Esta ilha de São Miguel, pela sua compridão de dezoito léguas dentro em si é muito fértil e cria toda a maneira de prantas, e pelas duas enseadas, que tem da parte do sul, e outra da banda do norte e pelos seus altos montes, a quem a vê de ambas estas partes atravessada, e melhor da banda do norte que do sul, está parecendo às vezes duas ilhas, porque, pelas duas enseadas que a fazem estreita no meio, a largura é uma légua, que é da vila da Alagoa, da banda do sul cortando ao norte, até o lugar de Rabo de Peixe, por não haver neste caminho muitos altos montes, parece que se corta e divide em duas, aparecendo o mar de parte a parte, sem se ver a terra baixa do meio, porque, na cintura dela, pelas faldras é baixa, ainda que montuosa em toda a sua compridão. E, quando se achou, era toda cheia de arvoredo, de que agora já está quase calva por muitas partes dela, ainda que por outras, em algumas serras, tem muita lenha seca e verde e muitas árvores de diversas maneiras, como são cedros, sanguinhos, faias, louros , ginjas e azevinhos, urzes, tamujos, uveiras, pau branco, cernes e alguns teixos, que já se vão acabando por serem muito prezados e buscados para deles fazerem ricas mesas e bordas delas, cadeiras e fasquias para ricos escritórios, que com eles se guarnecem e já agora se ajudam com outros teixos trazidos da ilha do Pico, onde há muitos, e sem eles suprindo em seu lugar, para as bordas e fasquias, o sanguinho que é também singular pau para isso. Às vezes parece esta ilha três ilhas, porque a altura do Morro do Nordeste, com seu lombo, parece uma e o Vulcão alto que está sobre a Alagoa e Água de Pau, figura outra, e a alta encumeada das Sete-Cidades parece outra. Pelo meio dela toda corre uma corda de serranias, em algumas partes de picos altos e fragosos que demandam as nuvens, e em outras, montes baixos e outeiros; e, quando cursam os ventos do norte, sul, nordeste, e alguns outros com fúria, fazem nela grandes perdas, principalmente nas árvores, frutas e searas, que se não foram tormentas destruidoras dos frutos que ela abundosamente produz, parecera e fora deleitoso horto terreal. Mas, por estar muito descoberta a estes e a outros ventos, é mui escaldada, posto que por antre as serras tem alguns vales e baixos de grotas abrigados, e nas faldras das serras, algumas ladeiras e terras chãs, onde os moradores fazem suas sementeiras, principalmente de trigo pelado, centeio, cevada e pastel; e nos altos pastam seus gados em bons pastos, que havia dantes e há em toda ela, porque no lugar a que não chegou a pedra pomes e cinzeiro que caiu no tempo do segundo terremoto, ainda os pastos são como sempre foram de muita erva milhã, pé de galinha, balanco, azevém, sargaço, que outros chamam saragaço, trevo e trevina, para os porcos, alfacinha, feito, dentabrum e cabelinho, que serve como lã para colchões e o pé para comer, como palmitos e outras muitas sortes de diferentes ervas, musgo e grama, que é erva pequena, baixa e rasa com o chão E onde alcançou e cobriu cinzeiro e pedra pomes, já agora cria uma erva que se chama solda, que se quer parecer com erva ussa, mas cresce mais alta e comprida, e é sempre verde, proveitoso pasto para o gado, além de o ser também a rama das árvores do mato, de pau branco e de outras, especialmente a do azevinho que é mais prestadia, a qual por ser alta Iha cortam os pastores, e outra rama de louro, que alcança o gado ao dente, por ser mais baixa, de que há maior quantidade e abundância; mas, a rama da ginja, de Março por diante, na serra e em terra de mato sombria, o faz ourinar sangue. Há feito molar, que é também no Verão bom pasto para o gado, com os quais pastos, há dele grande criação, cuja carne é mais gostosa, a que se cria em pastos escalvados e descobertos ao sol, que a dos lugares sombrios antre matos e arvoredos; e toda, uma e outra, melhor e de mais gosto que a da ilha de Santa Maria e Portugal, e as reses têm mais força e sofrem mais trabalho. As árvores, que aqui tornam a arrebentar, são faias, se Ihe não tiram a casca, uveiras, urzes, louros, tamujos, murtas e ginjas, cortando o tronco, que do pé lançam muitas e muito altas vergônteas, que são árvores agrestes, que dão um fruto tão grande e vermelho como ginjas, mas ao gosto são azedas, e o sanguinho dá outro fruto como cerejas, muito doce, que embebeda. Na ilha de Santa Maria, que parece um torrão de terra da que em Alentejo serve de criar gado, são os carneiros melhores e mais gostosos por causa do pasto, que é de massapez muito seco, e de natureza do carneiro é ser húmido, pelo que, comendo pasto seco, se tempera uma coisa com outra e faz a carne muito boa; o que não tem a carne de cabra que é mais somenos e desgotosa, por ser o pasto seco e a cabra de sua natureza seca. Isto mesmo se acha no Regno de Portugal e Castela, onde os carneiros têm os pastos secos, são bons e de extremado gosto, e os chibarros não tais; o que não se vê nesta ilha de São Miguel, onde os pastos são mui verdes e a carne do carneiro não tem tão bom gosto, nem é tão boa, e os cordeiros também não muito bons, mas os cabritos mui gostosos e de bom sabor, e a carne de cabra nova, muito boa, pelo que se usa aqui da carne dos chibarros, cortando-se nos açougues, parte do mês de Abril e todo o mês de Maio e o de Junho. A carne de vaca da ilha de Santa Maria é mui seca e desgostosa e, muito gorda, toda é acompanhada de cevo em lugar de gordura, por causa do pasto seco; e nesta ilha de São Miguel é muito boa por os pastos serem verdes e frescos.
Dizem alguns que aqui os cabritos, criados com as mães, em lugares solitários, de tal modo que uma cabra não ande em companhia de outra, se fazem muito mais gordos e melhores, por ser a cabra, de sua natureza agreste e solitária, afeiçoada só, o que não tem a ovelha que, andando só, cria mal o cordeiro, por ser de natureza saudosa, o que parece ter alguma razão; mas eu cuido ser também causa de se criar melhor a cabra por comer mais à sua vontade, andando sem companhia que a ajude, pois estando acompanhada Ihe cabe menor parte do mantimento, principalmente sendo muitas juntas; por esta razão não criam tão bem as que andam em manada, como as que estão apartadas, pois claro se vê que, a que anda só, está de posse de todo o pasto e come à vontade, e a grande manada junta, em pouco tempo despovoa a comida de largos campos e, se as não mudassem dali, se perderiam à fome. Por isso dizem os pastores que mais criam cem cabeças de cabras em mediana e honesta criação que sendo cento e cinquenta, porque sendo muitas comem o pasto umas às outras, e não podem criar os cabritos nem a si mesmas, e os que criam são muito magros e morrinhosos e morrem muitos deles, mas sendo poucos, logram-se muito bem os cabritos e elas. Muitos homens procuram ter esta criação de cabras nesta ilha, por haver muitas silvas nela, que é seu mais principal pasto, e também pela necessidade que há das peles para calçado; e no tempo antigo se costumava matarem-se os chibarros nesta terra capados, por ser a carne deles assim melhor para comer. Chamavam-se crestões por serem castrados, mas depois vieram a entender que não era a coirama tão boa dos capados como dos outros por capar, por serem as peles delgadas como de cabra. Haverá quarenta anos, pouco mais ou menos, que já os não matam capados, por antes quererem melhor o coiro que a carne, pela muita necessidade que há de calçado, com o costume que corre nela de trazerem todos botas; pelo que se vê a grande criação que há deste gado nesta ilha, pois, não havendo nenhum homem que não traga botas, se pode quem quer espantar de poder a terra criar tanto para prover a tantos.
Acerca do qual gado e de sua criação, ainda que nos animais que têm unto, não tenha este segredo que agora direi, o tem nos que têm cevo; pelo que é de notar que, desde a ribeira de Dispe-te que suas — até o lugar de Rabo de Peixe, tanto pelo meio da terra, como pela faldra dos montes, da banda do norte, todo fato de gado, ou cada rez, que por tempo não é mudada no ano duas vezes, ou ao menos uma, do pasto em que anda para outro da banda do sul, corre muito risco de morrer, porque adoecem de disenteria
ou corrença e vêm-se a desfazer tanto das carnes que morrem; e do lugar de Rabo de Peixe, cortando ao sul ao lugar de Rosto de Cão, para diante até aos Mosteiros, com todo o termo da cidade da Ponta Delgada, nenhuma doença sentem e nenhum dano recebem, nem os mudam por respeito disto. Também no Nordeste até à ribeira de — Dispe-te que suas — é da mesma maneira, nem têm doença, nem morrem os ditos gados, nem há necessidade os mudar; assim que nos cabos desta ilha, que é no nascente e no ponente, está sabida esta experiência e tem os pastos ou terra esta virtude de não se tomarem os gados deste mal nem morrerem, como no meio da terra, da ribeira de — Dispe-te que suas — até Rabo de Peixe em toda esta compridão e largura da ilha e espaço do meio. E da banda do sul, começando de Água Retorta, até partir com o termo da Ponta Delgada, que é até os biscoutos que estão além da casa de Cristóvão Soares, contra o lugar de Rosto de Cão, se tomam também os gados deste mal e morrem, se os não mudam, o que não faz aos bois e vacas que correm nas terras feitas, que estes adoecem poucas vezes, e os do mato muitas. No princípio da povoação desta ilha se tomavam mais gados e adoeciam de corrença e criavam na língua muitos sapos que são umas empolas pequenas como grãos ou chícharos, quando mais gorda estava a rez. Logo quando se começaram a criar gados nesta ilha, um Fernão d’Afonso de Paiva, avô de Francisco Pires da Rocha e de Pero de Paiva, homens principais, moradores na vila da Ribeira Grande, teve no Morro da dita vila onze moios de terra de mato, como então toda era, e criando na dita terra do Morro, Ihe morria a maior parte do gado, sem ele alcançar a causa disso; mas vendo que no lugar de Santo António e nas Capelas e Bretanha, como mais para o ponente, da parte do sul, se criavam gados sem receberem o tal dano, se tirou da terra do Morro, vendendo-a e houve muita criação em Santo António, onde criou seu gado, sem receber nele dano nem perda, ainda que seus herdeiros a receberam muito grande em ele se tirar dos onze moios de terra do Morro, que agora são como um condado de grande rendimento, da qual terra ele não entendeu então o proveito a que podia montar e montou depois. Mas já agora, do segundo terremoto para cá, não se tomam os gados de mal nenhum, ainda que não se mudem como soía; dizem e parece ser a causa disso a muita pedra pomes que cobriu os pastos, sobre a qual o gado anda e se deita, e assim anda são, porque é quente e amiga da natureza. Dantes andava em lameiros e poças de água que havia entre o arvoredo muito alto, porque logo depois do segundo terramoto, em que caiu a pedra pomes sobre os pastos da erva, não comia o gado senão rama que Ihe cortavam das árvores altas, por ainda não arrebentarem seus troncos, encravados na pedra e cinzeiro, com a rama nova; e tão acostumadas estavam as reses ao cortar dos ramos que, perdendo um homem um novilho, buscando-o sem o poder achar no mato, Ihe disse um pastor que logo o faria vir ali, ainda que não o via nem sabia dele parte; e subindo-se sobre uma alta árvore, porque não tinha machado nem instrumento com que cortar rama, começou a dar nela porradas com um pau, como quem a cortava, ao qual tom acudiu logo muito gado, como tinha de costume acudir à rama que Ihe cortavam os pastores, sem então Iha cortarem, e antre o outro, veio o novilho que o homem não achava, que cobrou pelo ardil e engano proveitoso do discreto pastor, com que achou e restituiu o perdido a seu dono.
Está no princípio da ilha, da parte do oriente declinando para o norte, um grande e alto pico chamado da Algaravia, porque foi de uma mulher deste nome, natural do Algarve, que ali morou com seu marido alguns anos, e depois deles viveram outros muitos; e para a banda do sul, outro monte, muito alto e largo, que se chama o Lombo Gordo, que está sobre as ribeiras, uma de Trosquiado, mais junto da vila do Nordeste, e a ribeira dos Cambos, logo adiante, e a ribeira do Arco, que logo se segue, no Espigão Rachado, que todas nascem do dito pico. Na faldra do mesmo Lombo Gordo está situada a vila do Nordeste. Mais adiante está outro pico muito alto, chamado o pico de João Bartolomeu, por ser de um homem rico, deste nome. Logo adiante outro, dito pico do Morrão, porque tem um morro e quebrada grande, e pegado com ele, está outro pico, que se chama o Caldeirão, por ter uma cova de feição de caldeira, no meio. Mais adiante está o pico Verde, por maior parte do ano estar vestido desta cor e ter bom pasto de erva. E logo o altíssimo pico da Vara, da causa de cujo nome há diversas opiniões; uns dizem que passando um meirinho por ele e deitando-se a dormir, depois de acordar Ihe esqueceu ali a vara, aonde depois a foi buscar, ou foi achada de outros, ficando ao pico em que se achou o nome de Pico da Vara; outros dizem que um homem chamado Estêvão Chainho, dos primeiros povoadores do Nordeste, indo caçar às pardelas ali, estando no alto dele, fincou no chão uma vara que levava como aguilhada; outros dizem que tem este pico três nomes: a parte dele que está sobre a vila do Nordeste se chama Pico da Vara por ser muito alto e comprido, como vara, e por estar junto do Topo do Nordeste, que é a sua faldra na ponta da ilha, da banda de leste, onde é mui alto e a primeira terra em que os mareantes, que vêm do levante, topam a vista, se chama Topo do Nordeste; e porque vai correndo pela encumeada, para a banda do ponente, ao lugar das Furnas, até o pico Redondo, onde descem à Povoação, se chama os Graminhais, porque até ali há sempre grama, erva baixa e rasa, com que está verde todo o ano; dali por diante não há grama; que é tão alto que de cima dele se descobre a ilha toda cercada de mar, vendo-se suas salgadas águas que a rodeiam em torno por todas as partes dela, do meio do qual nascem três grandes e formosas ribeiras: a primeira e a maior que há na ilha vai pela Povoação Velha entrar no mar do sul; a segunda, para o levante, chamada a ribeira do Guilhelme, declinando ao Nordeste; a terceira, da Mulher, para o norte; e por ser tão alto, é muito ventoso, pelo que julgo eu que ainda que o não seja, a razão do seu nome devia ser esta: vara em língua dos chins é nome de um tempo ou vento que faz maravilhas, de Sila e Caribides, que estão antre o cabo de Comorim da terra firme da Índia e a ilha de Ceilão; e assim pode ser que algum, sabendo isto, pôs nome a este monte pico da Vara, como se dissera pico do vento, pelo grande vento e tormenta que no alto dele faz em tempo do Inverno, e sobeja frescura no quente e seco, junto de uma fresca fonte em que os cansados caminhantes, no seu cume, temperam sua sede ardente Além dele para a parte do ponente, está um grande pico que se chama do Azevinho, por ter muitos azevinhos; e logo o pico do Tição, por haver sido de João Lourenço Tição, homem dos principais desta ilha; e junto dele, o pico do Pardino, nome de seu dono. Depois está o pico Redondo, pelo ele ser, e o pico da Salga, por salgarem nele os porcos monteses que por ali caçavam e monteavam; e o pico do Feno, que há nele; os Moles, terra deste nome, por ser húmida e de muitos lameiros; os Graminhais em que há grama, e a grande serra, chamada por antiperistasim , Serreta, ou por se achar nela mais baixo mato, que cresceu, não de princípio da ilha, mas depois de arrebentarem as Furnas, por toda aquela comprida encumeada ao redor delas, donde os caminhantes vão vendo aquela sua espaçosa concavidade, como outro mundo inferior, mais perto do centro da terra, onde está o Inferno, que semelham parte dele, povoada de grandes alagoas, que estão parecendo mar, regada de muitas ribeiras frias e quentes, dantre as quais se alevantam grandes fumaças de umas bocas da terra, como de fúrias infernais, a que comummente chamam Furnas, de que mais particularmente agora direi, antes de passar além pelos montes, deixando as alturas da terra por estes vales dela, pois também é vale de lágrimas este em que agora vivo desterrada, em que todos vivemos, ou por melhor dizer, morremos.