Esta ilha de São Miguel em que, Senhora, estamos é montuosa e regada de ribeiras, e era logo, quando se achou, coberta de arvoredo, graciosa em sua situação e, por ser húmida com as águas das chuvas e ribeiras e quente do sol, criou tantos e tão espessos arvoredos que com sua sombra conservavam nela esta humidade sempre fresca e durável, com que ela ficou e estava no princípio tão fumosa de tão grossos vapores, sem ter o sol força para os gastar nem penetrar com seus raios, nem os ventos livre entrada para os lançar daqueles lugares sombrios da espessura do arvoredo, que sendo a ilha de Santa Maria achada e descoberta doze anos primeiro que ela, não podia ser vista dos moradores dela, tendo-a tão perto e sendo tão chegada vizinha, como defronte de sua porta. Mas, o que em longíssimos e antiquíssimos anos foi criado, em tão poucos se queimou, roçou e consumiu quase tudo depois de achada que estando ao presente a maior parte de toda a terra escalvada, tomaram os ventos tanta posse dela e é tão lavada deles que levam-na em pó ao mar, e escalvando e ensuando os frutos da terra, a deitaram a perder quase de todo, fazendo mais dano nela que nenhum dos outros elementos; porque ainda que o fogo por baixo fez algum, isto foi por vezes limitadas, quando de anos em anos, por longos intervalos arrebentaram os montes e cobriram de pedra, terra e cinzeiro, algumas partes dela; mas os ventos a perseguiram tanto, depois que a viram calva do espesso arvoredo que Ihe servia de cabelos, com que se ornava e enfeitava, que quase continuamente, e todolos anos, com sua vexação contínua, em um só dia ou em uma só hora, são importuna destruição de quanto ela pelo tempo vai criando, com que fica menos fértil e formosa; sendo, d’antes que escalvada fosse, um riquíssimo e fresco jardim e deleitoso vergel, como um terreal paraíso. Pelo que, o que agora direi dela será muito diferente da pintura que d’antes tinha, e a minha rude linguagem a fará mais feia do que ainda agora parece, mas, por obedecer a vossos rogos e mandado, direi o que dela souber, como a vejo e acho neste presente estado.
Já tenho dito que a ilha de Santa Maria está em trinta e sete graus de altura do polo ártico, e esta de São Miguel Ihe fica da banda do norte, em trinta e oito graus norte e sul com ela, ficando a de Santa Maria norte e sul da Povoação, e com Vila-Franca noroeste sueste doze léguas da Povoação, de terra a terra; e está leste oeste com a terra de Setúvel, por linha recta do morro dela, que é chamado o morro do Nordeste; e demora a terra de Setúvel a leste duzentas e cinquenta léguas, que é costa de Portugal, que corre norte a sul o cabo de Espichel com o cabo de São Vicente. Da banda do sul Ihe fica a ilha de Santa Maria, desta mesma comarca e governação das ilhas dos Açores, cuja cabeça e governo tem assento na ilha Terceira, onde está a Sé, e cabido, e ela também está estendida no mesmo rumo de leste oeste, ainda que uma ponta da parte do levante tem lançada para o nordeste e a outra da parte do ponente está para o noroeste; é de comprido de dezoito léguas e de largura duas e meia, a partes, e em algumas, uma, que é no meio dela, onde a fazem mais estreita duas baías grandes que tem, uma da parte do sul, de uma ponta que se chama da Galé até à ponta de Santa Clara, da cidade da Ponta Delgada, e outra, da parte do norte, da ponta da Bretanha até à dos Fenais da Maia; em torno, ao redor, tem trinta e seis léguas, pouco mais ou menos. Assim fica o lançamento desta sua compridão leste oeste e a ponta da parte do oriente pende ao nordeste, e a outra do ocidente demora ao noroeste; cuja altura da parte do norte é trinta e oito graus, e ainda que junto da terra, em torno, seja mui cheia de baixos, uma légua ou menos afastado da costa é mui limpa; em todo o seu circuito tem alguns portos e estâncias em que muitos navios podem seguramente ancorar, mas não invernar. Tem esta ilha baixo, onde se fazem grandes pescarias, que está nordeste sudoeste com o porto da vila do Nordeste, afastado da terra por espaço de três léguas; do qual baixo , até às mesmas Formigas, há distância de oito léguas; e o porto do Nordeste está com as Formigas nor-noroeste e su-sueste e haverá dez léguas entre o dito porto e elas; as quais , com a ponta de Álvaro Pires, que é a ponta de leste da ilha de Santa Maria, estão nordeste e sudoeste afastadas sete léguas da mesma ponta, ficando da mesma ilha de Santa Maria quase ao nor-nordeste. Também na era de 1577, quarenta léguas ao norte da mesma vila do Nordeste, vindo um navio novo da pescaria, dando à bomba, tocou como em terra, de modo que abriu todo, cuidando os marinheiros que dera em alguma baleia, e deitando o barco fora com toda a gente, por verem que era um penedo, foram no barco ter à Galiza e depois a Aveiro, sua terra; dali a dois anos ou três, veio a dar no mesmo penedo uma nau de franceses ou ingleses e perdeu-se nele à vista de outra nau sua companheira, a qual tornando para sua terra, deu notícia daquele baixo que, de então, se começou a pôr em algumas cartas de marear, no dito rumo de quarenta léguas ao norte da vila do Nordeste desta ilha de São Miguel, e se chama a Baleia, por cuidarem os primeiros que o viram ser baleia; outros Ihe chamam Sirte ou Scopulo.
Começa a compridão desta ilha da ponta do porto da vila do Nordeste, assim chamada por ter o rosto a este vento, e de modo que o seu contrairo vento, desta ponta, e o nordeste, junto do morro alto que, de vinte e trinta léguas ao mar, primeiro se vê dos navegantes que vêm do oriente, situada no Lombo Gordo, em uma lomba que se chama de Salvador Afonso, em um lugar não mui chão, mas de boas casas e devotas igrejas, lugar alegre, de frescos pomares, com claras ribeiras, mas estéril de vinho. O qual lugar do Nordeste fez vila el-Rei D. Manuel, de gloriosa memória, e o separou da jurisdição de Vila-Franca, como conta o docto cronista Damião de Goes, na quarta parte de sua Crónica, no último capítulo, e, como mais claro e particularmente parece pela carta de mercê, passada de motu próprio, estando el-Rei em Lisboa, feita aos dezoito dias de julho do ano de mil e quinhentos e quatorze, por o lugar do Nordeste estar sete léguas da dita Vila-Franca, no que os moradores do dito limite recebiam detrimento, em irem a ela pelas coisas de justiça, por caso dos maus caminhos e ribeiras que havia do dito lugar à dita Vila, e havendo respeito ao gasto e despesa que entre si fizeram nos ditos caminhos e terras que aproveitaram, e a como o dito lugar ia em mor crescimento do que soía ser, dando-lhe por termo aquela terra que ela dantes tinha por limite. Não se sabe quem fossem nela os primeiros oficiais da Câmara, porque o livro dos oficiais do primeiro ano, que foi o ano de mil e quinhentos e quinze, não se acha; somente um só oficial se sabe que parece que fazendo em Câmara, o ano de quinze, a um Diogo Preto almotacé, ele não quis servir, e o ano de dezasseis saiu por juiz este Diogo Preto, e pedindo confirmação, para os oficiais servirem, ao corregedor, que era Hierónimo Luís, não quis ele confirmar o Diogo Preto, dizendo que refutara servir de almotacé o ano d’antes, e mandou expressamente que dessem juramento a Francisco Afonso, que o ano passado servira de vereador, o dito primeiro ano de quinze, como se vê pela carta de confirmação; pelo que no segundo ano de mil e quinhentos e dezasseis, depois de ser o Nordeste vila, saíram no pelouro por juízes, este Francisco Afonso e João Pires, e por vereadores, Lopo Vaz e Henrique Afonso, e um Pero Gonçalves por procurador do concelho. Da qual vila, até uma ponta que se chama os Escalvados, que está ao noroeste, junto do lugar dos Mosteiros, é a compridão desta ilha, como dito tenho. Tem a vila do Nordeste uma freguesia do bemaventurado São Jorge, em que há cento e oitenta e dois fogos, e almas de confissão quinhentas e oitenta e quatro, das quais são de comunhão quatrocentas e quarenta e quatro, povoada de nobre gente, Costas, Afonsos, Manuéis, Correias, Carvalhos e outros nobres apelidos; cujo primeiro vigairo, sendo lugar, foi um Fernão d’Alvres, que caindo no mar, de um penedo junto da vila, das mais seguras pedras de pesqueiros que há naquela costa, por este desastre Ihe deu o nome que agora tem, Penedo do Clérigo, o qual em seu tempo serviu sem ter beneficiados.
O segundo vigairo, depois de feita vila, foi Aires Carvalho, sendo seu beneficiado João Luís, que também serviu de tesoureiro; ao qual Aires Carvalho, indo-se para Portugal, sucedeu por serventia um Álvaro Anes; o terceiro vigairo foi Pedreanes, irmão de Lopo Anes de Araújo, e teve por seus beneficiados o mesmo João Luís e Alvareanes; falecido Pedreanes, sucedeu por espaço de tempo Diogueanes, até que faleceu, caindo de uma ladeira da ribeira de Guilherme, tendo em sua vida por beneficiados os mesmos João Luís e Alvareanes e um Simão Vaz que com ele veio da cidade do Porto e para lá tornou depois, onde dizem ser cónego; em cujo lugar ficou Manuel Gonçalves, de Vila-Franca; e ido este, sucedeu Manuel Garcia, natural da mesma vila; e falecido João Luís, teve o benefício outro natural, Domingos Afonso, e neste tempo serviu Amador Furtado; em seus lugares sucederam Tomé Vaz, de Porto Formoso, e Vicente Pinheiro; e depois da morte de Tomé Vaz, Frutuoso Coelho; e falecido Alvareanes, António de Paiva, da Ribeira Grande; e em lugar de Vicente Pinheiro, o padre Diogo Fernandes, natural da mesma vila do Nordeste, e logo Baltasar de Paiva; e no de Frutuoso Coelho, Manuel Fernandes, da Ponta Delgada; e depois serviu um benefício novo, um Cristóvão Francisco, da mesma cidade, que agora está tresladado para ela, na igreja de São Pedro, da Calheta de Pero de Teves. Falecido Diogueanes, vigairo, houve a vigairaria Frei Francisco Diniz de Sousa, que serviu muitos anos, ao qual sucedeu Baltazar de Paiva, que era vigairo da igreja Matriz da Vila do Porto, da ilha de Santa Maria, depois de passado Francisco Diniz para o lugar de Santo António; assim que somente tem ao presente esta vila do Nordeste, vigairo e três beneficiados, tendo d’antes quatro. Foi primeiro cura nesta vila Manuel Fernandes e depois Manuel Roiz.
O primeiro capitão da ordenança de guerra foi Gaspar Manuel, que ainda é vivo e morador agora em Vila- Franca do Campo, feito pelo Capitão Manuel da Câmara; em cujo lugar sucedeu Jorge Fernandes que, por ser velho, foi depois feito por eleição terceiro capitão Baltasar Manuel. O primeiro alferes foi João Lourenço, o Moço por alcunha, por haver outro João Lourenço, mais velho, no tempo de Gaspar Manuel em que não havia sargento. E vindo a ser capitão Baltasar Manuel, saiu também na eleição, por sargento primeiro, João Afonso Correia, e por alferes segundo Pero Carvalho, que é filho do alferes passado João Lourenço; em cuja capitania, na dita vila e seu termo, pode haver cento e setenta homens de armas e já teve mais gente, porque antes do segundo terremoto que aconteceu nesta ilha, tinha ela e seu termo duzentos e vinte vizinhos.
É terra de pão e algumas criações, e mato de boa madeira, principalmente de cedros, em que alguns de seus moradores têm boa granjearia. As peles do gado cabrum são ali mais estreitas que de toda a ilha, por causa das ladeiras e grotas em que as cabras pastam e comem os ramos de alto dependuradas, alevantando sempre a cabeça para as partes altas onde os acham, principalmente agora, depois que pelo segundo terremoto se cobriram os pastos de pedra pomes, não comem senão rama. Com o incêndio do segundo terremoto que disse, se cobriu toda aquela comarca de cinza e pedra pomes, em muita altura, que como o vento, quando abriu a terra, era ponente, foi causa desta pedra pomes, que do centro saiu e se alevantou no ar, com a força do fogo, correr mais para aquela banda e fazer ali mais dano caindo sobre ela; mas os moradores e senhores das fazendas tiraram logo muitas ribeiras de água, com as quais, não com pequeno trabalho, as limparam, de tal maneira, que agora se recolhe, cada um ano nesta vila e seus termos, até seiscentos moios de pão, e cada vez ao diante se irão recolhendo mais. Era terra muito delgada, mas com a invenção do tremoço com que a outonam, engrossou já tanto que é tida em muita conta; não tem outras mais granjearias que as ditas, para sustentar seus moradores, e, se se faz algum pastel, é pouco. Serve-se de toda a ilha por batéis e barcos e carregam de trigo alguns navios no verão e outros tempos do ano. Tem da banda do sul porto limpo para ancorar, mas muito trabalhosa serventia para batéis e carros, por uma ladeira de um comprido lombo íngreme e defensável de imigos e cossairos, que só por ele podem subir, por ser aquela parte desta ilha, por todalas bandas do mar, de altas e talhadas rochas bem cercada; e da parte da terra, de ásperas e umbrosas serras e sarrados matos, donde as sobreditas águas continuamente estão correndo; mas, se por causa das serras e porto, a vila está segura, não está o mar daquela costa, por andarem muitas vezes cossairos espreitando e esperando os navios que vão para fora e doutras partes vêm para esta ilha, por todos irem demandar o alto morro que está perto dela, que é, como disse, a primeira coisa que se vê, quando vêm do oriente.
Tem esta vila somente um termo, que é o lugar da freguesia de São Pedro, pela costa do norte, como direi quando dela falar adiante. O porto desta vila está distante dela quase um quarto de légua, para a banda do sul e, pela volta que a terra vai fazendo, fica fronteiro ao leste. Dali vai correndo a costa de alta rocha ao su-sudoeste, por espaço de um tiro de espingarda, até uma ponta, pouco metida no mar, chamada de uma mulher que ali morou a Ponta da Marquesa, ficando atrás em uma lomba uma ermida de Nossa Senhora de Nazaré e uma lomba de Gaspar Soares, porque foi de um homem assim chamado, por onde corre uma ribeira, chamada a ribeira da Ponta, por ter uma, ou por morar ali um Diogo da Ponte, da qual vai descendo até ao mesmo porto da vila do Nordeste. Da Ponta da Marquesa corre a costa tanto como meia légua ao sudoeste, passando pela lomba de Rui Garcia e pela lomba do Meio, donde corre uma ribeira, do Trosquiado, um homem assim chamado, porque se trosquiava sempre e não deixava crescer o cabelo, que chamam Lomba do Meio, por estar entre a de Rui Garcia e a lomba e ribeira dos Cambos; entre a ponta da Marquesa e a dos Cambos faz ali a terra uma grande baía de meia légua, que tem uma praia de areia, a que chamam as Prainhas, onde se acolhem os navios das tormentas e ventos su-sudoeste, sudoeste, oeste e noroeste; e para todos estes ventos e quase todos os outros, tirando o norte e sul, é este muito bom porto e limpo e seguro abrigo; onde também está uma fajã de terra de pão, de António Afonso, senhor do Lombo Largo, sogro do licenciado António Camelo; e logo adiante uma ponta, que se chama o Lombo Gordo, onde é o topo da ilha, como um cunhal dela, que se chama Topo ou Morro do Nordeste, que estará de Água Retorta um quarto de légua. Na rocha da ponta do Lombo Gordo nasceu uma árvore tão grande como uma romeira, que nunca se pôde saber que árvore era, nem de que espécie, a qual tinha as folhas como de pau branco e de cor de ouro, e dava umas maçãs de pau, como bugalhos, que regoavam; por cuja causa chamavam dantes àquela ponta ali a Árvore Formosa, que durou naquela parte muitos anos e já é consumida.
Logo adiante, corre uma ribeira, que se chama dos Cambos, chamada assim porque não se podendo descer um homem que ia por ali perdido, fez uns cambos de pau, com que desceu ao calhau pela rocha abaixo. Mais adiante está uma ponta ao mar, pequena, onde está uma fajã de Francisco Fernandes, sogro que foi de Matias Lopes de Araújo, da vila de Água do Pau; da qual fajã até à ponta de João da Costa será uma légua, ao pé da qual está outra fajã de moio e meio de terra de pão, do mesmo João da Costa, filho de João Afonso.
Dela para trás vai virando a terra para o nordeste, tudo em rocha mui alta, onde não há mais que duas descidas abaixo ao calhau, onde se chama a Água Retorta, e duas ribeiras, uma chamada do Arco, porque furou a terra para ir para o mar e ficou um arco nela, e outra se chama a ribeira de Água Retorta, porque se vai retorcendo em voltas. Ali na terra, em cima daquelas altas rochas, está um ajuntamento de moradores, até dez casais, da freguesia do Faial, onde entre eles tem sua fazenda João Roiz Cordeiro, cidadão de Vila Franca do Campo.
Daí para o sul, que será mais de quarto de légua, corre a costa ao noroeste, fazendo uma enseada ou baía de mais de meia légua, antre a ponta de João da Costa e outra que está logo além do Faial; estando depois da ponta de João da Costa uma altíssima rocha, direita ao prumo e talhada, que dizem ser a mais alta de toda a ilha, que se chama o Bode, por cair algum dela abaixo, donde caem também pedras , que mataram ali um moço e feriram dois, que por baixo passavam; e, para contar isto melhor, somente ao longo da costa, digo que da vila do Nordeste, correndo rocha alta, ao porto da dita vila, que é desembarcadouro em penedia brava, e uma calheta em que somente cabe um barco, há mais de dois tiros de escopeta, e do dito porto pela costa adiante, até chegar à costa do sul, tem muitos e bons surgidouros.
Do porto há, outro tanto espaço de rocha alta, uma grande e alta ponta, chamada da Marquesa; da Ponta da Marquesa vai fazendo a rocha uma enseada, de compridão de uma légua, até ao Morro, que é uma alta rocha, como cunhal da ilha, testa do Lombo Gordo, dentro da qual enseada, toda cercada de penedia, ao lível do mar, meia légua, quase no meio dela, vai beber no mar uma ribeira, que somente corre no inverno, chamada dos Cambos; além da qual ribeira, contíguo com ela, está um pequeno areal, de areia miúda e preta; e logo vão umas fajãs pequenas, que dão trigo e pastel, até entestar com o Morro já dito.
Este Morro é uma soberba serra que se chama o Lombo Gordo, que vai morrer e acabar em uma rocha muito alta, da banda do levante, chamada dos mareantes o Morro ou Topo, em que bate o mar uma légua da vila do Nordeste; e o mesmo Morro vai pela terra dentro, e crescendo cada vez mais, e alevantando-se até ao Pico da Vara, que é o mais alto monte da ilha, que por outro nome se chama toda aquela serra alta dos Graminhais, ao pé dos quais está a Lomba de São Pedro e a Algarvia, da banda do norte, e o Faial, e a Povoação Velha, da banda do sul.
Do qual Morro para diante, vai voltando a costa, de alta rocha e calhau grosso e miúdo, a lugares ao lível do mar, onde quando o mar se embravece chega ao pé da dita rocha meia légua até ao passo que se diz da Gorda, por passarem por cima de uma ponta de pedra, alando-se por uma corda de uma banda para outra. Junto do qual passo, quase apegados com ele, estão dois penedos altos, de modo de pedra queimada, que chamam os Ilheusinhos, onde há um bom surgidouro, o melhor que há por aquela banda do norte, dali até à Maia.
Dos Ilheusinhos, correndo a rocha alta e calhau ao longo do mar, pela mesma maneira dita atrás. até espaço de meia légua para o sul, está uma boa fajã de Simão da Ponte, com caminho de pé e de bestas, pela rocha arriba, que dá bom pão e pastel; junto da qual fajã, um tiro de besta, dobrando já a costa para a parte do sul, está uma grota chamada a Grota Funda; e apegado com ela, um tiro de pedra, está uma fonte de tão grossa água como a coxa de um homem, que nasce em meia rocha, ao pé de uma fajã pequena; acima da qual fajã e da outra atrás dita está uma povoação de gente, de até dez ou doze casais, que se chama Água Retorta, por respeito da fonte que pela rocha cai em voltas, e são da freguesia do Faial.
D’Água Retorta, que parte com o Lombo Gordo na banda do ponente, se começa o termo de Vila-Franca, porque ali fenece o do Nordeste; e dali para o ponente vai começando a costa do sul, correndo a rocha direita e mui alta, e tão íngreme que em muita parte dela não poderão andar cabras, ao lível com o mar, de calhau miúdo; ao pé da qual rocha, além meia légua, está uma fajã grande de Baltasar Manuel, de até dois moios de terra, muita parte da qual semeia de pão e a mais ocupada de mato, urze, murta e faia; e correndo a mesma rocha para loeste, a modo de enseada pouco curva, por espaço de um tiro de espingarda, está na mesma rocha uma veia de pedra branca da largura de oito côvados, desde o pé da rocha até o meio, que será altura de tiro de um bom berço, que se chama o Risco do Bode, que outros chamam Risco do Manaia, pelo ele ver, vindo do Reino para esta ilha, em tempo de cerração, sem ter vista a ilha, e pela brancura do Risco, julgar ser a ilha; e indo a descobri-la junto da costa, donde depois dizia o mesmo Manaia, vindo do Regno:— levo pela proa o Risco do Faial; e tão bom piloto era nesta travessa, que assim o fazia como dizia.
Ao pé do qual Risco, ou vieiro de pedra, nasce uma fonte pequena, de boa água doce; deste Risco branco caem muitas vezes pedras em tempo de chuva, com que correm muito perigo os que por ali caminham pelo pé daquela rocha; do qual Risco até às Formigas que estão ao su-sueste, há dez léguas, demorando-Ihe o Risco a elas ao nor-noroeste. Deste Risco branco corre a rocha direita ao noroeste, assim altíssima por espaço de um tiro e meio de escopeta até ao Faial, com uma baía que ali faz antre as duas pontas já ditas, no meio da qual está o dito lugar do Faial, situado em uma aberta, antre uma grande ribeira, da banda do oriente do lugar, logo passada a Rocha do Bode, ao pé dela, e uma levada que dela sai da parte do ocidente, com que moe um moinho, de que se servem os moradores do mesmo lugar do Faial, assim chamado por ser antigamente aquele vale coberto de muitas faias e altas, com raras sombras de brandos vimes, e outras espessas de verdes árvores, regadas não somente com a ribeira e levada, mas com muitas deleitosas e claras fontes que das ladeiras daquela montosa terra se vêm meter nelas até se misturarem suas doces águas com as salgadas do mar vizinho, em um bom porto que tem, pelo qual sobe muito pescado pelas correntes da ribeira acima, além da grande quantidade de eirós, que ela em si cria, das quais coisas todas está o lugar tão bastecido, como das muitas faias de que tomou o nome, o qual já é termo de Vila-Franca do Campo, de quem ela elege, a seus tempos, homens que a governam. Tem uma igreja, da invocação de Nossa Senhora da Graça, cuja festa principalmente se celebra a oito dias de Setembro; terá toda a freguesia trinta e sete fogos e almas de confissão cento e catorze, das quais são de sacramento oitenta e oito, e já teve mais; cujo primeiro vigairo foi um Rodrigo Anes Barabam, alcunha imposta porque, quando dizia a Paixão, só este vocábulo Ihe entendiam; o segundo, um frade francês, da Ordem de S. Domingos, a que não soube o nome; o terceiro João Afonso, que depois foi vigairo da Fajã; o quarto, Jorge Fernandes, o Damão; o quinto, Belchior Manuel; o sexto, Amador Travassos; o sétimo, Amador Furtado; o octavo, Roque Coelho de Medeiros; o nono, Manuel de Magalhães; o décimo, Hierónimo de Brum, bom sacerdote que agora serve. Além do que tem de renda, possue também um rico pomar de muitas fruteiras, principalmente de árvores de espinho, de muitas laranjas, cidras, limas e limões de talhada e de sumo, que têm pelos melhores da ilha; o qual Ihe deixaram os antigos e nobres moradores, de que descendem os do presente tempo. Dista do Nordeste três léguas, e alguns moradores deste caminho são desta freguesia; e ainda que o porto é mais que de serventia de batéis, poucas vezes surgem nele navios, por não servir para abrigo, nem ter carregação alguma. Os vizinhos dele, que são nobres e ricos, lavram pão e algum pastel; e tudo é muito bom, mas abasta para pouco mais que para seus moradores; tem madeira, que alguns granjeiam e mandam vender a caixeiros, a Vila-Franca e à cidade.
Está este lugar assentado em um campo de oito até dez moios de terra, cercado de montes, quase de meia légua de altura de todas as partes, senão do sul, donde fica o mar, o qual campo parece que em algum tempo foi mar e com enchentes se atupiu de terra.
No monte, da parte do oriente, está a roça de Pero de Freitas, onde roçam mato para semearem pastel e trigo; descendo dela para a banda do sul, está uma grota que se chama o Campo dos Alhos, porque havia ali muitos bravos, a qual grota, em tempo de inverno, toma muita água e toda corre para o Faial, com que dá muito trabalho aos moradores dele; e apegado com a grota, da banda do mar, fica o Pico Alto do Bode, que já disse, de criações de gado, e rocha mui alta de pedra vermelha, queimada, como coisa que em outros tempos ardeu; e dela caiem as pedras que disse, no caminho que vai do Nordeste e Água Retorta, ao longo do mar, e da fajã de João da Costa, que será de moio e meio de terra, e dá trigo, pastel e cevada, e criam-se nela muitos coelhos.
No Faial, vem da serra pela banda do nascente a grande e formosa ribeira que cria muitos eirós, pela qual com o mar bonança entra muito pescado e já por ela entraram batéis até um poço que teve vinte e cinco palmos de comprido e outros tantos de largo e está tão longe do mar como um jogo de barreira, e pelo meio do campo vai a outra ribeira da mesma serra, de muito boa água; e antre uma ribeira e outra está a igreja e alguns casais e benfeitorias de pomares, hortas e latadas, e o mesmo está bem ao pé da serra onde nascem as ribeiras, as quais saem com suas bocas ao mar e quando crescem com as invernadas e força das águas, enche tanto a do Campo dos Alhos, que se ajunta com a outra e dá tanto trabalho ao povo que quase alaga todo o lugar; e o campo por algumas partes, dá bom pastel e trigo.
Indo para o ponente pela terra, se sobe uma grande ladeira, quase de meia légua de subida, até chegar a uma roça que se chama o Saragaço, por criar n’algum tempo esta erva, ou porque é fria por ser muito alta e os ventos estragarem ali tudo e só servir para criação de gado. Subindo mais acima está um pico, que se chama o Pico da Cruz, onde está uma, arvorada, por onde partem os limites da Povoação e Faial, do cume do qual se descobre muita parte do mar e da terra e dali descem para a Povoação Velha, que está do Faial meia légua.
Todas as serras por cima daquelas rochas, de uma e doutra parte deste lugar, são criações de gado vacum e cabrum onde também há porcos monteses; e poucos tempos há que por ali se deixavam tomar pombos torquazes com laços que Ihe lançavam nos pescoços, sem eles fugirem da gente, como se tomavam no tempo antigo, logo quando esta ilha foi achada.
Tomavam também muitos com laços que Ihe armavam nos carreiros dos carros em que se tira o trigo para as eiras, do restolho; donde se fazem algumas searas por entre aqueles matos que são ventoreiros e se tornam muito algumas vezes das muitas névoas que ali caem.
Os primeiros habitadores do lugar do Faial foram João Afonso, o Velho que das Grotas Fundas, junto da Ponta da Garça, onde seu pai povoou primeiro, foi ter ali com outros seus irmãos, Sebastião Afonso, e Diogo Afonso, o Moço; e os filhos dele e seus genros, todos, gente principal e nobre, fizeram nobre aquele povo. O filho mais velho de João Afonso se chama Gaspar Manuel e outro Baltasar Manuel. O Gaspar Manuel casou com Clara Afonso, filha de Salvador Afonso, da vila do Nordeste, de que houve três filhos, que estão casados, dois em Vila-Franca com duas filhas de Sebastião Jácome, morgado que foi de seu pai, e outro ainda solteiro; o Baltasar Manuel casou com Breatís Vaz, filha de Martim Vaz, homem rico, principal do Nordeste, de que houve dois filhos, que estão casados na vila de Água de Pau. O Sebastião Afonso, irmão de João Afonso, o Velho, casou, em Vila-Franca com Constança Rafael, de que houve três filhos e duas filhas, todos ali casados, no Faial. E Diogo Afonso, outro irmão de João Afonso, o Velho, casou no mesmo Faial com Breatís Gonçalves, de que tem uma filha, por nome Francisca Jorge, casada com Pero Cordeiro. E João Afonso, o Moço, terceiro irmão , de João Afonso, o Velho, casou na vila de Água de Pau com Brázia, Vaz da geração dos Fagundos, de que houve onze filhos, entre machos e fêmeas; os mais deles são moradores no Faial, um dos quais é Baltasar Fagundo, vigairo de S. Lázaro, termo de Vila- Franca; e sua filha é também Constança Afonso, mulher de Bartolomeu Jácome, morador na vila da Ribeira Grande, que sucedeu no morgado a seu pai, Sebastião Jácome. Afora Gomes Fernandes e outras pessoas nobres que povoaram e povoam o dito lugar do Faial.
Este lugar do Faial, como disse, está em uma aberta ou vale, antre dois picos, sc. o pico que está da parte do oriente, por onde vão do lugar para a rocha do Bode, e o Pico da Caldeira, por ter no meio uma alagoa de água, como caldeira, que já secou, depois que para fazerem sementeiras foram roçando aquelas terras os donos delas. Acima da qual rocha do Bode estão umas terras, que se chama, uma parte Atalhada e outra, o Perú; delas de pão, e algumas de criações, são dos herdeiros do dito João Afonso e outros, sc. o Pico Grande e o Labaçal, de Sebastião Afonso e seus herdeiros; e outras, de Diogo Afonso, chamadas as Lombinhas e o Poço, apegadas ao Sargaço, que os vizinhos dali chamam Sarragaço, que é um pasto de erva comprida e verde, que está arriba do Pico da Caldeira, dentro pela terra, partidas desta maneira.
De Água Retorta, donde agora mora João Roiz, pessoa nobre, até o Faial, pela terra dentro, estão estas fazendas:—junto de Água Retorta, está o Lombo dos Bardos e o Juncal e Roça Grande, em cima da rocha, e a Fajã do Calhau, ao pé da rocha, junto do mar, e a Fajã do Louro no meio da rocha, que dá muito pastel, e a Rocinha que está sobre o lugar do Faial, dependurada em cima da rocha, e outra fazenda, que se chama a Lapa, terra que também dá trigo, e outra chamada o Guindaste, dependurada sobre a ribeira que corre ao lugar; e arriba dela a Couvinha, que dá também novidade e tem criações, e outra que se chama, as Quebradas, acima da Couvinha, ao longo da mesma ribeira, onde há muitas comedias de gados e muitas frescas fontes; e outra fazenda, terra chã, mais acima, que dá pão, chamada os Moios das Quebradas; e logo acima outra terra de comedia de gado, que por ser mais alta se chama a Cumieira. Todas as quais fazendas, que serão uma légua de terra, partindo com Francisco Fernandes, sogro de Matias Lopes, até o lugar do Faial, foram de João Afonso, o Velho, e agora são de mais de vinte e cinco seus herdeiros, que partem pela banda do norte com os herdeiros de Domingos Afonso, sogro do licenciado Bartolomeu de Frias.
Passado o lugar do Faial, por riba, pela serra, vão continuando as terras de criações do dito Domingos Afonso, de Rosto de Cão, que são Cú de Judas, por ser lugar remoto; e outra lomba, chamada a Lomba da Erva e o Espigão do Caminho, ao pé do Pico Verde, donde nasce a ribeira principal do Faial e outros ribeiros, como é o Labaçal; e outra do Espigão, de Francisqueanes, e outra do Cerrado da Feiteira, e outras que vão dar nela.
Logo partindo com Domingos Afonso estão para a parte do ponente as terras de criações de Pero Roiz Cordeiro, de Vila-Franca, e de seus herdeiros; cuja fazenda é o Cerrado do Labaçal, que é pelas Lombinhas e logo parte com ele João Afonso, o Moço, onde tem o Pico das Cabras e o Pico Longo, até sobre a cumieira da Povoação; e após esta ribeira do Sargaço, parte Nuno Gonçalves, filho de Domingos Afonso e tem ali terras, que chama Perú. E logo além, parte com Nuno Gonçalves, outro herdeiro, que se chama António Fernandes, cujas terras chamam Atalhada e o Cerrado dos Cortiços; e com António Fernandes, da parte do sul, Sebastião Afonso, terras que se chamam o Pico Grande e o Cerrado das Silvas, e outra lomba, chamada o Touril; e mais chegado para o mar, perto do Sarragaço, tem Diogo Afonso a Lomba do Paço, que vai partindo com o Pico da Caldeira, acima do qual está o Sarragaço. Assim que está o lugar do Faial antre os dois picos altos, o da banda de leste não dá pão, mas é terra de criações, e o da parte do ponente dá muito trigo e algum vinho nas ladeiras; e com isto e com o pomar muito grande que está em cima do lugar, pela terra dentro, no cabo da fajã, de muitas árvores e frutos de espinho, que os antigos moradores deixaram para os vigairos do lugar, que pelo tempo fossem, está este lugar muito fresco.
Logo com Diogo Afonso e Sebastião Afonso, do Faial, subindo para o Pico da Caldeira, é aquela subida de Mateus Dias, da geração dos Jorges, que descenderam de Jorge Velho, dos primeiros povoadores desta ilha. E descendo do mesmo Pico da Caldeira, donde se chama a Lomba do Alcaide, está a fazenda de João de Arruda da Costa e de seus herdeiros, que é muito grande, da ribeira de Santa Bárbara, com todo o lugar do mar à serra, onde agora prantam muitas vinhas. Além da lomba do Pumar, e abaixo do Pico do Louro, em outra lomba, chamada do Cavaleiro, sobre a Lapa; as quais lombas todas são na Povoação Velha, da fazenda de João de Arruda, que descendeu dè Gonçalo Vaz, o Grande, e de seus herdeiros, que agora as aproveitam melhor que os antigos, prantando nelas pumares e muitas vinhas que dão o melhor vinho da ilha. As partilhas das quais terras não conto, nem contarei mais outras em particular, por evitar prolixidade. E entendei, Senhora, que pela ordem que contei as ditas, estão mais por dizer em toda a ilha, que são de diversos donos e têm diversos nomes, assim os picos e as terras, como os senhores delas. Só em soma irei apontando alguma vez alguma coisa destas, brevemente. O caminho por esta parte será uma légua do Faial à Povoação Velha; é espaço fragoso e trabalhoso. Mas, tornando ao que ia contando, pela costa, ao longo do mar, onde, fazendo uma grande baía, corre a costa ao noroeste, dali se torna a correr ao sudoeste, até uma pequena ponta que se chama a Cagarra, por se haver visto ali alguma destas aves. Naquela ponta está uma fajã, de até doze alqueires de terra, que dá muito bom pão; e dali torna a correr ao noroeste até à ribeira da Povoação. E logo saindo do Faial tem a terra uma ponta que sai pouco ao mar e antes de a dobrar está um passo, onde bate o mar na rocha, que é causa de se não poder passar por ali mais adiante. E todo o mais caminho é de calhau, até junto da Povoação, em que está um areal tão grande, como uma boa carreira de cavalo; com que fica também o caminho de uma légua, ao longo do mar, se o passo, que tenho dito, desse lugar para caminhar por ele, ao pé daquela rocha tão alta.