Costumam dizer os ignorantes, ouvindo alguma coisa dos segredos de filosofia e efeitos da poderosa natureza, que Ihe não cabe em seu entendimento: — ó grande mentira de filósofos; ao que eu não sei dar outra mais certa resposta, senão dizendo: — ó grande parvoíce de néscios, pois não alcançam que há muitas coisas sobre seu baixo entendimento que Ihe ficam tão altas, que nem com altíssimas escadas, de ordenados e compassados degraus de razões e claras demonstrações, podem lá subir, para descobrir do alto, empinados, o que do chão, rasteiros, ver não alcançam. Donde se conhece o seguro descanso que é tratar e comunicar com sábios, e o grande trabalho que é conversar e falar com néscios; porque o sabedor entende a razão do que se diz e fica satisfeito, e o ignorante e tosco, sem nunca se satisfazer, reprende o que não entende e fica desta maneira o filósofo douto com o néscio atado ao pé, que é o maior trabalho que pode ter nesta vida. Digo isto para refrear as línguas de alguns que em algum tempo ouvirem algumas coisas que agora contar quero, que terão por impossíveis porque as não viram. Aos quais responderei que quem as viu era de tão boa consciência e tão verdadeiro como eles, e se não houvéssemos de crer senão o que se vê com os olhos, muito tempo há que fora já destruída a república humana. O que agora contarei das aves domésticas e bravas que houve nesta ilha entre os espessos arvoredos dela, ainda que parece impossível, são coisas vistas, tratadas e palpadas por pessoas graves e dignas de fé, como irei dizendo.
Estava esta ilha, logo quando se achou, muito cheia de alto, fresco e grosso arvoredo de cedros, louros, ginjas, sanguinho, faias, pau branco e outras sortes de árvores; e em alguns lugares estavam espaços de serra cobertos somente de cedros e outros de louros, outros de ginjas, outros de sanguinhos e alguns de teixos, outros de pau branco e outros de faias, como foi o Faial, que tomou este nome das faias de que estava povoado. Entre estas árvores, havia em alguns lugares malvais, de tão altas e grossas malvas, como qualquer das árvores suas vizinhas, em as quais dependuravam um boi ou uma vaca morta, e ali a esfolavam e partiam para comer; o mesmo faziam aos porcos e carneiros. E de algumas malvas menos grossas faziam temões, arados e cangas. Nem se deve ninguém espantar disto, pois maiores coisas há no mundo, como pudera contar muitas, mas só uma lembrarei: que em Maluco há canas de grande altura, cheias de excelente água, de grossura de três palmos, de que bebe o Rei e a gente, e são pelo pé cortadas, levadas a terras muito longe, por mar e por terra, e têm meia pipa de água cada uma, que se gasta canudo e canudo, sem água nunca minguar delas; que é maior coisa que haver malvas grandes nesta terra, como houve no tempo antigo. Um Pero Gonçalves Carreiro, fidalgo dos Carreiros de Portugal, dava testemunho que havia muitas e à sua porta tinha uma em que dependurava as reses que no mato tomava, o qual também afirmou que na praça de Ponta Delgada, antes de ser vila e cidade, junto do lugar onde esteve o pelourinho velho, defronte da cadeia dos presos, vira estar algum tempo uma malva tão alta como uma grande árvore, com tronco tão grosso como uma pipa; e era homem verdadeiro, como ainda hoje muitos vivos sabem dele.
Algumas aves havia nesta terra bravas, e outras vieram de fora, de muitas maneiras. Depois que trouxeram a ela galinhas domésticas, multiplicaram tanto, que enchiam os campos. Um Gonçalo Fernandes, morador na ribeira do Salto, junto da vila da Ribeira Grande, trazia tantas que não Ihe sabia conta e eram tantos os ovos, frangos e frangas, que de serem muitos perdiam o valor, porque quando mandava vender alguns à vila, dando trinta ovos por meio vintém e a três e quatro réis cada frangão, muitas vezes os tornavam para casa, por não se achar quem os comprasse; e em sua casa se aconteceu achar-se uma tina cheia de ovos, que contados foram oitocentos e oitenta. Estes eram dos que se apanhavam por casa somente, porque no campo, entre o arvoredo, se perdiam muitos, de que não faziam conta. E algumas vezes, por folgar, um seu filho, Pedro Gonçalves, com outros filhos de seus vizinhos, coziam caldeiradas deles, e esburgando-os depois de cozidos atiravam com eles uns contra os outros, em tão pouca estima os tinham, e tantos eram, que usavam então deste jogo com ovos muitas vezes, como em dia de entrudo usam neste tempo do jogo das laranjadas, sendo um só dia no ano. Porque então tanta era a fartura que todos os dias eram dias de entrudo; e depois veio a coresma faminta, da fome que agora há, em que todos jejuam. Enchiam as suas galinhas aquele campo todo da ribeira do Salto até o pico da Murta, da parte da vila da banda do ponente, e da banda do oriente até a eira do Picão, e da banda do norte até as rochas do mar, porque era em si um mar de galinhas. E quando queriam tomar algumas, para irem vender, as iam ameijoando, até as agasalhar por feitais e murtas e pés de cepos, que queimaram nas roças já feitas, e sendo noite, depois de estarem ameijoadas, iam com uns grandes cestos de vimes, pondo-os em cima das moutas, e assim as tomavam debaixo e iam vender a dez réis cada uma, tão baratas que não sei qual era mais trabalho, se o ameijoá-las, se tomá-las nas moutas, se levá-las à vila, se torná-las a casa, quando assim tão baratas não achavam quem Ihas comprasse, estando agora em tempo que nem muito caras e magras se pode achar quem as venda. Valia finalmente então mais o trabalho de as ameijoar e tomar, que o proveito e riqueza de as vender e lograr. Tudo foi então assim farto e tudo vai agora faminto, e muitos dos que gozaram daquela fartura provam agora desta fome e pobreza. Não Ihe vejo consolação a sua miséria, se não se for a com que um João de Abrantes, barbeiro e pedinte pelas portas, se consolava, que havendo alcançado deste bem naquele tempo, pedindo depois esmola, dizia:— se agora sou pobre, já fui rico; se agora sou velho, já fui mancebo; se agora morro de fome, já fui farto. Conhecia o bem passado e o mal presente, e a volta da Fortuna já virada, e tinha peito forte e duro para estar no baixo e áspero, como o teve brando e mimoso para passar os mimos e regalos que prestes passam e desandam, pondo os altos nos baixos e os baixos nos altos, fazendo a mosca leão e o leão mosca, o cônsul plebeu e o plebeu pretor, a Bajazeto estribeiro e ao pastor Tarmolão grão senhor.
Havia, como disse, sítios de terra, como esta, onde estas galinhas andavam, que tudo era loural, ginjal e outros faial e outras partes de cedros e muitas lombas de pau branco, outras tamujais e murtais, que se dividiram em dadas logo no princípio, algumas pelos primeiros Capitães Gonçalo Velho, comendador de Almourol, e João Soares de Albergaria, seu sobrinho; e, sendo ele absente, pelo primeiro almoxarife destas ilhas, Gonçalo de Teves, em tempo de Gonçalo Rois e de Pedro Anes de Alpoem, juízes ordinários em Vila Franca, por mandado e carta da Infanta D. Beatriz, mulher do Infante D. Fernando, comendador de Cristo destas ilhas e pai de D. Diogo, que depois foi Duque de Viseu, por ele então ser de pouca idade e o dito João Soares não ter ainda sua capitania confirmada, se deram outras dadas no lugar da Ponta Delgada e no de Água do Pau, estando presentes Gonçalo Roiz, juiz ordinário, e Nuno Gonçalves, seu genro, Vasco de Torres, Antão Fernandes e António Anes, e outros, aos dezasseis dias do mês de Abril de mil e quatrocentos e setenta e dois anos, delas de duzentas, delas de cento e trinta passadas de largura, direito para a serra, quanto os possuidores pudessem romper com condição que a cortassem até cinco anos, que chamam sesmaria por algumas razões, e desta palavra — semo — italiana, que quere dizer — dividir e desbastar — porque para isso davam as terras, deixando o caminho necessário para o concelho; e, da banda do mar, oitenta passadas, para canadas e pasto dos gados que se houvessem de criar.
Vestida estava esta ilha de diversas árvores de várias cores e cheiros, a cuja sombra se criavam as galinhas, e em cujos ramos pousavam muitas aves; e a cobiça dos homens foi tanta que o que Deus, mediante a natureza, Ihe deu em tantos anos, em um dia de roça, ou em uma hora de fogo, tudo brevemente Ihe despiram, esbulharam e desfizeram de tal modo que com razão se aqueixara com as palavras de David, como se fora homem, dizendo: — Vi o mau alevantado como os cedros do monte Líbano, em passando ou virando a cabeça e tornando a olhar, já não aparece fumo do que nalgum tempo era; tudo aqui foi e não é, pois foi quando ninguém se lograva dele e, depois que era e o viram, tão prestes desapareceu que era e não é, como se nunca fora. Secou-se a hera de Jonas e a era dos anos, que já foi e nunca virá, nem será, e,se vier a ser, será como empréstimo que quem empresta não cobra, e se cobra não sempre, e se sempre não todo, e se todo não tal e se tal inimigo mortal; pois, sobre estas tais courelas de terras e pequenas coisas, inventaram os homens entre si compridas demandas, litígios e brigas e forjam e tecem grandes e diabólicos ódios, urdidos pelo demónio.
Um João Afonso, morador na Relva, trazia ao redor de sua casa tantas galinhas que, quando se espantavam de alguma gente que viam, pareciam bando de estorninhos, e se quisera buscar os ovos que punham em um pomar que tinha, se se puderam ensacar, enchera cada dia um saco.
Houve outra maneira de galinhas bravas nesta ilha, que se chamavam galinhas de Guiné.
Parece-me que primeiro vieram de Guiné à ilha da Madeira, e de lá as mandou trazer a esta terra Rui Gonçalves da Câmara, quinto Capitão e segundo do nome; as quais multiplicaram tanto que por debaixo do arvoredo havia grandes bandos delas, que eram algum tanto mais pequenas que as domésticas e pintadas de preto, branco e cinzento, com as cristas mais pequenas, pelo que pareciam ter os pescoços e cabeças mais agudas, e eram mais perinaltas que as nossas e por isso corriam mais ligeiras, mas voavam pesadamente, como as outras caseiras; punham os ovos pardos, e, deitando-os às galinhas mansas, os tiravam e depois de saídos não queriam seguir a mãe que os tirava e morriam. Era tanta a multidão delas que entravam nos povoados e nas casas e se iam aos poleiros ajuntar e comer com as galinhas mansas e ali as matavam. Um Frei Estêvão, vigairo de Água do Pau, se ia às vezes com seus moços ao campo, onde a cosso as tomavam, pondo um moço em uma parte, outro em outra, e outro em outro cabo, alevantando-as, voavam elas, indo ter onde os outros estavam, já cansadas, e correndo após elas, como pousavam no chão, as tomavam.
Especialmente, houve muitas na lomba da Correia, da parte de Vila Franca, e na ribeira da Praia, onde as iam montear com cães, pondo-se alguns da banda da ribeira e outros de outra, e enxotando-as de uma banda para a outra, tornando-as a cossar de cá para além, assim cansadas, não podendo voar se emboscavam por os ramos e ervas, onde com os cães tomavam muitas; até que vieram a perder-se de todo.
As derradeiras galinhas, destas de Guiné, que se tomaram nesta ilha, foi entre os Fenais e Rabo de Peixe, arriba das Calhetas, junto dos biscoitos de Jácome Dias Correia, as quais tomou um Manuel Tavares que foi um grande caçador e pescador de pesqueiros e o melhor besteiro que houve nesta terra; tomou-as, cevando-as primeiro alguns dias, e ali se acabaram, porque não havia mais que aquelas que ele então tomou, em toda a ilha, havendo dantes tantas que faziam grandes bandos como de estorninhos. Voavam pouco como as perdizes que no primeiro voo cansam logo, mas corriam muito.
Posto que muitas aves vieram aqui de fora a esta terra, nela se acharam algumas maneiras de pombos, como naturais dela, uns pretos que chamavam pombos da serra, que matavam às trochadas com paus e aguilhadas e com lanças, nos paus e nas árvores, tão tolos eram, pela pouca comunicação da gente, que tudo esperavam; estes eram da terra. Outros houve cinzentos, que chamavam torcazes, que eu cuido serem naturais, mas alguns dizem que vieram depois aqui de fora, porque dantes os não havia, e multiplicaram tanto que agora há aí muitos, nas Furnas e na serra sobre a Povoação Velha. E há tão grande número deles na Achada e Fenais da Maia, que cobrem as terras como entra Março, e às vezes fazem perda nas novidades de trigo e linho, derribando as paveias no campo. Estes sempre foram mais recatados e dificultosos de caçar e tomar; mas os pretos, indo-os a caçar, atirando-lhe do pé da árvore com a besta a um, derribando aquele, os outros que na árvore estavam, olhando abaixo para aquele que caía, se deixavam estar quedos e tornando a atirar a outros e a derribá-los mortos, os que ficavam em cima da árvore faziam o mesmo, deixando-se estar tolamente, até que o besteiro matava deles quantos queria.
Pero Gonçalves Carreiro, morador na cidade da Ponta Delgada, indo à serra, pondo uma capela de ramos verdes na cabeça, os pombos Ihe vinham pousar nela, e ele tomava os que achava gordos e os magros soltava. 0 mesmo faziam outros muitos, onde estavam, à ermida de São Brás, junto da fortaleza da cidade da Ponta Delgada, antigamente, uns zimbros, em que pousavam muitos pombos; e algumas mulheres que por ali moravam os iam tomar com laços, escolhendo os mais gordos deles, e deixando os mais magros, como se foram escolher algumas galinhas do seu poleiro, e eles esperavam sem fugir e se deixavam tomar pelo pouco uso da comunicação da gente; pelo que chamavam os de Portugal aos homens das ilhas — pombos das ilhas — por serem confiados como eles, ainda que vissem e entendessem o laço dos maliciosos, se deixavam enganar, sem se querer apartar do engano que Ihe faziam. Uma Beatriz Vaz, viúva, da vila da Ribeira Grande, tinha à sua porta um azevinho onde muitos pombos iam dormir como galinhas em poleiro, e de noite, ela e as filhas, com candeia, tomavam e matavam os gordos e deixavam os magros.
Um Lopo Gonçalves, que morava no Morro da Ribeira Grande, por ser dos primeiros que vieram a esta terra, pondo-se nu entre o mato com os braços estendidos, vinham os pombos a pousar nele e ali escolhia os que pareciam melhores e mais gordos, e os magros deixava. Tão pouco uso tinham os pombos da gente, que nunca viram, que parece parecerem-lhe os homens árvores e por isso pousavam neles.
A mãe de Roque Roiz, escrivão da câmara da vila da Ribeira Grande, e outras mulheres ao redor de sua casa, que tudo era mato, punham um laço em uma cana com que tomavam facilmente os pombos pretos, que chamavam da serra, escolhendo os gordos e soltando os magros.
Por muitas vezes, um Gonçalo Fernandes, vizinho da Ribeira Grande, saía de sua casa, todo enramado e coberto de ramos e se metia em um loural e mato de outras árvores, e, deixando-se estar quedo e agachado, vinham os pombos e pousando ao redor dele, com as mãos os tomava, e, se via que eram gordos, metia-lhe os dentes na cabeça, deixando-os cair no chão, e soltava os magros, tornando para casa com trinta ou quarenta deles. Na vila de Água do Pau, um Manuel Álvares matou um dia outros tantos com a besta. As mulheres e moços, com laços postos em canas compridas, tomavam muitos, escolhendo os gordos e soltando os magros. E estando muitos em um pau ou ramo, tomando-se um deles, se chegava logo outro àquele lugar donde o outro caía. As pombas bravas também eram tantas nas rochas que não tinham conto nem preço, e quando se vendiam era quase de graça.
Também se acharam nesta ilha pardelas, estapagados e garajaus; os estapagados eram tão grandes como pombos torcazes ou frangas, brancos pela barriga e pretos pelas costas, tinham pouca coisa o bico retorto na ponta.
Eram tantas as pardelas e estapagados que em casa de um Manuel Fernandes, o Tosquiado de alcunha, uma véspera de Páscoa, tomaram setecentas, entre umas e outras, das quais vendeu seu pai a um Álvaro Dorta duzentas por duzentos réis, a real cada uma. E sua mãe mandava chamar as vizinhas que Ihe viessem depenar as pardelas, com condição que Ihe deixassem a pena e levassem a carne. O qual Manuel Fernandes, com outros, ao pico da Murta, ia fazer fogueiras, pondo-se o sol, atravessando um pau na ribeira e deitados outros de per alto postos em baixo, encostados ao pau que tinham atravessado, com que ficava feita uma grade onde as pardelas cegas com o fogo se tivessem, caindo ali, e não fossem pela ribeira abaixo; e os cães que levavam, indo pelo pau atravessado, tomavam as pardelas que na grade embarravam e uma e uma as deitavam fora da água, tão destros andavam neste ofício; trazia cada cão seu chocalho, para que os caçadores de noite fossem tomar a caça onde os ouvissem.
Têm as pardelas esta qualidade que ainda que caiam fora do fogo com que se encandeiam grande espaço, vendo a fogueira, vão direito a ela, e ali as tomavam. São pretas como corvos, mas têm o corpo pesado como patas, e têm o bico revolto como gavião; depois de depenadas, de feição de adem. Das novas se fazia mais azeite, não fazendo mais que depená-las e esfolálas e da pele se fazia mais quantidade por ser tudo gordura e a carne não se aproveitava. Indo tomar as novas nas covas onde estavam, logo Ihe iam com a mão ao pescoço e Iho apertavam, para que não deitassem o azeite fora, porque se Iho não apertavam elas o deitavam logo todo pela boca fora, que parece criá-lo dentro em si, além do que Ihe tiravam da pele quando a derretiam. Estando os caçadores em casa e acertando de bolir com os chocalhos, logo os cães eram espertos e se alevantavam olhando para eles, parecendo-lhe que já queriam ir caçar às pardelas, como costumavam, e algumas vezes não podendo trazer tantas, com carros as iam buscar ao mato.
O mesmo Manuel Fernandes, com seu pai Estêvão Fernandes e um João Jorge, todos da Ribeira Grande, em uma noite, véspera da Ascensão, mataram sete mil e seiscentas, afora outras muitas que apanharam outros caçadores o dia seguinte, onde ficaram embrenhadas pelas moutas e buracos da terra, porque são aves que se não alevantam de dia, ainda que as deitam a voar e logo caem no chão, pelas cegar o ar claro. A pena delas é tão boa como a das patas, e ainda melhor. Não comem senão peixe. Sendo novas, não cria um casal senão outro; parece que criarão muitas vezes no ano, pois tanto multiplicam. Era tanta a gordura nelas que um Salvador Fernandes e seu cunhado Manuel Fernandes faziam delas, cada dia que iam ao mato caçá-las, uma jarra de três canadas de azeite, entre o que deitavam pela boca e da gordura da pele delas, que esfolavam. E um Bartolomeu Roiz Cariboino, morador no Telhal da Ribeira Grande, com Sebastião Vaz, mulato de Baltasar Vaz de Sousa, foram à caça delas uma noite na ribeira da Praia, com fogueiras, onde tomaram mil e setecentas.
Um João Gonçalves, o Grande, caçador de pardelas, pelo que se chamou João Gonçalves Pardela, e um seu filho que chamavam depois Gaspar Gonçalves, o Pardelinha, por herdar este nome do pai, uma noite no pico da Murta, depois de ter a fogueira feita, choveu tanta água que Iha apagou, e ele andou resguardando dois tições para a tornar a reformar, não fazendo senão assoprar e roçar um tição ao outro, por se Ihe não apagarem; ali caíam as pardelas sobre ele e sobre os tições, com que tomou grande soma delas e pelas caçar sem fogueira, com os tições somente, se maravilhavam todos, dizendo: — assim tomou este tantas pardelas — e dali Ihe ficou chamarem-lhe João Gonçalves Pardela. Cada dez pardelas, ordinariamente, davam uma canada de azeite e mais as caçavam por ele, que por elas.
Ainda que tomavam no tempo antigo tanto número de pardelas, e na ribeira da Praia, da banda de Vila Franca, matavam em uma noite dez mil estapagados, há anos que são desinçados, assim eles como as pardelas. Dizem que desapareceram depois que houve nesta ilha furões que as degolavam todas nas covas, como fazem às galinhas nos poleiros; e de maravilha se acha alguma em alguma rocha. E na verdade parece que as não matavam, mas elas mesmas se matavam a si, caindo nas fogueiras, principalmente em tempo de névoa, em que com a claridade e fumo do lume desciam mais número delas, e não podendo os cães tomar todas, ficavam muitas embrenhadas pelas tocas da terra, cuidando que ali estavam seguras; mas ao outro dia outros caçadores vinham carregados delas e em uma só cova achavam vinte, trinta ovos, não porque pusesse uma mais de dois, senão porque punham muitas no mesmo lugar e se encovavam em uma mesma cova, da qual tirando às vezes uma e tornando a meter a mão achavam outra, e aquela fora, tiravam outra, até vinte e trinta.
Na entrada de Fevereiro, vinham os estapagados do mar à terra a limpar suas covas, e dali se retinham os dias que não vinham e depois tornavam no mês de Março, em que pondo seus ovos, se deitavam em choco. E as pardelas vinham do mar a criar à terra da entrada de Maio.
Uns e outros, dizem alguns, que não criavam mais de um pintão; outros afirmam que dois. Os estapagados, em chocar e criar, punham três meses, Março, Abril e Maio, e as pardelas punham cinco, Maio, Junho, Julho, Agosto e Setembro. Eram tão gordos os filhos que cada onze, doze, treze, davam uma canada de graxa, e às vezes, quando as traziam do monte, vinha correndo delas o azeite pelo caminho, ou pela boca ou porque arrebentavam de gordas, e enchiam os fatos dos caçadores, os quais pareciam lagareiros que andam em lagar de azeite; e por se Ihe não vasar pela boca, às vezes Ihe atavam os pescoços, e em caldeiras e panelas as derretiam, como uma banha de porco, e ficava no mato grande ruma de carne delas perdida, depois de tirarem o azeite dela. No tempo que estavam em choco, eram as velhas mais gordas que antes que chocassem matavam-nas na cova com cães de busca e eram tantas que ainda que fossem dez caçadores, uns após outros, pelo mesmo lugar, no mesmo dia e em muitos dias a reo , nos dois meses que chocavam, Maio e Junho, e dentro nos outros dois meses depois de criadas, Agosto e Setembro, sempre achavam que tirar e cada um dos caçadores enchia seu saco, em que trazia setenta ou oitenta, noventa, cento.
É de notar que em Maio e Junho era a matança das velhas nas covas e fogueiras, para comer, e em Agosto e Setembro, para azeite. Estas aves, estapagados e pardelas, dizem que no inverno andam muitas em África, onde parece que se vão recolher naquele tempo, por ser terra quente, e no verão vêm criar a outras partes, e não em África, por ser lá a areia em que costumam criar tão quente que Ihe gora os ovos de tal maneira que não criam pintãos, pela qual razão vêm cá criar em outras terras mais temperadas, onde a areia ou terra temperada Ihe não gora os ovos.
Um Pero Gonçalves, da Ribeira Grande, ia muitas vezes a caçar pardelas e com quatro achas que acendia matava setecentas, oitocentas juntas; e eram tantas as que caíam que quase matavam o lume por se cegarem com ele, e tinha trabalho de ter mão nelas e tomá-las antes que se metessem na fogueira, as quais não sentiam cair senão quando as viam com a claridade do lume e os cães davam com elas, por cairem caladas. Mas os estapagados como vinham bradando logo eram sentidos. Valiam oito, nove, dez pardelas meio vintém, que eram do tamanho de grandes frangas.
Nas Prainhas, arriba da tufeira da ribeira do Salto, termo da Ribeira Grande, tinha Gonçalo Fernandes, pai do dito Pero Gonçalves, uma terra que Ihe deram, da banda da dita vila, de mato maninho, com condição que a roçasse dentro em quatro anos, e começando-a de roçar não toda a reo, porque não podia tanto, mas a lugares, aqui um pouco, acolá outro pouco, vindo uma noite grande tormenta, derribou toda a madeira que estava erguida na roça; porque desta maneira costumavam todos roçar as terras, roçando primeiro um grande eito e, como naquele tempo começava de cair a madeira, ela mesma quebrava e derribava a outra que estava junto e diante de si, tão basta era; dali a certos dias Ihe foi este Gonçalo Fernandes pôr o fogo para a queimar e alimpar as terras da madeira derribada, e acertou aquela noite que ardeu a madeira fazer névoa e chuva; indo ele ao outro dia a ver se estava queimada, achou tantas pardelas que cobriam todo o campo da roça, das quais levou muitas para casa. Dando disto conta aos vizinhos, foram muitas pessoas da vila a buscá-las e tornaram carregadas delas.
De mélroas houve e há tanto número que davam trinta, quarenta por meio vintém, e poucos as compravam, por saberem a monte, como também pela mesma razão nestes tempos não fazem caso os moradores desta terra de muita diversidade de pássaros que há nela. As mélroas eram tantas que um dia antes do Natal, na era de mil e quinhentos e catorze, um João Lourenço, pedreiro, matou setecentas.
Antes da era de mil e quinhentos e dez, não havia aqui codornizes, pelo que parece que então as mandou trazer Rui Gonçalves da Câmara, quinto Capitão desta ilha e segundo do nome; e dali por diante multiplicaram tanto, que vieram a dar trinta, quarenta, ordinariamente, por meio vintém, e à quinta-feira, à tarde, davam mais. Depois do dilúvio de Vila Franca houve muito mais, porque com varas ia um homem armar ante-manhã, e em amanhecendo indo ver se andavam porcos nelas achava, setenta, oitenta e noventa nos laços; e tomando-as, tornando a armar e dar logo vista às varas, achava todas cheias de codornizes, como aconteceu a um Jorge Afonso, da Relva, que por não se deter a tirá-las dos laços, arrancou as varas e se foi para casa com elas às costas, com as codornizes dependuradas, de que dava quarenta por meio vintém. Da mesma maneira tomava as mélroas e por o mesmo preço as vendia. Quase as mais das vezes que iam a caçar codornizes, com rede manta, tomavam tantas que, enfadando-se de as contar, as repartiam aos alqueires, enchendo um alqueire delas a um, e outro ao outro. E diziam no tempo antigo os caçadores de varas uns aos outros: — vamos caçar codornizes que já valem trinta por meio vintém -, tendo aquele por grande preço e ganho. Tomavam os caçadores cada noite quinhentas, seiscentas. Mas já agora tomam poucas, por não haver tantas.
O Capitão Manuel da Câmara mandou trazer perdizes a esta terra, que multiplicaram muito, porque as que seu pai Rui Gonçalves da Câmara tinha mandado trazer dantes morreram sem fruto; mas agora há tantas que arreceio que façam muita perda e venham a comer as searas, como já começam, pelo que, ainda que por uma parte sejam proveitosas, pela outra serão praga na terra. As daqui não são tão grandes como as de Portugal, nem tão boas; como não são acossadas e perseguidas com açores ou cães de rasto, e com fios ou telas, ou caçadas com boi, esperam muito com tiro de arcabuz e de besta, com que matam poucas, e também com rede manta, mas muitas mais em eixós e de noite com candeio.
Há nesta ilha infinidade de pássaros de diversas sortes, canários, toutinegras, tentilhões, algumas alvéloas e outros de várias sortes, que fazem o mato saudoso, pousando e cantando sobre o espesso arvoredo dele. Faltam aqui tordos, os quais por S. Miguel vêm a Portugal, e então se vão dele as andorinhas, não se sabe para onde, pois não se vêem em África; parece que se irão para algumas ilhas ou terras que estão por descobrir. E costumam dizer que, encontrando-se no caminho, as andorinhas dizem a eles: — donde vindes, loucos, que fostes muitos e vindes poucos? —, porque os caçaram lá onde eles foram, por serem bons para comer, o que as andorinhas não são, e por isso as não matam. E os tordos respondem: — donde vindes, putas, que fostes poucas e vindes muitas? —, porque levam já filhos que cá em Portugal no verão criaram.
Os pássaros também se vão, antes de S. Miguel, de Portugal não se sabe para onde, e ajuntam-se voando alto em uma só parte e parece que adivinham quando se acabam de ajuntar. Então se põem em esquadrão como uma lua contrária da que fazem os mouros quando pelejam, porque as dos mouros levam as pontas para diante e a lua das aves estorninhos e outras desta sorte levam as pontas para trás, e no meio do campo da lua vai um pássaro diante, como por guia e capitão, a que toda aquela lua deles vai seguindo; pelo que claro se vê que os pássaros passam o mar de umas terras a outras, como foi no princípio da povoação destas ilhas e antes de serem descobertas, que delas iriam os pássaros para outras e de outras viriam para elas.
Das aves boas para comer, como eram galinhas domésticas e de Guiné, pombos da serra e torcazes, codornizes, pardelas, estapagados e mélroas, havia tanta abundância que abastava para escusar e fazer esquecer a carne de vaca. Agora há tanta falta desta que sobeja para fazer mortais saudades da fartura das outras, que durou do descobrimento desta ilha até a era de mil e quinhentos e vinte e dois em que, com os tremores grandes da terra e a parte dela que correu, se alagou a principal vila dela, chamada Vila Franca do Campo, com que ficou alagada e sepultada toda a fartura que tinha, com a mais nobre gente que dantes havia. E começou aqui novo mundo, assim nos moradores que ficaram vivos, como na carestia e preço de todas as coisas que ela dava e dá, e vem de fora e vinha, atentando ao passado, ainda que logo por alguns anos seguintes muito barato, a respeito do de outras terras e do que nesta mesma valem.
Há também aqui petos e uns pássaros muito mais pequenos que as carreiras de Portugal, de cor parda, verde e amarela, que têm uma estrelinha na testa mui amarela e são muito mansos; e há outros que chamam prioles, na serra, maiores que tentilhões, quase tão grandes como estorninhos e de cor parda; e outros de diversas maneiras, grandor e cores que se vêem a tempos, pelo que parece serem de outra terra, para onde vão quando desta desaparecem.
Também se vêem aqui andorinhas, em alguns tempos, e vêm de fora falcões, açores, corvos, patas bravas e outras aves grandes e pequenas, não conhecidas, e rolas, afora as que mandou trazer o Conde D. Rui Gonçalves da Câmara, das quais já se acham e matam algumas junto das rochas.