Por falecimento do Capitão Rui Gonçalves da Câmara, quinto em número e segundo do nome, herdou sua casa e Capitania seu filho, Manuel da Câmara, que só ficou vivo depois de sua morte, ainda que teve outros irmãos mais velhos que o precediam e faleceram no dilúvio de Vila Franca; o qual, sendo menino de seis anos, andando folgando defronte das suas casas da vila da Alagoa, com outro menino da sua idade, passou pela estrada um grande letrado que viera das Índias de Castela e ia para Vila Franca. Acaso vendo andar aqueles dois meninos, se pôs quedo a olhar para eles e vendo a Manuel da Câmara tão gentil homem e tão corado do rosto, perguntou a um criado de casa cujo filho era aquele menino que andava vestido de verde; foi-lhe dito que era filho do Capitão; perguntou se tinha mais filhos e se era aquele o morgado; responderam-lhe que não era morgado, mas que diante dele havia dois mais velhos que ele. Perguntando-lhe porque fizera aquela pergunta, respondeu que o fizera porque vira no menino sinais de ser muito rico e grande senhor de jurdição e que primeiro havia de ser cativo e passar um grande trabalho. E assim foi, que daí a poucos tempos morreram os dois irmãos mais velhos que ele e ficou único herdeiro da jurdição e Capitania, e depois de casado foi cativo em Cabo de Gué, como adiante direi.
Este ilustre Capitão Manuel da Câmara, sexto em número e único de nome, em vida de seu pai, quando morava nos paços da vila da Alagoa vendo ele o desgosto de sua mãe, que por esta razão o não queria deixar ir nem mandar à Corte, determinou de se ir desta terra por qualquer modo que pudesse. E tendo aqui seu pai feito um formoso galeão no porto dos Carneiros, bem artilhado e armado com munições de guerra, de modo que podia navegar sem medo de cossairos para com ele se servir no que Ihe fosse necessário , como Manuel da Câmara o viu, determinou logo consigo de se ir nele por aí, sem levar propósito determinado de para onda ia, e concertando-se com o piloto, que se chamava António Anes, natural de Entre-Douro e Minho, ou, como outros dizem, de Viana, que era afamado em seu ofício; as pessoas a que deu conta de sua determinação e levou consigo foram Francisco de Arruda da Costa, de Vila Franca, filho de João d’Arruda da Costa, Rafael de Medeiros, da Alagoa, Amador Coelho, da Água do Pau, e Lucas de Sequeira, ainda moços, com quem se criava e conversava, e Adão da Costa, Áivaro Mendes, filho de João Álvares, o Velho, de Água do Pau, Francisco Daniel e outro que de alcunha se chamava Aguialhos, e Simão Álvares que depois foi criado de el-Rei e moço do monte. Levou também nove ou dez escravos, sem levar mais gente por não ser sentido. Aviando-se do mais que pôde, estando seu pai sangrado dezasseis vezes, sem saber ele nem a Capitoa parte disso, se embarcaram de noite no dito galeão secretamente, sem serem sentidos, ferrolhando-lhe primeiro as portas de fora.
E partindo do porto dos Carneiros, amanheceu o galeão duas léguas de terra e levando a rota de Portugal, o tempo os lançou na ilha da Madeira. O primeiro porto que tomaram foi o do Funchal, onde foram bem recebidos e agasalhados, por saberem quem era Manuel da Câmara. Estando aí alguns dias, Ihe sucedeu uma briga sobre Rafael de Medeiros, que queria ficar em casa de um seu parente onde estava acolhido, o que sabendo Manuel da Câmara, determinou uma noite de o tirar forçosamente da casa onde estava; e o parente, com seus filhos, Iho defenderam às lançadas de cima de um balcão, onde Manuel da Câmara houvera de ser morto, porque animosamente os acometia, e Álvaro Mendes foi muito ferido. Depois, tornando-se Rafael de Medeiros para Manuel da Câmara, o quis acompanhar, e não somente ele, mas outros da mesma ilha fizeram o mesmo, entre os quais foi um fidalgo Simão de Miranda, pela conversação que teve com ele os dias que ali se deteve, que ao embarcar se meteu no galeão, dizendo-lhe que o não havia de deixar até que ele não tivesse quietação. E o mesmo fez um Afonso Vaz, mancebo nobre, natural da terra, e outros a que não soube o nome. Partidos da ilha da Madeira, foram ter a África, sobre Azamor e daí a Mazagão, onde o recolheu o capitão António Leite no castelo, e, porque o galeão fazia muita água e ia mal tratado, mandou dali Manuel da Câmara o piloto António Anes que o fosse espalmar no porto de Santa Maria. Como foi nova a Safim que era chegado Manuel da Câmara a Azamor, partiu um primo seu, chamado D. Afonso de Castelo-Branco, filho do conde de Vilanova, de Safim, onde estava, com setenta homens de cavalo, em busca dele. E dali se foram os parentes, ambos por terra, a Safim com cem homens de cavalo.
Estando em Safim, Rafael de Medeiros no soco espancou um cavaleiro, entre perto de vinte, com uma cana. Arrancando todos, se acolheu a casa de Manuel da Câmara, ao qual veio logo o capitão da cidade com muita gente, recontando-lhe o que passava, pedindo-lhe que Iho mandasse dar para o prender. Esteve preso cinco ou seis dias e foi sentenciado que se fosse fora da cidade.
Neste tempo, estando o galeão posto em estaleiro para se espalmar no porto de Santa Maria , havia partido desta ilha, em busca de Manuel da Câmara, Cristóvão Soares, da casa do Capitão, seu pai. E, indo ter ao Algarve, dali se partiu para Sevilha, sem saber onde o galeão estava; e indo já pelo rio Guadalquivir acima, um dia de S.
João , saindo em terra, teve umas palavras com uns pastores sobre Ihe não quererem dar um queijo fresco por seu dinheiro, e as palavras eram sobre o Imperador e el-Rei de Portugal, como é costume lidarem e brigarem portugueses e castelhanos sobre seus Reis.
Chegando Cristóvão Soares a Sevilha, foi ter com ele João de Melo, por cartas que teve em Lisboa, onde estava, do Capitão Rui Gonçalves da Câmara, em que Ihe mandava que fosse logo ter com Cristóvão Soares, para que ambos fossem em busca de seu filho Manuel da Câmara, onde quer que estivesse, e fizessem com ele que se tornasse para esta ilha.
Acudindo em Sevilha um dia Cristóvão Soares a um arruído com um Francisco Cansado, seu companheiro, um dos pastores, que em dia de S. João tivera a briga com ele nas Forcadas, acertou de se achar naquele mesmo arruído e, vendo e conhecendo a Cristóvão Soares, se foi a um alguazil dos que ali andavam e Ihe disse as palavras que do Imperador Cristóvão Soares falara, mostrando-lhe com o dedo. O alguazil os teve em olho e seguiu até a pousada, onde João de Melo e ele pousavam, e tanto que entrou pela porta do mesão, entrou também nas suas costas e pegou dele, pedindo-lhe a espada, mas ele, tendo mão nela, Ihe dizia que Iha não havia de dar. Dando Francisco Cansado aviso a João de Melo como prendiam a Cristóvão Soares, desceu como estava, em calças e em gibão, com a espada na mão e a capa no braço e, dando com a espada pela cabeça ao alguazil, o fez soltar a espada. Arrancando então Cristóvão Soares, feriu um beleguim, e acudindo muitos alguazis e oficiais da justiça se subiram às varandas todos três, João de Melo, Cristóvão Soares e Francisco Cansado, os quais arrancando os ladrilhos das varandas tiravam de riba com eles à justiça, de maneira que os não podiam prender, nem entrar, tão bravamente se defendiam; e por concerto se deram, prometendo as varas maiores, como cavaleiros que eram, de logo serem livres e soltos, que bem sabiam que eram estrangeiros.
Dando-se, levaram ao calabouço a João de Melo e a Cristóvão Soares e Ihe lançaram a cada um seu grilhão. Em anoitecendo veio um cavaleiro, por nome Garcia Telho ; pediu ao carcereiro a João de Melo e o levou nas ancas da mula até à pousada onde o dito João de Melo pousava, e assim ficou solto. Parece que fez isto por informação que se tomou como João de Melo era fidalgo e não fora com ele a briga, mas com Cristóvão Soares sim, que ficou preso sete semanas, e de Granada veio o seu livramento, que fosse solto e degradado fora de Sevilha e de seus senhorios para sempre, que era o que ele mesmo queria. Ali em Sevilha, tiveram novas João de Melo e Cristóvão Soares que Manuel da Câmara estava em Safim e o seu galeão no porto de Santa Maria espalmando, porque fazia água; e logo se foram em busca do galeão, e informados do piloto onde estava Manuel da Câmara despediram o piloto António Anes, o qual despedido se meteu em um barco e foi ter a Safim com Manuel da Câmara, fazendo-lhe queixume que largara o galeão com medo de o matarem.
Partindo João de Melo e Cristóvão Soares no galeão, caminho de Safim, conhecendo-os o piloto de onde estava, os foi Manuel da Câmara esperar em um barco, uma légua de terra, levando consigo o mesmo piloto António Anes; e entrando dentro Manuel da Câmara, disse a António Anes que tomasse cargo do galeão e mandasse a via. Assim se foram ao porto de Safim. Dali a poucos dias, chegou um moço da estribeira de el-Rei, por sobrenome Godinho, que levava uma carta do mesmo Rei para Manuel da Câmara, em que o mandava chamar, dizendo que tanto que a visse se fosse ter com ele a Alcouchete.
O qual, vista a carta, se fez prestes e se foi embarcar logo com sua gente no seu galeão, em que foi ter a Vila Nova do Algarve, outros dizem que a Ayamonte, no qual lugar tiveram uma briga, em que houve muitos feridos e esteve Manuel da Câmara reteúdo com os seus alguns dias em um castelo, sem se querer entregar à justiça, até que os deixaram ir livremente, donde partiu para Alcouchete, aonde el-Rei estava.
Entrando no Paço, levando consigo catorze ou quinze homens de capa frisada depois de ter beijada a mão a el-Rei, dizendo: — Vossa Alteza me mandou chamar a Safim; Ihe disse el-Rei: — Manuel da Câmara, mandei-vos chamar para casardes com a filha de Jorge de Melo e dai cá a mão. Dando Manuel da Câmara a mão a el-Rei, Ihe disse: — Senhor, eu não caso com a filha de Jorge de Melo, senão com Vossa Alteza, e a Vossa Alteza dou a mão. Com isto ficou o casamento celebrado.
Dali se foi logo embarcar em uma caravela que Jorge de Melo mandou ter prestes, bem consertada, em que foi a Lisboa acompanhado de homens fidalgos que o esperavam.
Foram desembarcar a casa de Jorge de Melo, onde o estava esperando com muita fidalguia dos principais do Reino, e ali logo o recebeu com sua filha, D. Joana de Mendonça.
Depois disto, veio el-Rei a Lisboa fazer-lhe as festas de noite, em serão, onde houve muitas invenções de fogo de pólvora pelo Terreiro do Paço e as damas todas a dançar pelas varandas com tochas acesas, e por fim dançou D. Joana de Mendonça com a Rainha D. Catarina.
Estando daí a dias el- Rei em Évora, levando um corregedor preso um mulato seu, Ihe disse o dito Capitão que Iho desse e, não Iho querendo dar, foi para Iho tomar. Disse o corregedor: — já que me quereis tomar o mulato, dai cá, senhor, a mão; dando-lha Manuel da Câmara, indo o corregedor para Iha tomar, Ihe deu com o pé nela. Mandou-o el-Rei então para Arraiolos, ao castelo, onde esteve preso dois ou três meses e daí, por ordem de Jorge de Melo, se veio para sua casa sem mais pena.
Depois, no ano de mil e quinhentos e quarenta e um, estando el-Rei D. João, terceiro do nome, na vila de Almeirim, Ihe trouxeram recado que o Xerife tinha cercado a vila de Cabo de Gué e posto em muito aperto, pelo que se veio logo à cidade de Lisboa, para daí a mandar socorrer, e mandou muito depressa ao Capitão Manuel da Câmara com alguma gente, dizendo-lhe que nas suas costas Ihe mandaria socorro; o que ele fez à sua própria custa e levou consigo muitos criados seus e de seu pai e de parentes, e se meteu na vila e a defendeu valorosamente quatro meses, com Ihe matarem muita gente e tantos dos seus que de quantos levou consigo não escaparam mais de três criados. E depois da cava entupida e os muros batidos e postos por terra e o baluarte, onde estava a pólvora, ardido, com alguns duzentos homens o entraram os mouros e o tomaram sem nunca Ihe ir socorro dentro nestes quatro meses.
Estando prestes na cidade de Lisboa o galeão São João com doze caravelas de armada e na ilha da Madeira Luís Gonçalves da Câmara com muita gente, e Manuel de Melo, monteiro-mor, seu cunhado, estando em Safim com a maior parte dos moradores dela, sem se poderem embarcar, se afogaram alguns. E quando todos estes socorros chegaram, havia três dias que eram tomados. Foi ali cativo Manuel da Câmara, e determinando de se encobrir, deitando grandes pregões por mandado do Xarife que Iho descobrissem, o descobriu um bombardeiro, cuidando que Ihe dessem a vida que temia Ihe tirassem, pelo muito estrago que havia feito nos mouros com uns falcões pedreiros, que tinha numa estância por onde os mouros cometeram algumas vezes entrar e não puderam; mas, nem isso Ihe valeu, porque como souberam que era o bombardeiro, o fizeram em postas por justiça.
Esteve Manuel da Câmara um ano e meio cativo, três meses metido numa masmorra por prometer pouco por si. Depois que se resgatou o trataram muito bem, mas nunca Ihe tiraram uma braga que era pequena, jogando sempre com o Xarife e com seus filhos e indo à caça de falcão com eles, por ser mui inclinado a isso. Deu por si vinte mil cruzados, afora muitas peitas, porque, se isso não fora, muito mais custara. Além disto, deu mais dois mouros que estavam em Portugal, de resgate, e quando estes mouros disseram lá quem ele era e o que tinha, se quisera o Xarife arrepender do que tinha feito. O Xarife Ihe deu uma alcatifa de felpa de seda da sua cama em que dormisse, que era muito grande, de mais de quatro varas de comprido e três de largo, a qual alcatifa trouxe um seu page , quando se veio para casa do mesmo Capitão e a têm ainda agora seus herdeiros; mas contudo, nem por isso deixava de andar com ferros a bom recado, porque se temiam que fugisse, até que o vieram a pôr em resgate, para ajuda do qual Ihe dava el-Rei seis mil cruzados, que ele não quis aceitar, pagando resgate e despesa, tudo de sua fazenda, pelo que a coroa destes Reinos ficou em grande obrigação à Capitania desta ilha. Em pago do qual el-Rei Ihe fazia mercê de o fazer Conde da vila da Lagoa, que ele não aceitou. Então Ihe fez mercê dos dízimos do pescado desta ilha e de sessenta moios de renda para sempre, nas terras dos próprios que Sua Alteza tem na Relva, termo da cidade, e assim dos ofícios da dita cidade, para que ele os pudesse dar a quem quisesse e por bem tivesse, sem mais confirmação, nem chancelaria, assim o do escrivão da Câmara como o dos órfãos, como todos os mais, tirando os da fazenda de Sua Alteza, coisa até hoje não vista neste nosso Reino em nenhum senhor que tenha chancelaria em sua casa para seus ofícios, sem mais confirmação de Sua Alteza. Também Ihe fez mercê de pôr o morgado desta Capitania fora da lei mental, que é das grandes e particulares mercês que os Reis fazem a seus vassalos.
Pelo que se cumpriu bem o pronóstico do letrado que na vila da Lagoa disse deste senhor que havia de passar por um grande trabalho e ser senhor de grande jurdição.
O qual foi muito liberal e amigo de seus criados, principalmente daqueles que eram homens honrados e que faziam pelo ser. E tão confiado das pessoas de que se confiava, que o tesouro de Veneza era pouco para o fiar delas. É tanto isto verdade que teve muitos criados a quem mandou com fazenda sua a vender a diversas partes, sendo os tais criados mancebos e de pouca idade, e nunca Ihe tomou conta do que em sua fazenda tinham feito. Basta que bem mostrava, assim no que representava, como nas obras, a magnificência de sua pessoa, em tanto que Ihe ouviram dizer muitas vezes que pela honra de um seu criado honrado gastaria o seu morgado de tão boamente como por seu filho Rui Gonçalves da Câmara, tão pontual era nas coisas da honra. Assim teve muitos criados mui honrados, os quais ele não tomava sem os conhecer, ou seus parentes ou se eram de obrigação, porque de outra maneira os não aceitava, e pelo contrário, ainda que fossem de muita obrigação, se os tais criados não faziam o que deviam, Ihe aborreciam de tal modo, que nem olhar para eles queria com bom rosto.
Foi este senhor de tal condição que se fora cobiçoso conforme a muita renda que nesta ilha de S. Miguel teve e ao muito que os moradores dela Ihe deviam das rendas de seu morgado, não há dúvida, antes é mui notório, que se lançara mão das fazendas dos tais, com zelo de Ihe ficarem, que toda a ilha fora sua. Mas muitos Ihe ouviram dizer por muitas vezes aos devedores a que tinha suas fazendas arrematadas, por não haver outro lançador que nelas lançasse: — todas as vezes que me tornardes o meu dinheiro por que vossa fazenda me foi arrematada, eu vo-la darei ou, se achardes quem vos dê mais por ela, sem embargo de ser minha pola arrematação, eu vo-la largarei de boa vontade; fazendo isto facilmente, mais largamente do que o digo.
Por extremo era devoto do Seráfico Padre São Francisco em tanto que dizendo-lhe uma vez nesta ilha um religioso da mesma ordem contra outro frade: — senhor, bem pode Vossa Senhoria mandar embarcar Frei Fuão por tal desobediência ou descortesia que Ihe fez, porque o mesmo fazem os Capitães dos lugares de África com os mandarem com uma carta a Sua Alteza da descortesia passada, porque desta maneira o há Sua Alteza por seu serviço.
Respondeu a isto: — bem sei tudo isso, mas não permita Deus que com a religião de São Francisco, nem com seus súbditos, eu corra. Era tão grandioso em suas obras que começou a fazer uma capela no mosteiro de S. Francisco de Lisboa, tão sumptuosa e custosa quanto palavras não alcançam dizer, mas os olhos podem ver, que serão mais fiéis e verdadeiras testemunhas de sua magnificência e riqueza.
Este senhor foi casado pela maneira que dito tenho, do qual legítimo matrimónio teve cinco filhas e um filho, que é o conde Rui Gonçalves da Câmara, Capitão que ora é desta ilha.
Destas cinco filhas, a mais velha, D. Filipa de Mendonça, foi casada com D. Fernando de Castro, filho de D. Diogo de Castro, alcaide-mor de Évora e capitão-mor e senhor de Alegrete e conde que ora é de Basto, um dos grandes morgados de Portugal, que entre outros tem um filho morgado, chamado D. Diogo de Castro, que casou com uma filha de Lourenço Pires de Távora, pai de Cristóvão de Távora, o grande privado de el-Rei D. Sebastião, chamada D. Maria de Távora. A segunda filha do Capitão Manuel da Câmara, D. Hierónima de Mendonça, não quis casar e rejeitou grandes casamentos de pessoas de título que a pediram, só por ao tal tempo em que seu pai a determinou casar ser de quarenta anos e por esta razão o não quis fazer com propósito de acabar santa e religiosamente; que ainda que não professasse os três votos da religião, ela os cumpria inteiramente, rezando de contino o ofício divino com tanta devação e curiosidade, que não posso cuidar que mais haja na vida, além de outras obras suas de grande virtude e abstinência; a qual dizia por muitas vezes a suas irmãs freiras que queria ser freira rica para sustentar as pobres e ter cuidado delas; desta maneira viveu com grande exemplo de santidade até acabar santamente, como adiante direi. As outras três irmãs, convém a saber, a terceira, D. Margarida, é freira no mosteiro da Madre de Deus de Enxobregas; a quarta, D. Joana de Mendonça, freira em Santa Clara de Coimbra; a quinta, chamada soror Isabel, é freira do mosteiro de Jesus de Setúbal, religiões das mais honradas e de mais virtude e por que Deus faz muitos milagres.
Em especial, nestas senhoras se vê isto bem claro e a todos é notório sua muita virtude, que, podendo ser grandes senhoras, se meteram freiras contra vontade de seu pai, de maneira que com verdade posso afirmar que no Reino não se viu homem nem ouviu dizer que houvesse senhor de tanta renda com filhas tão virtuosas e tão fora do mundo e de suas vaidades, como foram estas irmãs, tendo pai tão rico, pelo que bem têm mostrado a fineza de sua virtude. É de maneira que a mais moça delas, soror Isabel, que está em Jesus de Setúvel, a viram muitas vezes fazer que não jejuava por amor de sua mãe que Iho defendia, e indo à mesa de seu pai onde todos junto comiam, metia o bocado da carne e das sopas na boca com uma vontade que parecia que nunca comia e trazia o bocado tanto dentro na boca sem o gostar, até que com o guardanapo o tornava a tirar, fazendo que se alimpava e o botava aos gatos; e depois de dar graças se ia à casa onde pousavam as mulheres de sua mãe e lá comia uma sardinha com um pão, não muitas vezes alvo, mas de rala e somenos. Deste modo, Ihe não passava jejum nenhum de Santo de obrigação, antes todos os mais que a não têm ela jejuava e os adventos do ano. Basta que a ordem que depois professou, antes muito tempo de a professar, a guardava; pelo que com muita razão se pode dizer que no Reino de Portugal se não pudera achar senhor tão ditoso com filhas, como este foi.
Depois que o Capitão Manuel da Câmara se foi desta ilha e casou no Reino em vida de seu pai, não tornou mais a ela senão depois de seu falecimento, dali a dois anos pouco mais ou menos, trazendo grande casa, acompanhado de muitos pagens, criados e escravos mui lustrosos. Esteve desta vez pouco tempo na terra, como que não vinha senão visitar a Capitoa, sua mãe, viúva, e tomar posse da jurdição e Capitania, tornando-se logo para o Reino, onde esteve alguns anos sem vir a esta ilha. E, como o coração do Rei está na mão de Deus, ainda que aos povos é coisa dura e mal recebida fazerem-se fortalezas à sua custa, sem atentarem seu perigo, inspirado de Deus, el-Rei D. João, terceiro do nome, ou vendo as coisas ao longe e temendo que os luteranos cossairos saqueassem esta ilha e outras, determinou mandar fazer nelas alguns fortes, querendo que os Capitães residissem em suas terras; para o que veio o Capitão Manuel da Câmara a esta ilha a segunda vez, por mandado do dito Rei, no fim de dezembro de mil e quinhentos e cinquenta e dois anos.
Desembarcou no lugar dos Mosteiros, onde o foi receber muita gente de cavalo, acompanhando-o dois dias que pôs no caminho até à vila da Ponta Delgada. Trazia em sua companhia ao doutor Manuel Álvares, que fora corregedor nesta ilha, com armas para a gente e com cárrego de fazer o primeiro lançamento de trinta e três mil cruzados, sendo avaliadas todas as fazendas e alfândega de Sua Alteza, para se pagar a artilharia que trazia e se começar uma fortaleza nesta ilha, cuja traça havia de dar um Isidoro de Almeida, discretíssimo, douto e curioso homem, que, então, andava compondo um livro “De Condendis Arcibus”; e vinha com o dito Capitão, ele e um seu irmão, Inácio de Gouveia, também de raro engenho e discrição. Trazia o doctor por escrivão do que fazia e almoxarife das armas, que o povo pagou, a Simão Cardoso, e para começar a fazer exercício de guerra, veio um João Fernandes de Grada, desta vez por sargento-mor.
Correndo o Capitão a ilha toda à roda, ordenou, por mandado de el-Rei, capitães e bandeiras com seus oficiais, dos mais nobres que achava em cada uma das vilas. Na cidade da Ponta Delgada fez quatro capitães: Jorge Nunes Botelho, Gaspar do Rego, Mendo de Vasconcelos e Álvaro Velho, com seus alferes e sargentos e mais oficiais. Em Vila Franca fez também os capitães que já tenho dito. E na vila da Ribeira Grande três bandeiras de duzentos e cinquenta homens, cada uma: o primeiro capitão, Rui Gago da Câmara, alferes, António de Sá Betencor, sargento, Pero Lourenço; o segundo capitão, João Tavares, alferes, Gaspar de Braga, a que sucedeu Ciprião da Ponte, logo Baltasar Tavares, que depois foi capitão da mesma bandeira; o terceiro capitão, Gaspar do Monte, alferes, Diogo de Morim, seu genro. E em Rabo de Peixe, termo da dita vila, fez capitão Fernão de Anes, pai do licenciado Bertolameu de Frias, com os oficiais necessários para o dito cargo. Feito isto no mês de Junho de mil e quinhentos e cinquenta e quatro, durou assim até o ano de mil e quinhentos e setenta e um, em que se mudaram os capitães e fizeram capitão-mor a Rui Gago da Câmara.
Neste meio tempo, foi o Capitão Manuel da Câmara ao Regno e se tornou por mandado de el-Rei para defensão da terra na era de mil e quinhentos e setenta e seis anos da Fonseca, que foi o segundo sargento-mor) trazendo consigo a seu filho D. Rui Gonçalves da Câmara e esta foi a primeira vez que o dito D. Rui Gonçalves veio a esta ilha já casado. E esteve então o capitão Manuel da Câmara perto de oito anos nesta terra, em que ajuntou grande tesouro porque tinha mil moios de pão cada ano, afora a redízima das entradas e saídas na Alfândega, que muitas vezes montavam quinhentos, seiscentos mil réis; e para carregar uma sua caixa de dinheiro em um carro, oito valentes e forçosos homens Ihe não puderam dar vento, que levou para o Reino. E segundo alguns têm deitado conta, tinha e tem agora melhorados o Capitão desta ilha, cada mês, mil e quinhentos cruzados de renda e cada dia mil réis e cada hora oitocentos réis, mas segundo a experiência, que é mais certa conta, tem o que já tenho dito, que é muito mor contia.
Ao sargento-mor pagava el-Rei de um tributo que se pôs de dois por cento de saída; depois mandou que se pagasse das imposições das vilas, pondo-lhe outras obrigações e, a petição dos povos que tinham necessidade delas para as igrejas, pontes e fontes, médicos, aposentadorias, enjeitados e outras coisas urgentes, Ihe concedeu el-Rei, também em tempo do dito Manuel da Câmara, as imposições, contanto que se fizesse outro lançamento, o qual fez Fernão Cabral, provedor de sua fazenda, de onze mil cruzados, pelos quais compraram os povos as imposições, por Ihe ficarem livres para as coisas sobreditas, consentindo neste lançamento; e assim foi julgado no Reino que as provisões que depois houveram Simão de Quental, terceiro sargento-mor, e o conselheiro Cristóvão de Crasto, para Ihe pagarem seu ordenado das imposições de toda esta ilha, prorata, não se cumprisse nesta parte, porquanto os povos tinham compradas as imposições pelos ditos onze mil cruzados. O terceiro lançamento se fez também em seu tempo pelo provedor Duarte Borges de Gamboa. Manuel Machado, natural desta ilha, foi o primeiro mestre das obras de el-Rei que começou a fazer a fortaleza. E depois prosseguiu na obra dela Pero de Machado e outros mestres das obras de el-Rei. O Capitão e eles eram murmurados do povo, que não olha senão o presente. Mas o tempo Ihe tem bem ensinado e desenganado quão necessária era a fortaleza na terra.
Foi curioso este Capitão de ver coisas novas na terra, pelo que mandou trazer de Londres, por Baltasar Tavares, extremado cavaleiro, alguns cirnes que duraram algum tempo nela, e uma águia. Tinha também em sua casa falcões e açores. Fez vir de Portugal cinco casais de perdizes que na era de mil e quinhentos e sessenta e um, por seu mandado, o licenciado Francisco Pires Picão, seu ouvidor, e António Correia de Sousa e Pedro Homem, seu escrivão, deitaram acima da cidade da Ponta Delgada, na Fajã de Gaspar Ferreira. E depois mandou deitar outras na Atalhada, para a banda da vila da Lagoa, por João Lopes, seu meirinho, as quais multiplicaram tanto e há na terra tanta abundância delas que se arreceia fazerem perda nas novidades. E as que o Capitão Rui Gonçalves da Câmara, seu pai, mandara deitar antes, sem multiplicação morreram.
A Capitoa D. Joana de Mendonça foi mulher de grande virtude, mui senhora e grandiosa, pelo que nunca quis vir a esta ilha, além de outras razões que a isso a moviam, porque a qualquer pessoa é coisa dificultosa e cara mudar o lugar da criação e natureza, quanto mais a uma senhora da sua qualidade. Faleceu alguns anos antes do Capitão, seu marido, e foi enterrada na sua rica capela, que tem no mosteiro de S. Francisco de Lisboa.
Depois que o Capitão Manuel da Câmara se partiu desta ilha a última vez que tenho dito, levando consigo grande tesouro de dinheiro amoedado para o Reino, veio de lá D. Rui Gonçalves da Câmara, seu filho morgado, por mandado de el-Rei a governar a Capitania por seu pai; ao qual, em Lisboa, estando-se um domingo vestindo às nove horas do dia para ir à missa, Ihe deu mal de parlesia , a que o povo chama ar, com que logo perdeu a fala, aleijado da parte direita, com a boca a uma banda. Durou cinco dias, nos quais se confessou e recebeu os sacramentos da comunhão e unção, com que partiu para a outra vida, bem julgado do povo da sua freguesia das Martes e de toda Lisboa. Tanto que enfermou, foi logo seu genro D. Fernando de Castro para casa, com sua mulher D. Filipa, e estando à quarta-feira já com a agonia da morte, dizem que se chegou à cabeceira uma pessoa de casa por algumas razões que tinha e cortou-lhe uma fita do pescoço com cinco chaves; feito isto, deu-lhe Deus ainda vida, com que tornando sobre si se reconciliou com Frei João Cordovil, da ordem de S.
Francisco, ao qual disse: — padre, acabando eu, entregareis estas chaves a D. Joana, minha nora, porque são suas e toda esta casa. Indo o padre para Ihe tirar as chaves, se não acharam, de que se muito agastou, e disse ainda: — grande atrevimento foi este, a muito se atreveu quem tal fez, muito mal feito é tomarem as chaves a meu filho e bulirem-lhe com os seus papéis. Com isto lidou tanto, que veio logo Manuel de Melo e D. João Telo, seus cunhados, com as chaves, tornando-lhas a pôr no pescoço; e ele disse: — não é esta a fita que elas traziam. Então as tomou o padre confessor para as dar a D. Joana; ela as não quis aceitar e se foi para cima, a seu aposento, agravada. D. Hierónima caiu em cama, muito doente de um vágado que Ihe deu, recolhendo-se com D. Filipa, sua irmã.
Não faltou em casa quem vendo esta revolta o fosse fazer a saber ao conde do Redondo, irmão da Capitoa D. Joana, e ao comendador-mor, seu cunhado, avisando-os do que era passado, os quais logo foram presentes, aonde o comendador-mor e um irmão do conde, mancebo, e outro cunhado do mesmo conde, assistindo também o senhor D. Teotónio, arcebispo de Évora, filho do duque de Bragança, onde todos estiveram aquele dia todo sem comer nem beber, até as nove horas da noite, em que acabou de expirar o dito Capitão.
Depois de morto e amortalhado no hábito de S. Francisco, estendido sobre uma alcatifa, com muita cera acesa e sua cruz de prata à cabeceira e uma caldeirinha de água benta aos pés, entrou diante, onde assim estava, o dito arcebispo e o comendador-mor, logo D. Fernando e o conde detrás, aonde estavam os da casa fazendo seu pranto, e, depois que Ihe deitaram água benta e rezaram por sua alma, chamaram o padre confessor. Estando o conde de una banda do escritório, o qual aberto, buscando pelas gavetas, achou-se nele em uma folha de papel um breve testamento, no qual deixava a seu filho D. Rui Gonçalves da Câmara por seu universal herdeiro e testamenteiro, tomando trezentos mil réis de sua terça para se gastarem por sua alma em três ofícios de presente, e aos oito dias e mês, deixando aos padres de S.
Francisco de esmola por cada ofício cinquenta cruzados, com oferta de um moio de trigo e uma pipa de vinho; e outros três ofícios na sua freguesia, com dez mil réis de esmola por cada um.
Dizia também que o levassem os religiosos sem pompa no ataúde, com um pano preto, e que não chamassem nenhuns fidalgos, senão os seus criados somente o acompanhassem, a quem pagassem muito bem seus serviços, o que tudo se fez como dizia.
Antes que o levassem a enterrar, se fez de vestir de dó para todos seus criados, e de seu genro e nora, em que foram quinze capuzes, afora pages e moços de esporas, que tinham cargo de espevitar as tochas. Os religiosos de S. Francisco, com todo o convento e os padres das Martes , o levaram e a cada um se mandou dar círio de cinco arráteis de cera que levavam nas mãos, afora trezentas tochas que ardiam no mosteiro, enquanto se fizeram as exéquias e um solene ofício. Foi enterrado na sua rica capela, onde já dantes a Capitoa D.
Joana de Mendonça, sua mulher, estava sepultada.
Nasceu este ilustre Capitão na era de mil e quinhentos e quatro e faleceu em Lisboa nas suas casas, que tinha na freguesia das Martes , aos treze dias do mês de Março da era de mil e quinhentos e setenta e oito , sendo de idade de setenta e quatro anos, dos quais quarenta e três governou a Capitania, por si ou por seu filho D. Rui Gonçalves da Câmara, que então estava nesta ilha governando por ele. Foi muito humilde, afável para todos e para ninguém avaro da cortesia.