Com o terramoto segundo e fogo que arrebentou da alagoa que estava na cova do pico das Berlengas, entre a vila da Ribeira Grande e Vila Franca do Campo, no meio da serra se alevantou tanto cinzeiro e pedra pomes que obscureceu o ar todo por espaço de três dias pelos Fenais, Achadas, Maia, até junto de Porto Formoso, que não se viam os homens uns aos outros no meio dia, nem iam buscar água para beberem, senão com círios e candeias acesas; nos quais dias caiu tanto cinzeiro e pedra pomes no mato, que toda aquela parte dele, do Porto Formoso até o Nordeste, ficou coberta e acravada, altura de oito, dez palmos, sem ficar pasto algum, com que o gado se mantivesse. E, em algumas partes, em que ficaram algumas árvores, o vieram manter com alguma rama que delas lhe cortavam, por não terem outra comedia. E tão costumados estavam já a este pasto da rama cortada que, indo algumas pessoas buscar o seu gado pelos matos e não achando onde o descobrir, usavam de manha para o poder tomar, subindo-se um homem em uma árvore ou pau alto do mato, onde estava dando pancadas com outro, como que fendia e cortava rama; e ouvindo o gado, onde quer que estava tresmontado, aquelas pancadas, cuidando que lhe cortavam rama naquela parte onde as ouviam, para ele comer como costumava, acudia logo ali uma rez de uma parte, outra da outra, e assim se ajuntavam naquele lugar onde cada um dos pastores tomava o seu.
Não somente caiu cinzeiro e pedra pomes nos matos, onde destruíu muitos pastos, madeira e lenha, mas também nas terras de pão três palmos e dois e meio o menos de altura, e daí para riba até cinco e seis, como no mato e serra, quatro, cinco, seis palmos, e em outras partes mais e menos, misturada a pedra pomes, cinza e lama, de modo que fazia um bitume mui duro e tão forte que, dando três e quatro vezes com a enxada nele, não o podiam entrar, nem descobrir o solo da terra boa. E ficaram grotas e caminhos atupidos, tudo raso, e perdidas as terras todas e mato, por aquela parte, ficando as árvores, umas quebradas, outras secas com a quentura do fogo, outras torcidas e outras acravadas.
Estando assim perdidas as terras, sem esperança de remédios por se verem perdidos os homens, tendo assim suas terras cobertas desta praga e bitume, sem ter que dar de comer ao gado e bestas, a necessidade, que é boa mestra, os ensinou a buscar um remédio para alimparem algumas terras, principalmente as íngremes e dependuradas, com águas e levadas de ribeiras. O qual remédio custou muito dinheiro e trabalho a muitos; e na dita obra morreram alguns homens e outros ficavam tolheitos de frialdade, andando dentro na água muitos dias, por serem as águas frigidíssimas, saídas de perto debaixo da terra fria; o qual trabalho não tiveram os da parte do Nordeste tão grande, porque, ainda que ficou coberta de pedra pomes, era solta a que por lá caiu, sem mistura de cinza, terra e areia, como a outra; e por isso se puderam limpar as terras dela com mais facilidade e menos trabalho e custo.
Dizem que o primeiro homem que principiou a limpar as terras com água foi um, chamado João de Santilhana, que começou a limpar um cerrado com uma pá, e vendo ser cousa tão trabalhosa que lhe pareceu impossível, tirou então a levada que ia para o moinho do Cachaço, que atravessava ali todas as terras. E alimpando algumas suas com ela, todavia pelo trabalho incomportável que tinha, desconfiado de as poder limpar, as vendeu por pouco preço, sendo elas antes de muito, e se foi para o Brasil, e no caminho morreu. E sua mulher e um genro que tinha e três filhas de bom parecer, uma das quais dizem que era a mais formosa mulher que então havia nesta ilha, dando a nau em que ia na costa do Brasil, ou em outra de cafres, onde, os que escaparam com vida na importuna viagem, iam tão desbaratados e fracos, que não havendo neles resistência nem defensão, foram cativos daquela gente bárbara. O rei e rainha da terra, vendo aquela mulher tão formosa, a levaram com os mais, fazendo-lhe por amor dela bom gasalhado, dos quais não se sabem mais novas, em que pararam; por fugirem de suas terras, que viram perdidas com o cinzeiro e pedra pomes, com saudades delas, foram ter a outras maiores saudades em terra alheia.
A pedra pomes que caiu no Nordeste, como era solta, sem bitume, foi fácil de alimpar, porque até o vento a levava de uma parte para outra; e às vezes tornava a cobrir o que já tinha descoberto e limpo. Se ventava vento rijo danava-lhe e escozia-lhe as searas que tinham semeadas. Até as pessoas então se escondiam nas casas, fugindo da pedra que os açoutava e escozia e às vezes os escalavrava.
Vendo que não tinham remédio tantas terras e tão boas, tão perdidas, um homem nobre e principal que naquelas partes morava, nos Fenais da Maia, chamado Manuel Vieira, cidadão dos da governança de Vila Franca do Campo, buscou arte para remediar tanto dano. Este Manuel Vieira é filho de Fernão Vieira e neto de Pero Vieira e de Álvaro Lopes de Vulcão, o qual Pero Vieira era irmão de D. Violante, mulher de Pedreanes do Canto e mãe de João da Silva, único seu filho, porque só este teve Pedreanes do Canto dela, que era sua segunda mulher, além dos outros filhos que teve da primeira. Veio o dito Pero Vieira a esta ilha, de Lisboa, de casa de seu pai Duarte Galvão, que aí morava, por se casar contra sua vontade; e trouxe sua mulher, a qual deixando nesta ilha, se tornou a Lisboa em tempo de el-Rei D. Afonso, quinto do nome, quando havia guerras entre Portugal e Castela. A este mesmo Pero Vieira mandou o dito Rei D. Afonso naquele tempo por embaixador a Castela, e depois de tornado lhe deu o hábito de Cristo, com que veio a esta ilha buscar sua mulher, que levou para o Reino, onde viveu e acabou entre seus parentes, os Galvões, cujas armas ele tinha, deixando nesta ilha filhos e filhas, um dos quais foi Fernão Vieira que viveu na vila da Alagoa, homem principal e abastado; o qual, entre outros filhos que houve de sua mulher Eva Lopes, filha de Álvaro Lopes de Vulcão e de sua mulher Mécia Afonso, da geração dos Machados, da ilha Terceira, que também são fidalgos, houve um que se chama Manuel Vieira, que acima disse, cidadão de Vila Franca e da governança dela, rico e abastado, casado primeiro com Mor da Ponte, filha de Sebastião Afonso, homem nobre, morador no lugar do Faial, e de Constança Rafael, fidalga do tronco dos Colombreiros, e agora casado com Petronilha de Braga, filha de António de Braga e de Francisca Feia, da Vila da Ribeira Grande. O qual Manuel Vieira, por ser homem poderoso e bem entendido, vendo aquelas terras perdidas com o cinzeiro e pedra pomes, quis experimentar todos os remédios possíveis que pôde inventar para as restaurar com grande custo de sua fazenda.
Primeiramente, o dito Manuel Vieira, o primeiro ano seguinte de mil e quinhentos e sessenta e quatro, depois do terramoto, semeou todas as cousas que pôde, trigo, cevada, centeio, linho, abóboras, junça, chícharos, lentilhas e todos os mais ligumes sobre o cinzeiro e pedra pomes, e tudo nasceu bem; mas, vindo o tempo quente, se tornou amarelo e secou, por ser a pedra pomes seca e não ter virtude para poder criar, por lhe faltar humor. O que vendo ele, determinou de lavrar a terra, onde havia mais pouca altura de pedra pomes e cinzeiro, e rompê-la bem alta, calabreando-a com arado grande e três juntas de bois, para que chegasse à terra boa, por ver se envolta com a cinza e pedra pomes podia frutificar. A qual experiência, que fez o terceiro ano seguinte, de sessenta e cinco, lhe aproveitou, porque onde chegava o arado à terra boa deu muito pão, onde viu que a raiz do trigo ia abaixo, pela pedra pomes demovida com o arado, três palmos e meio buscar a terra boa e por isso frutificava. E houve bom pão naquele ano.
O que vendo o dito Manuel Vieira, logo o outro ano seguinte lavrou as terras pela mesma maneira, que lhe deram também fruto e respondeu bem a novidade, por chegar a raiz do trigo abaixo à terra boa, de que gozava. Mas, considerando que esta pedra pomes e cinzeiro era tanto que envolvendo-se com a terra boa a danaria e comeria, por onde viesse a não aproveitar, fazendo-se estéril, imaginou um remédio maravilhoso, que, ainda que no princípio pareceu dificultoso e sem proveito ao Capitão Manuel da Câmara e a outras pessoas, todavia foi muito proveitoso. E com ele foi causa o dito Manuel Vieira de se restituírem as terras ao estado antigo da fertilidade que dantes tinham, desta maneira.
Vendo Manuel Vieira serem muitas daquelas terras de dependuradas e outras chãs, e haver por ali muitas ribeiras de águas que se podiam tirar, com lhe fazerem levadas, imaginando que com elas se podiam alimpar as terras de pedra pomes e cinzeiro, e ficarem no solo, como dantes, o foi praticar com o Capitão Manuel da Câmara muitas vezes, por ser seu amigo e lhe ter cargo de muita fazenda sua, dizendo-lhe que com levadas das ribeiras de água, lançadas pela terra, e homens com enxadas a cavar na pedra pomes e cinzeiro e deitar nas levadas que iam ter ao mar, seriam restauradas suas terras, o que o Capitão teve por cousa impossível. E porfiando ambos muito neste negócio, entreveio nisso Francisco de Arruda da Costa, homem de grandes espíritos e bom entendimento, parecendo-lhe bem as razões de Manuel Vieira, com que persuadiu ao Capitão que mandasse tirar as águas e fazer as levadas, para se alimparem as terras, como dizia o dito Manuel Vieira. Com a qual persuasão, lhe deu o Capitão licença que fizesse o que dizia, como melhor lhe parecesse, o que Manuel Vieira, logo no ano seguinte e pelos anos em diante, foi ordenando e fazendo de tal maneira que assim ele nas terras do Capitão, e nas suas, que por aquela parte tinha acravadas com pedra pomes e cinzeiro, e outros com seu exemplo, imitando-o, alimparam todas aquelas terras tão bem que dão agora novidade como dantes. O que tudo se deve ao dito Manuel Vieira, primeiro inventor e executor deste bem e proveito, porque se lhe ele não dera este remédio que Deus lhe ensinou, não sei qual houvera de ter toda a gente desta ilha, da banda do norte, senão despovoar-se esta parte toda de terras, onde caiu a pedra pomes e cinzeiro, e irem todos viver da banda do sul, ou desterrar-se a outras terras.
Algumas pessoas na Achada Grande e Pequena e no Nordeste viraram a terra boa com pás e enxadas sobre a pedra pomes e cinzeiro, ao que Manuel Vieira foi ao encontro, dizendo que viria o vento e chuva e levaria a terra boa, e ficaria somente a ruim, com o qual conselho se emendaram e alimparam as terras com água, levando a boa que já tinha em cima solta, e a má que deixaram debaixo, até outra vez tornarem chegar à terra natural e solo que dantes havia, com o qual ainda ficou envolto algum cinzeiro, que lhe serve de esterco que, quanto mais vai apodrecendo pelo tempo adiante, tanto mais abundante novidade dá e melhor que dantes do terramoto dava.