Assolada Vila Franca e morta muita gente nela e em outras partes desta ilha de S. Miguel, assim como o bom Capitão Rui Gonçalves da Câmara acudiu nestes perigos e perdas, a consolar seu povo com sua presença, palavras, conselhos e fazenda, assim também, vendo os homens depois de passado aquele tempo do infortúnio tão debilitados e desmaiados, que quase todos se queriam ir para Portugal e deixar esta terra com o grande medo que conceberam do terribel castigo que sobre ela viram com seus olhos e de outros semelhantes que receavam, ordenou como prudentíssimo divertir no coração de seus súbditos semelhantes pensamentos com mandar fazer uma grande festa de jogo de canas na vila da Lagoa, onde tinha então seu principal assento, armando o desafio entre as duas vilas, da Ponta Delgada e da Lagoa, contra os da Ribeira Grande e Vila Franca e Água do Pau.
Foi este jogo de canas ao longo do mar, em um campo que fica em baixo na praia, e a gente de toda a ilha, com o dito Capitão, estavam em cima, vendo este notável folgar em um dia de Páscoa.
Da Ponta Delgada veio André Gonçalves de Sampaio, chamado o Congro, com dois cavalos, em um ia e outro a destro, e uma azémala carregada de canas, com chocalhos de prata e seu reposteiro, e vestido de cores, de seda; e Jorge Nunes Botelho, também consertado, levando por companheiro seu genro Pero Pacheco, que ia vestido de seda vermelha, com muitos golpes e botões de ouro; e Diogo Nunes Botelho vestido de sede branca; e Amador da Costa com dois cavalos bem ajaezados, um castanho, em que ele ia, tão gordo, que correndo uma carreira, se Ihe fendeu a anca pelo meio e nunca mais foi são; Rui Martins Furtado também foi em um cavalo fouveiro, mui formoso, e levava vestido uma marlota de veludo verde com debruns brancos e botões de ouro; todos com seus moços de esporas, de ricas librés. O meirinho do corregedor, que era Gaspar Manuel, também ia em um cavalo mui formoso, vestido de roxo e azul.
Da vila da Alagoa ia Álvaro Lopes de Vulcão e Cristóvão Soares e outros, todos bem ornados e lustrosos, onde o dito Álvaro Lopes de Vulcão, ainda que era homem de dias, jogou mui valentemente as canas, e João Álvares, seu filho, e Vasco de Medeiros, Fernão Vieira, João Cabral, Pero Velho e João Álvares Examinado, em bons cavalos, vestidos de libré de sedas.
De Vila Franca foram em favor da Ribeira Grande e da Água do Pau alguns poucos, com vestidos honestos de preto e roxo porque traziam ainda muitos deles dó por seus parentes e amigos que morreram pouco havia na subversão da dita vila. Foi Lopo Anes de Araújo vestido de pano preto tosado, muito fino, com Matias Lopes, seu filho, vestido com um pelote de chamalote roxo, sem águas, e gibão de veludo preto, com três cavalos entre o pai e o filho. Foi João de Arruda com seu filho Pero da Costa vestidos de seda preta, e Pero da Costa com botões de ouro, e entre ambos três cavalos; foi António de Freitas de roxo, em um cavalo murzelo, mui formoso; e Hierónimo Gonçalves em outro cavalo pombo; Jorge da Mota e André da Ponte também em outros dois cavalos, vestidos de azul anilado, com gibões de veludo; e outros alguns. Da vila de Água do Pau foram Afonso de Oliveira e Estêvão de Oliveira, irmãos, com três cavalos, vestidos eles de cores e bem tratados, Gaspar Pires, o Velho, Gaspar Pires, o Moço, Amador Coelho, Manuel Afonso Pavão, o licenciado Diogo de Vasconcelos, Rui Vieira e outras pessoas; todos mui galantes e bem vestidos de panos finos e de seda e peças de ouro.
Da Ribeira Grande, foi o Abade de Moreira, que ali estava naquele tempo; levava dois cavalos bem ajaezados, com que jogou mui bem as canas, porque era bom cavaleiro, e teve desafio com Manuel da Câmara, filho do Capitão, que então era moço, sobre o jogo das canas, por Ihe tirar o Abade uma cana e Ihe dar na adarga, e tudo causou sua mãe D. Filipa Coutinha; mas o Capitão Rui Gonçalves da Câmara atalhou a isso, dizendo ao Abade que Ihe atirasse outra cana, porque a Capitoa dizia que matassem ao Abade por atirar a seu filho e Ihe dar na adarga, dizendo que Ihe não havia de atirar, senão botar a cana por cima, como a el-Rei. O Abade vendo isto, como era homem muito valente e de grandes espritos, tomou um arremessão na mão, com sua adarga na outra, dizendo que o Abade não se matava sem ele primeiro matar cinco ou seis.
Foram mais da Ribeira Grande Rui Tavares e João Tavares e Baltasar Tavares, ambos seus filhos, com seis cavalos, os três em que iam e outros três a destro, mui bem ataviados e vestidos de ricas librés; ia Gonçalo Tavares e seu irmão Henrique Tavares, também com dois cavalos, muito adornados de vestidos ; foram Paulo Gago e Jácome Gago, filhos de Rui Gago , bem vestidos e com mui formosos cavalos; foram Baltasar Vaz de Sousa, Simão Lopes de Almeida, Manuel da Costa, Gaspar de Sousa, Pero Teixeira, Adão Lopes, de Rabo de Peixe, e outras pessoas principais, todos bons cavaleiros e bem ordenados.
Com que se celebrou a festa mui solene, e fizeram uns e outros grandes avantagens, porque quase todos os homens nobres desta ilha de S. Miguel e seus filhos mancebos são tão grandes cavaleiros que parece que nasceram sobre seus cavalos, como se parece em outros folgares e jogos de canas que nesta terra em outros tempos se fizeram, principalmente um na cidade da Ponta Delgada, onde foi Rui Tavares a ele com sete filhos, grandes cavaleiros, João Tavares, Baltasar Tavares, João Roiz Tavares, Gaspar Tavares, Belchior Tavares, que depois foi frade de S. Domingos, bom pregador e mudando o nome chamava-se Frei Paulo, Garcia Tavares e Pero Tavares, que era moço pequeno de catorze até quinze anos, jogou as canas com uma adarga pequena que Ihe mandou o pai fazer para isso, maravilhando-se todos de o ver tão atrevido e tão bom cavalgador; e saindo-lhe os Regos, convém a saber, cinco irmãos, Belchior Baldaia, Gaspar do Rego, Gonçalo do Rego, Manuel do Rego e Aires Pires e dois parentes seus, Lopo Cabral e Nuno Gonçalves Botelho, todos sete lindos cavalgadores, jogaram as canas uns contra os outros, os sete irmãos da Ribeira Grande contra os cinco irmãos e dois parentes da cidade, fazendo-o de uma parte e da outra tão bem e escaramuçando tão galantemente que não se desejavam aqui melhores africanos e por tais foram julgados do Capitão e de homens principais da terra e de fora, dando todos muito louvor aos Tavares que iam todos vestidos ricamente de sedas de muitas cores, levando entre si doze cavalos, o que tudo o pai sustentava, por ser muito rico e poderoso.
Gaspar Tavares fazia muitas avantagens, gentilezas e grandes sortes de bom cavaleiro e era o mais ligeiro homem que se viu; corria em pé em cima de um cavalo cada vez que queria, e, estando dois cavalos juntos, cavalgava de um em outro, sem pôr pé em estribo, e também da mesma maneira cavalgava do chão; por altos que dois homens fossem, saltava por cima de uma lança que eles tivessem atravessada com outra lança.
João Roiz Tavares, seu irmão, por ser esquerdo, se avezou a trazer a espada na mão direita e corria em um cavalo sempre com a lança na mão direita e às vezes com duas lanças e com ambas escaramuçava, trazendo a rédea do cavalo na boca.
João de Betencor, filho de Gaspar de Betencor, foi bom cavaleiro; correndo uma carreira, ou quando jogava as canas ou escaramuçava, apanhava as laranjas do chão.
Também João Roiz Camelo foi grande cavaleiro, afora os que tenho ditos quando tratei da progénie de cada um. Gaspar Tavares, filho de Rui Tavares, era tão bom cavalgador e tão afeito em riba de um cavalo, que o fazia subir por uma escada de pedra de muitos e estreitos degraus, que são dezanove, por que sobem em cima de um tabuleiro de pedra muito pequeno, para a casa da audiência da vila da Ribeira Grande, com seu peitoril de pedra, que o faz parecer mais estreito, onde se virava e tornava a descer. O mesmo fazia um seu sobrinho, por nome António Barradas, bisneto de Rui Tavares e filho de João Fernandes Barradas. Os dois irmãos Gaspar Tavares e João Roiz Tavares, fazendo muitas sortes na Índia, morreram lá em serviço de el-Rei.