Esta ilha de São Miguel tem tão grossa e fértil terra, que pelo grande rendimento dela se pode chamar mina de ouro, principalmente pelo que rende em pastel que dá, cuja semente dizem que mandou trazer de Tolosa Rui Gonçalves da Câmara, terceiro Capitão, e outros dizem que o quinto. E os moradores desta ilha, que roçavam os matos e queimavam a madeira, além do trigo que semeavam nas roças, começaram também semear pastel, o que se dava muito forte e viçoso. Somente o trigo em alguns lugares com as névoas se tomava, e como correu a fama do muito trigo e pastel que dava esta terra, acudiu muita gente do Reino a morar nela e haverem dadas de terras, e também muitos castelhanos de Córdova e Sevilha e de outras partes de Castela, à fama do pastel que dantes não havia senão em Tolosa, de França, e traziam mercadorias de toda sorte, alguns dos quais ficaram na terra que agora têm seus netos e bisnetos. Vendo os moradores que se dava bem o pastel e que era grosso o trato, vieram fazer contrato com o Infante D. Henrique
, o que parece não poder ser, antes parece mais certo fazerem o assento e contrato com o Rei, que então era, que Ihes desse a semente do pastel e pedras dos engenhos para o moer, porque madeira não Ihe faltava, por ser muita.
Outros dizem que o engenho feito e a costa segura de cossairos, e que Ihe pagariam dízimo e vintena por Ihes ter segura a costa e dar sementes e engenhos. O qual se paga, hoje em dia, que de cem quintais vêm dez ao dízimo e ficam noventa, e de noventa vem a vintena, que são quatro quintais e meio, e são assim, de cem quintais, catorze e meio, de que houve escrituras e forais, que depois dizem ser escondidos, porque nesta ilha não era como na ilha da Madeira, onde o açúcar alevantava e engrossava muito os homens, e aqui somente estavam viçosos.
Por isso o Infante e el-Rei faziam favores aos moradores, que tinham foral, de Ihe não pagarem dízimo de muitas coisas miúdas, para assim povoarem a terra e não sairem dela. Mas, pelo tempo em diante, desapareceu o foral e contrato antigo, e, por às vezes os oficiais de el-Rei darem mau aviamento de moendas de engenhos aos lavradores, veio cada um fazer em sua fazenda engenho particular à sua própria custa, pelo que cessaram os engenhos de el-Rei, mas o tributo do pastel ficou inteiro de dízimo e vintena para sempre sobre os cansados lavradores. E ainda que de tudo o que entra e sai nesta ilha, vindo de fora do Reino, ou indo para fora dele, se paga de dez um, dos pastéis se paga a el-Rei dízimo, vintena e saída, que vem a ser vinte e quatro por cento, sc., de cento e vinte e quatro se pagam os vinte e quatro e se carregam os cento, que é quase o que se paga a Sua Majestade a quinta parte; quando se carrega pastel, em que entram os direitos do lavrador e mercador, sc., o lavrador paga de sete um, a que chama dízimo e vintena, e o mercador, por saída de dez um. E além destes direitos se paga mais para a Fortaleza, de todo pastel e açúcar que se carrega, a dois por cento; como tudo se contém no foral, escrito no Livro do Tombo da alfândega da cidade da Ponta Delgada, concedido por el-Rei D. João, terceiro do nome, feito aos trinta de Julho de mil e quinhentos e vinte e seis anos, que é o mesmo foral da ilha da Madeira.
Pelo grande rendimento do pastel , pode ter esta ilha nome de minas de ouro, porque as da prata muitos dizem que as têm, pela muita marquesita, que nela se acha, que é sinal de haver prata debaixo da terra, direito da tal escória, ainda que pode não haver prata, havendo marquesita, por não a fitarem bem direito os raios do sol ou da lua nesta terra, para criar, fazer gerar e refinar nas entranhas dela a prata pura e ficarem só nos vieiros das minas a marquesita e escória por cozer e apurar, parecendo prata sem o ser; sendo o pastel mais fina prata ou ouro, sem o parecer, porque, segundo já tenho dito, que dizia João Lopes Henriques, magnífico, prudentíssimo e riquíssimo mercador, um moio de terra das mais fértiles desta ilha, semeada de trigo, dá ordinariamente quinze moios, de que el-Rei tem um moio e meio de dízimo, que vale um ano por outro quinze cruzados, e esta mesma terra, semeada de pastel, faz muitos custos e despesas, e tendo os lavradores quem Iho compre e Ihes dê o necessário para o fazerem, soe a dar trezentos quintais de pastel, do qual el-Rei tem de direitos a quinta parte, que são noventa e tantos quintais, que valem mais de duzentos e cinquenta cruzados.
No princípio, nas terras mais fracas, se dava o pão e deitavam trigo velho fora, para recolher o novo, e as terras do Morro da Ribeira Grande, e algumas outras, todas eram pampilhal bravo e ervilhaca, almeirão, saramago e junça brava, as quais terras vieram a quebrar com fazerem pastelais nelas, dando cada alqueire de terra, cada colhedura, quatro carradas de folha, que passava de quintal cada carrada, tendo uma carrada quintal e meio, e quintal e arroba; o qual se moía na Ribeira Grande em dois engenhos de água que estavam dentro na vila e em outras partes, em engenhos de besta, aos quais levavam o pastel em sebes. E valia naquele tempo a cento e cinquenta e a nove vinténs o quintal, mas agora não dá um alqueire de terra do Morro, e de outras boas da ilha, mais que uma carrada cada colhedura, e o mais dele azouga e se perde e seca. E vale ao tempo presente o quintal em bolos a setecentos réis e a dois cruzados; o quintal granado, que valia a cruzado, comummente, vale agora a três e a quatro, que vêm os ingreses buscar, carregados de roupa e dinheiro, sendo tão caro; e quando valia barato Iho levavam os mercadores desta ilha a Inglaterra, — tanta mudança faz o tempo nas coisas e preços e comércio delas. Como também vale agora um boi dez mil réis, que naquele tempo antigo valia mil réis e menos. E havendo tanta lenha, já agora queimam muitos bosta de boi, arestas, palha de tremoços, bestiagas e silvas. E vale a arroba do azeite, de mais pequena medida, a dois cruzados, valendo dantes e de mor medida a dois tostões e a menos. E um porco, que valia um cruzado, vale agora três mil réis e dez cruzados. A mesma carestia tem a carne, o vinho, o mel e as mais coisas, que por diversas eras e anos tiveram diversos preços, até se empinarem tanto que não há quem lá chegue. O pastel de soca que fica para o segundo ano, depois de semeado, é mais fino e melhor que o do primeiro ano e sobre todo é melhor o pastel de roças novas em terra de mato, novamente roçado e queimado, para se fazer de novo o primeiro pastel nela, e a todo dão quatro ou cinco colheduras, cortando a folha com toucinos , para depois a moerem.
É o pastel um quarto género de alfaces, de que usam os tintureiros para dar cor azul, sobre a qual se dá melhor a cor preta; como diz dele Plínio: — est quartum genus lactucarum glastum vocant, quo infectores lanarum utuntur; o qual, apanhado em folha, se moe nos engenhos que disse, e está em um tabuleiro a massa dele até o outro dia, escorrendo algum sumo, e então são obrigados os lavradores a o embolarem, fazendo uns bolos redondos, cada um quanto podem compreender ambas as mãos no meio, e, depois de embolado, se põe a enxugar em uns caniços ao sol e ao vento, e seco se guarda em casa até o mês de Janeiro, Fevereiro e Março, em os quais o pesam e recebem os mercadores e recolhem em suas tulhas ladrilhadas e retocadas, onde quebrando aqueles bolos, a cada dez quintais, pouco mais ou menos, botam uma pipa de água, com que o trazem trinta dias ganhando grande quentura e virando-o cada dia. Passados os trinta dias por algum espaço de tempo, o viram cada dois dias, e depois o vem a virar o granador, que o grana dois dias na semana até se enxugar, e depois o vendem os da terra aos de fora ou aos da mesma terra; se não vai bem enxuto Ihe dão suas quebras.
Dizem que o primeiro que fez pastel nesta ilha foi um Govarte Luís , estrangeiro, de nação framengo, que viveu em Vila Franca do Campo. As cabras são doidas por pastel e comendo-o endoidecem e morrem, e o pastel as mata; assim que o pastel que dá vida aos lavradores e mercadores, esse a tira às cabras, pois Ihe causa sua morte. Adiante direi mais largo do princípio do pastel nestas ilhas.