto, onde esteve perdido e o mestre e marinheiros despidos, sem camisa, para se botarem ao mar; o que vendo ele, Grão Capitão, mandou fazer fogão e que assassem e comessem todos, que o tempo era próspero, sendo travessia, e mandou ao seu piloto, José Gonçalves, que fosse na volta do mar, o que foram; e ao outro dia, em amanhecendo, se acharam sem vista de terra, como quinze léguas, e mandou governar na volta dela ao nordeste, por o piloto dizer que estava areado, na qual volta vieram tomar o rio de Âncora, que é em Caminha, e já metidos tanto à terra, se acharam em um rio, que é o de Caminha, correndo do rio de Âncora para Caminha aquela costa, onde tiveram grã tormenta, porque contínuo a há nela, mormente aos que nunca por ali passaram, porque nem ele, nem piloto, nem soldado, não se acharam por aquelas partes, onde houveram vista da Însua, que é Galiza, que estava já a este tempo por Sua Majestade, e os soldados castelhanos lhes capeavam com as capas para a banda onde haviam de lançar o leme, com os quais sinais governavam; dando tão grandes mares no navio que lhes lançava o pedaço do bordo fora, os livrou Deus, até que se puseram antre a Însua e a terra, e logo vieram ao seu navio muitos barcos carregados de gente castelhana, que estava ali de presídio, na dita Însua; e entraram no navio que estava já despejado de cartas e papéis que lhe podiam fazer nojo, e botado ao mar a bandeira, tambor e todo o que podia fazer dano de obrigação de os prenderem. Tinha o Grão Capitão dito a João Roiz, que depois foi escrivão dos órfãos em Vila Franca, que se fizesse mercador do navio, por respeito de vinte moios de trigo que ele levava e de muitas carnes, assi de porco, como de vaca, e dissesse que aquela gente toda eram estudantes que iam para os estudos e outros iam com apelações para o Regno; e que agasalhasse a dita gente castelhana e lhe desse de todo o melhor que havia no navio a comer; e chamasse por ele, Grão Capitão, que andava em trajos de marinheiro, em diferente nome, como que fosse marinheiro, e o mandasse a terra buscar pão fresco, o que fez. E o dito Grão Capitão foi no barco com este nome, com quatro homens; e chegando a terra, que estava com grande concurso de gente em Caminha, esperando para saberem novas, e os sobreditos, tratando de buscar escápula, lhe diziam que era navio que vinha das ilhas carregado de trigo e que os levassem a uma casa de estalagem para remediarem a vida e comerem uns bocados, o que foram levados; e à meia-noite disse ele, Grão Capitão, ao estalajadeiro que lhe buscasse quatro azémalas que os levassem a Viana, três léguas dali; buscadas, partiram para lá e foram ter com Álvaro Roiz de Távora, capitão que foi da armada vianesa, a tomar língua e conselho do que devia fazer, o qual lhe foi mostrar a casa do Marquês de Sarria, Conde de Lemos, que estava presidente por Sua Majestade naquela parte; e foi ele, Grão Capitão, levado ante ele, em uma manhã bem fria e velosa, mal vestido, pelo que lhe relevava em tal tempo, e pelo dito Conde de Lemos lhe foi perguntado quem era, com pouca ou nenhuma cortesia, parecendo-lhe ser marinheiro, ao que, cheio de cólera, o Grão Capitão lançou mão a uma cadeira de espalda e chegando-a para junto do Conde, lhe foi respondendo: A mim, me chamam o Grão Capitão Francisco do Rego de Sá, sou fidalgo nestes Reinos de Portugal e as coisas do coração de el-Rei D. Sebastião, que Deus tem em glória, e de seu gosto, por mim as mandava fazer. Servi até agora de governador da ilha de S. Miguel por el-Rei D. António, e por entender que não procedia bem e conhecer a Sua Majestade por Rei, direito sucessor dos Reinos de Portugal, e que não podia escapulir ao dito povo e ilha, senão com lhes dizer que queria ir buscar ao dito senhor D. António para saber só dele a verdade, e sabida tornar à ilha a dar-lhes a razão da certa verdade que seria por mim sabida, pedindo-lhes me fizessem prestes uma caravela à custa de minha fazenda, o fizeram debaixo deste juizo; mas o respeito por que o fizera em este modo fôra para vir dar menagem a Sua Majestade e para salvar-me e remediar-me a não perder vida e fazenda; e o que mais estimava e tinha em mor contia eram os muitos serviços que tinha feito à coroa deste Reino. Não foi isto parte para deixar o Conde de Lemos de mandar um juiz comissairo à caravela, três léguas de distância, a tomar informação do conteúdo; mas enfim lhe foi tomado todo o que foi achado na dita caravela ser seu, sem até hoje lhe ser tornado. E a ele, Grão Capitão, foi mandado pelo Conde de Lemos, sob pena de forca, que não saísse de Viana.
Por culpas que Sua Majestade teve do Conde de Lemos, foi mandado a D. Diogo Anriques, nobre castelhano, que fosse às ditas partes por governador e que o dito Conde de Lemos fosse desposto e recolhido a suas terras a Galiza.
O qual D. Diogo Anriques, falando com ele, Grão Capitão, como o ouviu nomear por Sá, lhe perguntou que parentesco tinha com a condessa Délada, D. Isabel de Sá; e por lhe dizer o Grão Capitão que era sua tia, prima com-irmã de sua mãe D. Margarida de Sá, lhe fez muitas honras e lhe deu a ordem para sair daquele trabalho em que estava, com lhe dar cartas para Sua Majestade e para seus secretários de favor, e pela ordem que lhe dera o dito governador, D. Diogo Anriques, comprou um macho e um asno, com que caminhou por arrieiro deles até Coimbra.
Depois de chegado, mandou um homem seu a Tomar, onde estava Sua Majestade, com as cartas que levava de D. Diogo Anriques encaminhando-as ao Conde, camareiro-mor, seu parente, para que as desse a Sua Majestade e a seus secretários a quem iam; e logo lhe foi respondido por D. Cristóvão de Moura e Gabriel de Sayas e D. Diogo de Córdova, estribeiromor, por cada um sua carta, em que lhe diziam que fosse seguro e sem temor nenhum, porque Sua Majestade o desejava ver e conhecer. Com o qual recado se foi a Tomar, já limpo e deixados os trajos vis, com que até ali chegara de arrieiro. E D. Diogo de Córdova com o dito conde o levaram a Sua Majestade e ele disse: Senhor, a mim me chamam o Grão Capitão Francisco do Rego de Sá, que há mais de vinte anos que sirvo à coroa deste Reino, de capitão de galeões e de capitão-mor, trazendo as naus da Índia a Portugal, debaixo de minha bandeira; e fui governador da ilha de S. Miguel, em nome de D. António e o alevantei por Rei com uma bandeira na mão; e por entender que Vossa Majestade era o direito sucessor destes Reinos de Portugal e por eu ter um pedaço de fazenda e os meus serviços, que tenho feito, valerem mais que todo, disse ao povo da dita ilha que queria vir em busca do D. António , por sabermos onde estava com verdade; mas era tudo isto para me poder vir da mesma ilha de S. Miguel, donde era governador eleito, porque se com este engano não viera, não me deixaram vir. Eu também humanamente tinha feito contra o serviço de Vossa Majestade tanto quanto pudera fazer; mas o coração, que tive para servir aos Reis passados e ao senhor D. António, tenho para servir a Vossa Majestade no que me mandar.
Foi-lhe respondido por Sua Majestade: “Doi-vos muchas gracias por ello, y hizistes-lo como mui buen cavallero”. Falai com D. Cristóvão de Moura, que ele vos dirá o que eu quero.
Beijou-lhe então as roupas.
Foi ter com D. Cristóvão de Moura e contando-lhe o que tinha passado com Sua Majestade, respondeu-lhe: Vêdes que bom Rei temos, que merecendo-lhe Vossa Mercê cem mil forcas e cuitelos, lhe perdoa suas culpas; sabei conhecer e servir tal Rei; i-vos agasalhar. E tiveram-no quatro anos, sem o deixar vir a sua casa.
Depois de chegado Sua Majestade a Lisboa, lhe mandou fazer mercê por D. Cristóvão de Moura de 200 cruzados, para ajuda de custo, na mão do tesoureiro-mor do Reino, que lhos deu. E por o prenderem, por respeito de ingreses, por certas naus que lhes tomara no mar por mandado de el-Rei D. Sebastião, que está em glória, e por ele se não poder valer nem ajudar das provisões do dito Rei, por respeito de Sua Majestade as mandar pôr em segredo na mão do doutor António da Gama, desembargador, e requererem os ingreses agravados que o prendessem na cadeia, lhe foi necessário fugir da prisão e menagem em que estava em sua pousada, e se foi a Madril, setenta e tantas léguas de Lisboa, a Sua Majestade, a fazer-lhe querela de suas culpas, e contando-lhe como quebrara a menagem, lhe fez mercê de lhe perdoar, o quebrantamento dela, e de cinquenta mil reis de tença, com o hábito de Cristo, que ele já tinha recebido de el-Rei D. Sebastião, até o prover duma comenda de 150$ reis e mil cruzados em um alvitre para a Índia e licença para se servir para esta ilha, onde chegou no ano de oitenta e quatro.
E estando aqui, lhe chegou a cinco do mês de Fevereiro de oitenta e sete um treslado de uma portaria que Sua Majestade mandou passar por Francisco Sarrão, secretairo do Estado de Sua Majestade que assi dizia: El-Rei, Nosso Senhor, havendo respeito aos serviços que Francisco do Rego de Sá, fidalgo de sua casa e morador na ilha de S. Miguel, tem feitos nas armadas, e gastos que nelas fez, servindo sempre de capitão de naus e navios seus, com gente à sua custa, e no ano de setenta e cinco socorrer com artilharia e soldados a nau S. Mateus que vinha da Índia e a pelejar com uma nau francesa, há por bem de lhe fazer mercê de cinquenta mil reis de tença cada ano, com o hábito de Cristo que já tem; os quais cinquenta mil reis de tença lhe serão pagos no almoxarifado da ilha de S. Miguel, e os haverá até ser provido nas ordens de uma comenda de cento e cinquenta mil reis, estando hábil para ela. E sendo provido da dita comenda, largará os ditos cinquenta mil reis de tença, que começará de vencer de dezasseis de Abril do ano de mil e quinhentos e oitenta e quatro, em que Sua Majestade lhe fez esta mercê, da qual lhe mandou passar esta portaria, havendo outro si respeito à informação que houve de como ele foi à dita ilha, donde não tornou por achar sua fazenda desbaratada e estar pagando suas dívidas e estar muito prestes para o serviço de Sua Majestade. Em Lisboa, aos dez de Dezembro de mil e quinhentos e oitenta e seis.