Na dita era de mil e quinhentos e sessenta e três anos, a vinte e dois dias do mês de Junho, se sentiu na vila do Nordeste começar a tremer esta ilha e foi tremendo mansamente até uma segunda-feira, véspera do Apóstolo S. Pedro, que foram vinte e oito do dito mês, em que tremeu tão fortemente e tanto que caíram a maior parte das casas na vila de Água do Pau e da vila da Ribeira Grande, onde caiu o mosteiro das freiras e uma igreja de S. Pedro e uma ermida da Madre de Deus e quase todas as casas da Ribeira Seca. Logo no mesmo dia, uma hora e meia da noite, começou a terra, em toda a ilha, da parte do norte e sul, a tremer e a fazer um tom a modo de urro de touro, muito espantoso, e após ele deu um mui temeroso trovão, de tal modo nunca ouvido. E logo da parte do norte, desde a ribeira do Salto até o morro do Nordeste, que são nove léguas ao longo da costa, começou a chover cinza tão branca e miúda que parecia peneirada, e depois muita pedra pomes, tão grossa como avelãs, e daí para cima, até serem, em muitas partes deste espaço e léguas, tamanhas pedras como pipas, que caíam pela serra daquela comarca; mas, a maior quantidade eram como avelãs e nozes, e maiores dos matos para baixo, chovendo-as toda a noite da véspera de S. Pedro, até que foi manhã, que tardou por se o sol eclipsar, e sendo vinda se tornou o dia a fazer noite, das oito horas até às onze, ainda que em alguma parte destas dez léguas se viu o sol. E o dia seguinte de S.
Pedro, que era terça-feira, se tornou a fazer noite muito obscura até uma hora e meia de dia, que tornou a dar uma claridade à maneira de labareda de fogo, chovendo em todo este tempo cinza e pedra pomes.
Tornou a anoitecer com uma noite muito obscura, sendo já dez dias de lua, a qual nunca foi vista, nem planeta, nem estrela que desse claridade, somente a noite que começou com muitos e mui temerosos trovões e espessos fachos de fogo, que punham grande temor, por serem tantos e tão contínuos que estava sempre o céu ardendo da banda do sudoeste, aos que estavam da parte do norte, e aos da parte do sul ficava esta nuvem que ardia em fogo da parte do norte e do nor-noroeste. Toda esta noite de terça-feira choveu pela costa do norte a dita pedra e cinza misturada com enxofre e lama, de maneira que ora vinham os chuveiros com pedra, ora com cinza, ora com areia e enxofre, ora com lodo muito fedorento, mais que um peçonhento lamarão de maré, que não havia, pelo grande fedor que tinha, quem lhe tivesse o rosto direito.
Desta maneira esteve a noite até que amanheceu a quarta-feira, trinta de Junho, em que foi visto o sol alumiando com a claridade e lume esbranquido fora de sua natureza, porque qualquer pessoa olhava com os olhos direitos para ele, como lua cheia, e sendo horas de meio-dia, da nuvem que estava da parte do sudoeste começaram a vir correndo para a banda do norte e nordeste umas nuvens muito obscuras e negras, de modo que tolheram a claridade ao sol e foi-se tornando o dia em noite, o qual parecia a mais triste e obscura que nascidos no mundo viram; as quais nuvens começaram a dar muitos e espantosos trovões, misturados com bastos fachos de fogo, que parecia arder toda a ilha, chovendo muita e grossa pedra e lama mui fedorenta. Estando assim nesta obscuridade e trevas até uma hora de sol, que tornou a ser claro, com uma claridade azulada e amarela, como fogo de enxofre, e pela mesma maneira fedia e punha grande temor e espanto, tornando a anoitecer, foi a noite muito mais espantosa e temerosa que nenhuma, assim de muito obscuro e de muitos e amiudados trovões, grandes e terribeis , e infinda chuva de pedra, que em toda a noite nunca um momento deixou de chover. Amanheceu a quinta-feira, primeiro de Julho, uma manhã triste e mui obscura, por todo o céu e sua redondeza, estando a nuvem dos castelos mais feia que dantes, chovendo muita cinza, pedra e lodo, e ventando muito e espantoso vento sudoeste, até o meio-dia, em que estiou e deixou de chover pedra, mas tornou a chover da véspera por diante muita e grossa água, a qual fez grande e forte taipa nas terras com a lama e pedra pomes, de maneira que não se podia andar por cima, polas pedras ficarem tão calçadas com a lama, que pareciam aguilhões e pontas de diamães ; também com a água, se fizeram pelas terras muitos e bastos grotilhões pela pedra pomes e lama, os quais chegavam até à nossa primeira e boa terra, com a qual água e corrente se acabaram de perder as novidades de pão e de toda a sorte, que estavam as melhores que nunca foram de quarenta anos até então; de modo que ficaram as terras da parte do norte todas alagadas e as novidades acravadas, por ficar a pedra e cinza chovida, o mais baixo, de altura de três palmos e daqui para cima, até quinze e vinte, e nos matos muito mais, pela qual pedra, pó e lodo, toda a dita terra; assim de criações e pastos de gados e terras de lavranças ficaram tão perdidas que, segundo o parecer então de todos, nunca mais dariam erva, nem fruto, senão permitindo-o Deus por sua misericórdia.
Dentro nestas nove léguas assim alagadas, estão sete freguesias e a vila do Morro do Nordeste, que darão cada ano, uns por outros, trezentos moios de trigo de dízimo, o melhor e mais limpo de toda a ilha, afora pastel, cevada, centeio, milho e outros legumes. Era terra de muitas e boas criações de todo o gado vacum, cabrum e ovelhum, e muitos porcos e bons cavalos, e as frutas que dava eram todas como de Portugal. Com este dilúvio, morreram todos os pássaros de toda a sorte, havendo tanto número deles que faziam perda nas novidades, principalmente canários, sachões, mélroas e codornizes, que se metiam pelas casas entre a gente, como que pediam socorro e refúgio de seu trabalho e morte, o que também os coelhos faziam, vindo a morrer nas casas, e pelos caminhos os acharam mortos. E os pombos tomavam às mãos, sem se quererem alevantar nem fugir, e o mesmo faziam os gados.
Também nestes dias foi tanta e tão grossa a madeira que andava no mar, que do ar caiu das nuvens, que não tinha conto, com infindos gados de toda a sorte, o que tudo foi achado quarenta léguas desta ilha pelos navios que para ela vinham, dentro nos dias deste terramoto, pelo que parece claro serem levados pelo ar e não das enchentes, polas não haver senão à terça-feira seguinte, seis dias do mês de Julho, em o qual dia a lua foi eclipsada quase toda e choveu na serra, da parte do norte, tanta água que encheram as ribeiras em tal maneira qual nunca até então foram vistas encher. Nos dias atrás da quinta-feira, primeiro de Julho, foram achados muitos bois, cabras e ovelhas, o mesmo espaço de quarenta léguas desta ilha, por alguns navios que vinham do Reino para ela e acharam tanta quantidade de pedra pomes na dita paragem que vieram a dar em oito palmos de alto da dita pedra, e quase ficaram enxorados em seco, vindo com tormenta de sudoeste que não podiam trazer mais de uma vela; tanto que se viram enxorados na restinga da pedra pomes, que dizem seria tão larga como um quarto de légua e tão comprida como uma vista, dando logo todas as velas se não podiam sair, por os navios se não poderem bulir entre a dita pedra, pelo que lhes foi forçado às varas com força se lançarem fora dela, o que lhes foi a todos grande pavor e medo, cuidando ser a ilha alagada e metida debaixo do mar. Eram estes navios uma caravela de Alfama e uma naveta de Viana, que vinha carregada de vinhos, os quais, com outros muitos que do Reino para esta ilha vinham, disseram achar muita quantidade de cinza que lhe chovera à quarta-feira, derradeiro de Junho, e à quinta, que foi o primeiro de Julho; e a muitos choveu tanta que às pás a lançavam fora do convés, por se não alagarem, afirmando os pilotos e toda a mais companhia que seriam no tal tempo oitenta até noventa léguas desta ilha, achando também muita e grossa madeira com toda sua frança, que lhe pareciam navios alagados, tanta e tamanha era e toda retorcida. Toda esta madeira, pedra pomes e lama traziam as nuvens de um pico, que estava na serra sobre a ribeira da Praia e sobre a vila de Água do Pau, o qual ardendo fez uma boca de uma légua e meia em redondo com grande concavidade, sobre o qual estava sempre a nuvem dos castelos, e ao longo deste pico, entre ele e outros, estava uma grande alagoa, donde se presume que nasciam duas ribeiras, a da Praia e a da vila da Ribeira Grande, a qual alagoa secou e as ribeiras também foram quase secas, levando tão pouca água que por algum tempo não moeram os moinhos, assim de uma como da outra.
Deste pico lavrou o fogo por debaixo do chão e foi dar em outro, que chamam o pico do Sapateiro, que está sobre a Ribeira Grande, da parte do norte, o qual começando arder a terça-feira, começou depois a correr dele uma ribeira de fogo pela Ribeira Seca abaixo até chegar ao mar, correndo mansamente como metal derretido, por fazer fio como alféloa, sendo pedra que estava fervendo e fazendo grande estrondo quando entrou no mar, onde fez um grande cais ou ilhéu de penedia, ficando, ali, e por toda a ribeira acima um bravo biscoutal da feição dos outros biscoutos desta ilha, que pela mesma maneira em outros tempos correram.
Depois, correu outra ribeira de fogo do dito pico, que acabando de resfriar ficou tudo o que corria feito pedra de biscouto, fedendo muito a enxofre.
Na vila do Nordeste e seu termo foram nestes dias vistas grandes e espantosas visões, terrores e medos, e se fizeram excessivas penitências, principalmente uma moça que as fez maiores que todos. Tão desmaiados andavam, que achando-se aí então o licenciado Rodrigo Afonso Azinheiro, juiz de fora na cidade, lhe foi necessário subir na igreja Matriz ao púlpito e dali como pregador consolar, esforçar e animar o povo e buscar bocetas de marmelada para repartir com os doentes do desmaio, porque ali choveu muita cinza e pedras de diversas maneiras e granduras e desceu do fogo que cuidavam ser do céu um raio e língua mui grande, entrando assim solta na igreja onde estava muito povo e visivelmente se tornou em uma horrenda figura de um bravo leão, todo de fogo, que parecia queimar toda a igreja e quantos nela estavam, dando espantosos rugidos, e logo desapareceu com grandes estouros. E na mesma vila caíram de noite muitas casas e algumas igrejas.
Na freguesia de S. Pedro da Lomba, termo da vila do Nordeste, onde as primeiras coisas atrás ditas foram vistas, se achou também Bartolomeu Nogueira, homem nobre e de grandes espíritos e animou e esforçou a gente, andando com ela sempre em procissões com a ladainha, servindo nisso, pelo vigairo da dita freguesia enfraquecer, por ser velho, com o temor do tal trabalho. E, indo um dia dos acima ditos, com todo o povo em procissão, para uma ermida de Santo António, que está na mesma freguesia, da qual a ela se metem duas grandes ribeiras, chegando no cimo da primeira, indo com a ladainha e todo o povo, grandes e pequenos, respondendo — ora pro nobis —, desceu da serra pela grota abaixo uma nuvem negra, espessa, horrenda e feia, e tanto que chegou sobre toda a gente deu um mui grande e espantoso trovão, caindo dela muito brazido e fachos de fogo, os quais eram paus que vinham ardendo dentro na nuvem; e ao dito Bartolomeu Nogueira caiu uma faísca sobre a mão esquerda em que levava as Horas de Nossa Senhora com que ia dizendo a ladainha, a qual deu tanto medo ao povo que logo quiseram fazer volta e tornar-se a recolher para a igreja de S.
Pedro, onde era sua colheita, o que Bartolomeu Nogueira lhe não consentiu, persuadindo-os que fossem avante, seguindo sua romaria, porque aquilo era obra do demónio para os estorvar de sua devação e bom propósito. Tornando a caminhar, como dantes em sua procissão, a mesma nuvem começou a correr ao mar pela ribeira abaixo, com tanta obscuridão e fealdade que metia pavor, ficando o ar por detrás dela algum tanto mais claro. Chegaram à ermida de Santo António, donde acabadas suas orações se tornaram para a igreja de S. Pedro que era o seu castelo, onde, quando chegaram, já não viam o caminho. Nesta igreja estiveram sempre recolhidos desde a véspera de S. Pedro, em que começou a chover a cinza e pedra até que se acabou toda a tribulação e tempestade.
Estando recolhidos na dita igreja a horas do meio-dia, que estava tão obscuro que se não enxergava nada, apareceu fora na rua um lume como de uma candeia, em altura de uma lança do chão, o qual parecia azul e amarelo. E, sendo chamado o dito Bartolomeu Nogueira para o ver, saiu fora da igreja, e vendo-o mandou sarrar as portas por lhe parecer que podia ser alguma lucerna reverberada do lume que dentro estava. Mas, antes de as sarrarem, a dita candeia entrou pela porta e foi correndo por cima da gente como um foguete, sobre cujas cabeças fez dois lumes, um para baixo, e outro para cima, e no meio deles ficou uma meia lua e sobre ela um vulto de grandura de dois palmos, com as vestiduras brancas e o manto preto, como de S. Domingos, o qual vendo todos mui claro, chamando uns que era Nossa Senhora do Pranto, e outros pelo Corpo Santo, mas afirmando-se mais que era Nossa Senhora do Pranto , chamavam a grandes brados por ela, que lhes valesse em tal aflição. Visto isto assim, pela maneira dita, logo o dito lume se tornou como entrou, em modo de foguete, a pôr no lugar onde aparecera e daí a um momento desapareceu; cuja vista deu boa esperança a todo o povo com as palavras de consolação e esforço que o dito Bartolomeu Nogueira lhe dizia, o qual, todos aqueles dias trabalhosos e obscuros, tinha cuidado de mandar subir gente acima do telhado da igreja de S. Pedro, com tábuas e algumas pás e com as telhas a descarregá-lo da cinza e pedra que de contínuo em cima lhe estava chovendo, o que, se não fizera com tanta diligência, sem dúvida caíra e matara a mor parte do povo que dentro sempre estava.
Seriam passados cinco ou seis dias deste tão trabalhoso dilúvio, quando o mesmo Bartolomeu Nogueira ordenou com todos que fossem em procissão a Nossa Senhora do Pranto, cuja igreja acharam toda alagada, com a porta aberta por onde se alagou, e tinha cinco palmos de alto de pedra, lodo e água dentro, como nas paredes está bem matizado, em que se mostrou como um milagre para sua consolação, que foi ficar o altar todo enxuto pela dianteira e lados, sem chegar nenhuma água, lama nem pedra ao frontal, nem a parte alguma do altar, estando pelas paredes de toda a ermida, até por detrás dos lados do altar, um risco, como feito com régua, que mostrava a altura de água que nela tinha entrado, de que todos pasmaram e louvaram a Deus, por verem que a água não ousara de chegar ao altar da Senhora e lhe tivera reverência. Dali a três dias, a tornaram a despejar de toda a pedra, cinza e lama que dentro tinha, que era em muita quantidade. E a descarregaram de cima, maravilhando-se como não caíra com tanta carrega, que tirada de cima ficou o telhado igual da terra, pela muita que se despejou dele.
Outras muitas coisas foram vistas, por muitas pessoas, de prodígios, figuras e fantasmas, que seria longo processo contá-las.
Também indo sete homens da freguesia da Chada Grande, em romaria à dita casa de Nossa Senhora do Pranto, e tornando a horas de meio dia, se lhe fez o dia noite, muito obscuro, e indo em uma ribeira, que se chama da Mulher, chamando eles pela mesma Senhora donde vinham, por não verem por onde ir, de improviso se lhes pôs nos bordões a cada um uma claridade de candeia, com que se viram uns a outros e puderam caminhar, até se tornarem para sua freguesia.
No lugar da Chada Grande, estando o vigairo um dia, mais obscuro que a noite, dentro na igreja recolhido com todo o povo, com a porta principal sarrada e a travessa aberta, não se vendo nem conhecendo uns a outros, senão pela fala, fora da igreja e dentro nela, com a claridade dos círios e tochas, até vésperas em que, tornando já claro, viram todos pela porta travessa entrar uma coisa à maneira de nuvem grossa e negra, redemoinhando e foi até o cruzeiro da dita igreja; daí tornou para trás até meio dela, onde inchou como uma grande botija e arrebentou, dando tão grande estouro como uma bombarda, lançando fogo de si, a modo de labareda quando dispara algum tiro, de que a gente toda ficou pasmada e fora de si e uma mulher quase morta, dizendo depois que a força daquele fogo a derreara. E ao dito vigairo deu aquele ímpeto nos peitos. Nestes lugares da Chada Grande, Achadinha, Fenais da Maia, Maia e Porto Formoso se fizeram muitas procissões e penitências, e na Maia andavam os meninos em procissão, todos nus, no tempo desta angústia, pedindo a Deus misericórdia.