Para tratar das Furnas desta ilha de São Miguel, se há de notar primeiro que a maior parte das faldras destas e doutras ilhas, que são as terras marítimas lançadas ao longo das cordas das serranias, que correm como lombo ou espinhaço alto, pelo meio de cada uma, e quase de todas elas, em alguns tempos passados, por diversas vezes correram arrebentadas, ou sacudidas dos picos das mesmas serras, ora em matéria e polme de pedra derretida que do profundo procede e sai com a força do fogo que fazem acender os vieiros de enxofre, ou salitre, ou outras coisas naturais, e sobre a pedra correu e caiu depois cinzeiro e areia e pedra pomes e a mesma terra dos montes que arrebentaram; com que às vezes, donde cai nos altos, os faz mais altos e os baixos os arrasa com os outeiros, e as grotas com as terras junto delas, e outras vezes tomando posse do mar e estendendo as ilhargas com os mesmos biscoutos, que pelas águas salgadas se estendem como caes, e com areias e fajãs que, espraiando-se abaixo das rochas, fazem grandes entulhos, às vezes sobre o mesmo biscouto, e às vezes sobre as águas do mar, ao modo das lezírias, que fazem as invernadas e crescentes dos rios em terra firme, que aqui não são lezírias, por não serem alagadiças, mas são umas terras chãs e outras, fajãs ao pé das rochas, como é a do lugar dos Mosteiros e o que se acrescentou na Praia, no caminho de Vila Franca, e em outra praia na vila da Ribeira Grande, nesta ilha de S. Miguel, e outras semelhantes. E assim parece logo a quem as vê com consideração e atenção que estas terras são de uma terra sobreposta e quase nateiro, do interior do sertão da serra e picos dela, que caiu do alto, onde a alevantou o fogo, ou trouxeram as ribeiras do polme de pedra ou terra, em tempo que arrebentou algum pico, ou a força das águas quando chovia; mais que terra própria e nativa daquele lugar, a terra do cume daquelas serras ou das rochas, com que se alargou esta ilha e da mesma maneira outras muitas, fazendo-se maiores do que primeiro foram. E parece que Deus ou a Natureza a que ele manda obrar, no princípio da criação ou feitura destas ilhas, pôs aquele muro altíssimo de serranias, para amparo do ímpeto que trás o grande oceano no tempo de sua fúria; e depois pelos tempos em diante, correndo pedra e terra das mesmas serras, se estenderam; os sinais do qual se vêem ao pé de alguma serra, com algumas partes da planura das faldras dela, onde se acha muito cascalho e areia rebatida das ondas do mar, testemunho claro que já ali em outro tempo chegou e depois correu mais terra ou pedra, que tomou adiante mais posse dele, e alargou mais as ilhas, fazendo-as maiores do que dantes eram e do princípio foram, como se vê claramente nas baixas dos lugares da Povoação e Faial, que estão ao pé de altos montes onde o mar chegava, de que a terra corrida tomou posse, e sobre elas se fizeram as casas e se prantaram pomares; e na vila da Ribeira Grande desta ilha, no lugar onde esteve uma ermida de Nossa Senhora da Concepção, que estava em terra corrida em tempos passados, mais baixa já que a outra, e depois, abaixo dela, correu outra, misturada com areia, que atupiu o mar por grande espaço, pelo qual lugar está manifesto que foi a ilha acrescentada duas vezes, em sua largura; e assim foi por muitas vezes em muitas partes, assim na largura, como na grossura, com que de estreita se fez mais larga e de rasa se fez mais alta; do qual são boas testemunhas de vista todos ou quase todos os montes desta ilha, que se forem inquiridos desta verdade responderão como gente cortês, com os chapéus fora, que são seus picos, cumes ou coroas de riba, com covas em cada um e bocas abertas, que estão testemunhando e dizendo como sinal evidente que por elas saiu de suas entranhas e do centro da terra pedra de biscouto e outra pedra pomes, terra e cinzeiro, que aos seus lados se foi estendendo e correndo, até chegar ao mar e tomar posse dele; e outras vezes subindo pelas mesmas bocas, como pelouro por tiro de trabuco, com a força da pólvora e fogo, para o ar, e tornou a cair a mesma matéria de pedra dura e pedra pomes, terra e cinza, sobre as terras a eles adjacentes e vizinhas; e às vezes mais longe, levadas pelos ventos que então cursavam, com que acravavam os matos do alto arvoredo e enchiam as grotas, ficando, na sumidade das mesmas árvores a superfície da terra, que com ela arrazava, tendo-a dantes igual e rasa com suas raízes, mas agora sua altura acravada, e assim tornada calva. Como se vê também nos escalvados que ficaram ao redor das Furnas, quando elas arrebentaram, em que não se achou arvoredo, por estar acravado o que dantes havia, ainda que em outras partes nasceu e cresceu depois tanto, que se tornaram a povoar de mato espesso e altíssimas árvores, de modo que parecem estar prantadas desde o princípio da ilha e começaram juntamente com ela, em sua criação ou feitura. E antre os montes que arrebentaram , a concavidade das Furnas foi dantes um grande e altíssimo pico, coberto de alto, grosso e basto arvoredo, nele antigamente nascido ou criado, que com a força das vieiras de enxofre ou salitre, que no centro de sua raiz havia, veio a arrebentar todo inteiro, antes da ilha ser achada muitos anos, e alçar-se para o ar, como pelouro de trabuco ou bombarda, ou todo inteiro ou em pedaços, desfazendo-se ou espalhando-se pelas partes a ele adjacentes e vizinhas, fazendo, como digo, os escalvados, que acravou com sua matéria e terra que de suas entranhas saiu, deixando feita uma profunda concavidade, que, da sua encumeada para dentro, pode ter cento e cinquenta moios de terra; e a descida para ela, pela parte do oriente, da banda do sul, será de uma légua, pela qual se vão vendo em muitas estâncias profundos vales e fresquíssimas e saudosas fajãs, de alto e sombrio arvoredo, de cedros, faias, louros, ginjas, pau branco, folhado, urzes, uveiras de serra e outras sortes de árvores, com a verde hera abraçada em alguns troncos delas, e em seus ramos muitas maneiras de pássaros, fazendo tanta e tão doce harmonia com seus cantos que quem desce por aqueles ásperos e solitários caminhos, não pode deixar de não parar, com os ouvidos a ouvi-los, e com os olhos a ver, e com o entendimento a considerar aqueles lugares sós, acompanhados de tanta soidade, que Ihe arrebata o sentido e o vai alevantando tão alto em pensamentos e considerações de seu Criador, que de boa vontade se deixaria ali ficar naquele ermo, esquecendo-se dos povoados, se Ihe desse lugar e o não estorvasse a humana fraqueza, invejosa destas saudosas saudades. Outra descida tem da banda do norte, mais íngreme, de espaço de meia légua, que se chama Pé de Porco, por dizerem que descendo-a ou subindo-a uns homens, no princípio do descobrimento da ilha, comeram ali um pé de porco que levavam cozido; outros dizem ter este nome, porque logo no princípio que começaram a andar por ali vaqueiros, e fazer currais de gado naquela rocha, acharam um pé de porco que nela deixaram uns ladrões, de um que ali mataram; a qual descida não é menos acompanhada de arvoredo, que a outra do oriente, e mais trabalhosa, ainda que não tão saudosa, afora outros caminhos ásperos, por onde descem ao campo baixo e raso, onde estão as Furnas, que se podem pintar como os poetas pintam os Campos Eliseos, porque é um campo chão, deleitoso, fresco e aprazível, dantes calvo em algumas partes e em outras de alto arvoredo; mas já agora está sua calva coberta de muitas faias e outro mato ainda baixo, que virá a ser mui alto, se o não impedir a avara, estragada e desperdiçada condição dos homens; e como as Furnas são chamadas nesta terra, pelo parecerem assim, Boca de Inferno, nestas descidas têm mais facilidade, que quando se tornam, os que desceram, a subir por elas; como diz Virgílio, fácil é a descida para o Inferno, mas tornar a subir e escapar para os ares superiores do alto, aqui está o cansaço e o trabalho. Se as descidas são deleitosas, mais o são os campos amenos, acompanhados em umas partes com espessos bosques de altíssimo arvoredo, e em outras, de outro mais baixo, raso e raro, que deixa passar aos hóspedes e romeiros por antre sua verdura, regados com algumas grandes ribeiras, umas de claras e frias, outras de turvas e quentes águas, antre os quais, quase no meio daqueles campos chãos, naquela grande e profunda concavidade, estão as Furnas tão nomeadas e celebradas, não somente nesta ilha, mas quase em toda a parte do Universo, onde se sabe o nome dela.
Para mais clareza, direi, Senhora, por ordem as coisas que há neste campo, começando da descida a ele, da parte do oriente, da encumeada que chamam os Graminhais, por haver por ali muita erva deste nome, chamada grama, caminhando para o ponente, quase ao noroeste, contando estas coisas brevemente, pois são mais para ver com os entendidos olhos e longas considerações, que para dizer, nem contar com compridas práticas, nem multiplicadas palavras.
Um clérigo, a que não pude saber o nome, veio com os primeiros povoadores, que vieram a esta ilha e saíram na Povoação Velha; dali a dias, desejando ver de perto e saber que coisa era uma grande língua de fogo que sobre o ar aparecia e saía da terra, partindo da Povoação, se foi um dia com um companheiro, metendo-se pelo espesso mato, fazendo caminho com uma foice roçadoura e deixando por ele balisas e sinais nas árvores, porque à tornada se não perdesse; chegou sobre as Furnas, a uma alta encumeada, de que elas da parte do oriente estão cercadas, da qual descobriu primeiro que ninguém o lugar donde o fogo delas saía; e não se atrevendo descer abaixo, pela aspereza da terra e espessura do arvoredo, se tornou para a nova Povoação, que agora se chama Velha, em respeito das outras que pelo tempo adiante se fizeram, para tornar mais devagar e com mais companhia de gente a descobri-las, como depois fez; e suspeita-se que desceu a elas pela descida e caminho da encumeada dos Graminhais, da banda do oriente, de que agora usam os que a elas vão da Povoação e daquelas partes. Este parece foi o que primeiramente descobriu as Furnas, que naquele tempo estavam mais altas e furiosas que agora, por então estar ainda junta maior matéria de fogo e mais fortes vieiros de enxofre, que as faziam ferver com maior fúria e mais espantosas; estavam em terra mais alta, que se foi abaixando e consumindo cada vez mais, e o seu furor também foi desfalecendo, porque já agora são muito menos do que foram.
Acabando de descer por aquele caminho do oriente, da alta encumeada dos Graminhais, ao plano e campo chão, onde as Furnas estão logo ao pé da rocha e descida de deleitosas faias, como tenho dito, da parte do oriente, está uma grande e larga ribeira de claras, frias e doces águas, em que os que acabam de descer a alta rocha, cansados e suados, se refrescam, lavam e bebem descansados; caminhando dali para o oriente, pouco espaço, está um pequeno ribeiro de água fria, que em partes é verde e em partes vermelha, doirada, ferrugenta e de outras diversas cores, segundo as têm os limos sobre que vai correndo, não porque a água as tenha, mas por causa do lastro da terra e limos, cuja cor transluz pela água que é clara, como no mar Roxo acontece. Andando mais adiante, virando para a parte do sul com uma pequena volta, se vêem os grandes fumos e se ouvem os temerosos estrondos que as furnas estão fazendo; e chegando-se a elas se vêem duas juntas, antre as quais vai um caminho muito estreito, como vereda, por um baixo espigão de terra e pedra, que entre ambas está; a primeira, que fica da parte do ocidente, está mais alta, de água clara, tão quente que pelam nela leitões, porcos, cabras e cabritos, metendo-os dentro e tirando-os logo, que também os podem cozer nela se os deixarem estar mais tempo; e do peixe que nela se mete não fica senão só a espinha; deita esta furna no meio um olho de água fervendo, dois côvados de alto e de grossura de duas pipas, mui furiosa; mas posto que ponha terror a sua fervura, não se teme tanto aquela estreita passagem ao longo dela, por ser de água clara, a qual corre desta primeira, por um pequeno canal que atravessa o estreito caminho e se mete em outras duas, correndo de uma em outras para a parte do norte, que também estão fervendo com muitos olhos alevantados, cuja água não é já tão clara, ainda que são mais largas que a primeira. Logo mais adiante, para a banda de leste, está um olho fundo, aberto na terra, fumegando e fazendo terror, com espesso fumo que dele está saindo; junto com ele está outra furna, como caldeira, com muitos olhos fervendo cinzento polme e faz uns círculos a modo de coroas grandes, ou cabeças calvas, donde o vulgo Ihe veio a chamar a furna de Coroas de Frades. Logo mais adiante está uma cova mais funda, que com um grande e furioso olho, ou borbulhão de polme cinzento escuro, subindo para o ar três ou quatro côvados de alto, de grossura de três pipas juntas, está em contínuo movimento, um olho saindo, outro começando; e pela fúria com que sai, matinada que faz e cor que tem encarvoada, se chama a furna dos Ferreiros, que parece que aquela é a forja de Vulcano; e esta é a mais furiosa, temerosa e espantosa furna de todas.
Junto desta se abriu, pouco tempo há, outra mais pequena da mesma cor e polme, que ferve com três olhos menos furiosos e mais pequenos; em uma grota que corre ao longo delas, da parte do oriente, está um grande olho de água quente, de grossura de um quarto, que ferve para o ar em altura de um côvado; na qual grota se ajuntam as águas que correm destas furnas e fazem uma pequena ribeira de água quente, que se vai adiante para a banda do sul ajuntar com uma ribeira quente e outra ribeira fria, que passa pela fábrica de pedra hume e nasce acima dela e da rocha do Pé de Porco, e ambas juntas em um corpo, a fria e quente, vão cercando e rodeando as furnas todas pela banda do sul; e no cabo das furnas se encorpora a ribeira da água delas com estas duas. Mais além se ajunta a outra grande ribeira também de água fria, de que contei primeiro, que corre da parte do oriente, com estas três; e todas quatro juntamente se fazem uma e vão sair ao mar do sul, com nome de uma só Ribeira Quente, que com outros olhos que se abrem, fervem e fumegam ao longo dela, se vai mais acrescentando e aquentando. Antes desta grota e água quente que sai por ela às furnas, antre ela e elas, está um outeiro pequeno de terra quente que quase todo é enxofre misturado com uma mole e branda pedra branca, principalmente na superfície, donde os que vão ver as Furnas tiram muito e levam para muitas partes, aproveitando-se dele alguns da mesma maneira que ali o acham, e outros o apuram somente com o ferverem ao fogo, e derretido, o dietarem em canudos de canas, com que fica perfeito e formoso, como qualquer outro, sem mais outra cerimónia; e por mais que se tire dele, da superfície daquele quente outeiro, nunca desfalece e logo se torna a achar outro no mesmo lugar, porque a mesma terra, que é vereiro dele, com a grande quentura que tem, está vaporando e criando outro, sem nunca faltar naquele mesmo lugar grande cópia dele.
Junto da furna chamada das Coroas para a banda do sul estão na terra dois buracos pequenos, tão grande cada um como uma caldeira pequena, onde esta fervendo a água clara; e mais para o ponente, da banda do sul, junto da Ribeira Quente que vai correndo ao longo destas furnas, está outro olho de água fervendo, ao tamanho dos de cima, e com passar a ribeira que chamam Quente, está ali quase fria, por vir já junta com a ribeira fria da fábrica e se misturar com este olho de água que fervia, está fervendo quente e não se esfria. Antre ela e as furnas se tirou já muita pedra hume que se fez e rendeu muita quantidade de pedra hume, e a dá muito boa e de bom rendimento. Esta é a causa porque se conservam ali tanto tempo aquelas bocas fervendo, sem se consumirem e gastarem e afundarem todo aquele lugar, porque se fora terra o que está antre elas, já estivera consumida e gastada com o grande fervor das águas delas, e tiveram feitas muito maiores bocas e aberturas; mas saem estas furnas como fontes ou olhos de água que ali nasce e sai por antre aquela pedreira de pedra hume e os vieiros de enxofre, e de algum salitre, que pode haver naquele lugar, ou outra matéria de fogo, que aquenta aquela água e ferve com grande fúria, sem nunca faltar água daquelas fontes que ali nascem: uma clara, que faz a furna clara e outra misturada com a terra e cinza, que faz as furnas de polme cinzento e negro; sem faltar o vieiro de enxofre e matéria de fogo que as aquenta e faz ferver com contínuo movimento e fervura, porque é muito o enxofre que tem debaixo e há em todo aquele campo, de que é claro indício haver alevantado para o ar e desfeito o grande e alto monte que ali esteve, deixando feita a rocha ao redor e a espaçosa e alta encumeada que já disse, dentro da qual outros muitos olhos de água quente se alevantam com fervura e grande fumo, ao redor das mesmas furnas e pela Ribeira Quente abaixo, de que não faço particular menção por serem pequenos; antre aquela terra, que é toda como estéril, há uma mina de enxofre.
Das Furnas, para a parte de leste, declinando à banda do sul está uma furna pequena, que por fazer um som e matinada como tambor, se chama o Tambor, e ferve para cima com um olho furioso e fervura que faz com um polme ralo de cor cinzenta, junto de uma terra quebrada. Ao redor dela, está mais de um alqueire de terra escalvada em que se deitam os bois no tempo frio, porque a acham quente.
Perto desta furna se ajuntam as três ribeiras principais que nascem dentro da grande concavidade, sc., a fria e a que ferve e a quente e a outra que nasce das furnas, que vão todas juntas em uma dali para baixo ter ao mar do sul; e lá tem o nome de Ribeira Quente, ainda que são quatro, duas quentes e duas frias, encorporadas em uma só. Por esta Ribeira Quente abaixo, meia légua das furnas, no cabo do Lombo Frio saem desta rocha três tornos de água, perto um do outro, como quantidade de dois côvados antre cada um; o torno do meio é quente, os outros dois frios. Dali para baixo é a Ribeira Quente tão chã até o mar, espaço de outra meia légua que vêm as tainhas por ela acima até o Lombo Frio; tem esta ribeira um salto pelo qual podem passar as tainhas mais acima.
Tão feias e furiosas são estas furnas e tanto horror põe a quem as vê e ouve o grande estrondo e arruído que fazem, trabalhando com contínuo movimento, que parece uma confusão e semelhança do inferno; das quais dizem os pastores, que por aquelas partes ao redor delas pastoram seu gado e o mesmo afirmam outros que o têm experimentado, que no tempo do Inverno fervem com maior furor e fazem maior fumaça, parecendo-lhe que andam nelas os demónios, dizendo que a razão disso é andar naquele tempo o mar mais bravo, que as faz ferver com maior braveza; mas ainda que isto pode ser alguma causa, a principal é por que naquele tempo, que é mais frio com os ares frios circunstantes, por antiparastasis se reconcentra a quentura e recolhe para dentro da terra, com se acender mais o fogo nos vieiros do enxofre que há nela, com que acescenta a fervura naquelas bocas abertas, aquentando- se mais a água e polme delas, e saltando para o ar, com mais espesso fumo e apressurado ímpeto e veemência, e mores estrondos que no Verão, em que tudo tem menos, por respirarem pelos poros da terra que estão então mais abertos. Mas também no Verão como no Inverno, ainda que mais no Inverno, se deve meditar no trabalho eterno que terão os danados, pelo que têm estas furnas perpétuo, sem nunca cessarem; e ainda que algumas delas cessaram já, outras se vão abrindo de novo, porque todo aquele campo é uma mina de enxofre. E quando cursam ventos nordestes, por serem mais tormentosos, e tanto que revolvem as águas e areias, também elas andam com mais fúria e soam mais ao longe, deitando mais cópia de vapores e fumos, cuidando que o mar por debaixo da terra se comunica com estas bocas; mas, como outros com mais razão afirmam, por os nordestes serem secos e taparem os poros da terra, com que são causa dela tremer, por não ter o ar por onde respirar, assim, quando ventam, são causa de maiores estrondos nestas furnas.
Ainda que isto destas furnas é natural, parece coisa sobrenatural, e se perguntarem por que razão duram sem se gastarem, consumirem e acabarem , responde-se a isso que ainda que se vai gastando o enxofre a mesma qualidade de terra vai criando outro enxofre e outra matéria de fogo, de novo, e assim nunca falta; pelo que as furnas e seu fervor não cessam, porque não é outra coisa enxofre senão uma grossura de terra, a que chamam pinguitudo, junta com a humidade, as quais, como sejam ambas matéria do mesmo enxofre, o que há naquelas partes em abundância, sempre a natureza está subministrando o dito enxofre, que nunca falta nestas furnas, do que é clara mostra e prova o lugar que atrás tenho dito, onde nunca falta por mais que dele tirem; pelo que é estéril a terra dantre as furnas, por ser toda uma mina de enxofre. Outra razão se pode dar e é que será tamanho e de tanta quantidade o vieiro de enxofre e matéria de fogo ali debaixo da terra, que pode durar e dura tantos anos, como tem durado e ainda durará até que se acabe de gastar e consumir pelo tempo adiante, e então acabarão de ferver as furnas, como já acabaram algumas e cessaram por se acabar a matéria do enxofre e água ou humidade que as cevava; e outras começarão novamente, por se começar novo enxofre e nova matéria de fogo na humidade que ali acham, ou se criou também nova humidade que ferve com novo fogo nascido de novo; e assim umas furnas vão secando, outras começando e abrindo novamente, por ser pedreira de pedra hume o espaço que está antre algumas, ou elas como fontes nascerem antre esta pedreira, não se desfaz nem gasta, como pudera ser gastado, se não fora pedra, como já tenho dito.
Um tiro de arcabuz das furnas para a parte do ocidente estão em um campo algumas pequenas bocas abertas, pouco fundas, e outras quase rasas com a superfície da terra; e ao redor das mesmas furnas, para a banda do mar e da terra, uns lugares, como covas, e outras rasas, em outros três ou quatro pedaços de terra, de alqueire cada um, em diversas partes, donde saem uns fumos e fedores tão prejudiciais e infestos a quaisquer aves do ar ou animais da terra que caem e em breve espaço morrem, se logo os não tiram fora, escapando os cães com a vida, cortando-Ihe as orelhas, por onde purgam aquela peçonha que pelos narizes receberam. Dizem alguns que ao longo da Ribeira Quente, por ela abaixo, estão outros campos desta mesma qualidade, até os quais somente sobe do mar pescado de diversas maneiras, sem passar mais acima, e todos, uns e outros, se chamam por esta razão os fumos ou fedores, sem em nenhuma parte deles receber dano nem mal alguma pessoa humana, se não se deixar estar ali por notável espaço de tempo, porque os que se detêm mais de uma hora, quando vão tirar dali o gado, também sentem movimento no corpo, como é vómito e outros acidentes. Além, pouco espaço ao ponente, corre uma grande e fresca ribeira de boas e claras águas, que nasce na rocha junto do Pé de Porco, onde está feita a fábrica de pedra hume, que ali mandou fazer João de Torres, mestre dela, depois que deixou de obrar a da vila da Ribeira Grande, de que adiante contarei; e com esta água desta ribeira ser muito fria, está fervendo em muitas partes, com a respiração que faz a quentura dos vieiros de enxofre que está debaixo daquela terra, por onde vai correndo; pela qual razão se chama a Ribeira-que-Ferve, cuja água dizem ser a melhor de toda a ilha, se o não for a da cidade da Ponta Delgada, principalmente na fonte donde nasce, onde está mui fresca e fria, porque na donde sai, vai já muito amassada e encalmada, sem perder sua bondade, mas às vezes por isto e por causa das raízes que dentro nos alcatruzes crescem muito, sabe a terra e não se bebe tão fresca e fria, posto que a água que vem de longe por canos limpos é melhor que na fonte donde nasce, por vir purificada de algumas escórias que da terra nascem. Defronte da fábrica, um pouco mais acima, está uma fonte, como um cano de água, que sabe a ferro e se mete na mesma ribeira, pelo que, quem quer boa água dela, a toma acima do lugar onde esta fonte de ferro se mete nela.
Desta ribeira fria que ferve, pouco espaço para o ponente, está uma ermida de Nossa Senhora da Consolação, de muita romagem, que agora com grande custo mandou consertar o magnífico e liberalíssimo Baltazar de Brum da Silveira, em condição Alexandre. Além dela, um tiro de besta, está a Ribeira Quente, que nasce perto da dita ermida, de dois grandes e apartados olhos de água turva e tão quente que se se não temperasse com outra fria de outras fontes que ao redor nascem não se poderia sofrer sua quentura; mas com esta mistura fica sua água temperada, sem ferver, como ferve a outra ribeira fria que atrás disse, ficando a ermida antre estas duas ribeiras, a fria e a quente; abaixo da cruz da ermida, mui perto, está uma fonte muito fria e amarela a metade dela, e a outra metade verde, não tão fria. Na qual Ribeira Quente se curam muitas pessoas de flegma, salsa e sarna e outras enfermidades, tomando nela banhos, sem mais outros suadouros; a que não faltam, se não oficinas e edifícios para se igualarem com as celebradas Caldas da Rainha, que estão em Portugal, junto de Óbidos, e as Caldas junto a vila da Bouzela e quaisquer outras.
Da ermida das Furnas, a mais de três tiros de besta para o ponente, está uma grande alagoa de água doce, que terá em circuito mais de uma légua; e da parte das Furnas, acima de um cerro e baixa encumeada, que está antre ela e as mesmas Furnas, tem outras quatro ou cinco furnas, fervendo e fumegando da mesma maneira que as já ditas, das quais dizem que procede a Ribeira Quente e os dois olhos que já disse que dela nasciam, em que se tomam os banhos; e quando a água cresce no Inverno, as cobre de água, como também se secam no Verão parte delas. E às vezes se vê esta alagoa vasar alguma coisa e tornar-se a encher, como maré, pelas bordas, de que parece ser causa o vento, que a faz ir para uma parte e tomar o seu lugar, quando a calma cursa ou vem da parte contrária, ou por causa da lua; pode ter esta alagoa dez moios de terra, a qual deu el-Rei a um João Tavares, da vila da Ribeira Grande, que Iha pediu com determinação de a vasar pela parte do Sanguinhal de Duarte Pires, e dali a levar ao mar pela Ribeira Quente, por se aproveitar da terra dela para semear pastel ou trigo, o que não houve efeito. Está claro que onde está esta alagoa grande foi outro alto pico que em outro tempo arrebentou e ficou ali aquela concavidade, dividida com o cerro que está antre ela e o campo das Furnas, em que se fez aquela grande alagoa, correndo para ela algumas ribeiras, regatos e grotas de chuvas e enchentes. Dizem que de toda a terra ao redor dela se pode fazer caparrosa, se se soubesse quantos dias há de estar a apodrecer, e houvesse mestre dela, como também de alguma terra dantre as furnas se faz já muito boa. Dali a pouco espaço, para a banda do sul, abaixo do caminho que vai das Furnas para Vila Franca, estão duas alagoas pequenas, de água doce, a respeito das quais, a outra atrás se chama a Alagoa Grande; e das duas menores, a que está da banda das Furnas é mais escura, em uma cova de um pico que em outro tempo arrebentou, cercada a água ao redor de altas árvores; outra, da banda do ponente, é mais clara, onde vai ter uma ribeira que se chama de Diogo Preto, nome de um homem principal que ali morou e tinha sua fazenda; na qual alagoa clara se sume a dita ribeira de Diogo Preto, e vai por debaixo da terra, espaço de uma légua, a sair no mar, nas fontes que saem junto do Forninho, perto da baixa chamada Lobeira , o que tenho por mais certo, que o que outros dizem, serem aquelas fontes que nascem no mar, da Alagoa Grande, porque se dela saíram, fora minguando, o que não faz, pois está sempre em um mesmo ser, afora as mudanças que Ihe faz fazer o vento, ou as enchentes que nela entram no Inverno, ou secura do Estio, ou a lua.
Das Furnas até à ribeira de Diogo Preto vão dois caminhos bem assombrados, em que espairecem e se desenfadam muito os caminhantes, um ao longo da Alagoa Grande, pela qual se estendem os olhos de água por suas águas, e outro por um lombo alto, acompanhado de altíssimo arvoredo de uma e outra banda; e da do sul se vão os olhos apascentando por altos montes e baixos vales, povoados de espessas árvores, que fazem aqueles lugares e caminhos estranhamente alegres e saudosos; anda nela diversidade de aves em grande número, como são adens, mergulhões, maçaricos, galeirões, patas bravas e outras espécies delas; podia-se criar ali infinidade de peixes de água doce, se houvesse curiosidade para os trazer a ela, de fora.
A noite que amanheceu a sete de Outubro de mil e quinhentos e oitenta e oito, choveu por aquelas partes tanta água, que atupiu muitas destas furnas com suas enchentes e levou algumas casas com seus moradores ao mar, de que tomou bom espaço posse um pedaço de terra que quebrou do pico da Vara, mudando a Ribeira Quente de sua primeira madre, e em diversos lugares e partes desta ilha, fazendo muitas mudanças e espantosas novidades.