No ano de mil e quinhentos cinquenta e três, a vinte e dois do mês de Maio, que foi a primeira octava do Pentecoste, indo o doctor Gaspar Gonçalves, morador na vila da Ribeira Grande, ver as Furnas, achou as veias da pedra humi e foi o primeiro que nesta ilha as descobriu desta maneira. Nas covas e buracos que estavam por entre as mesmas Furnas, achou a frol e escuma seca da dita pedra humi, que ali se ajunta da frol e grossos vapores que vêm de baixo, e cuidando ser salitre o fez experimentar em sua casa por um mestre Jaques, bombardeiro framengo, ou condestabre dos bombardeiros, que aquele ano atrás viera a esta ilha com o Capitão Manuel da Câmara. E, achando que não era salitre, o deu a um surrador, chamado Hector Fernandes Lixabá, que experimentasse a dita frol nas peles, porque tinha sabor da pedra humi. Experimentando-a o surrador, lhe fez boa obra; e dali por diante se aproveitou dela. Aquele ano, em Setembro, se foi o dito doctor para Salamanca e daí a mais de quatro anos tornou a esta ilha, onde achou um João de Torres, aragonês, que andava envolto com a marquesita , dizendo que era prata e tinha provisões de el-Rei para a obrar e tirar; mas, não se tirou prata alguma, fazendo experiência por três ou quatro vezes, em que o dito doctor deu o desengano que a não havia. E levou em sua companhia a João de Torres às Furnas, onde por indústria do mesmo doctor se tiraram as primeiras mostras e caixões de pedra humi, que o dito João de Torres levou a el-Rei, para requerer a dita obra para ambos. Mas requereu só para si.
Chegando ao Reino a sete de Julho do ano de sessenta e um, deu conta à Rainha como nesta ilha de S. Miguel e na Terceira, nas terras da Valadoa velha e de Gomes Pamplona, havia pedra humi, de que lhe deu as mostras que desta ilha levava. Pelo que, mandaram a um Vicente Queimado, que era feitor em Málaga, por um mestre de pedra humi, a Cartagena, o qual, como homem que pouco lhe dava, trouxe um Francisco Mendes, taverneiro de Cadiz, cidade do reino de Granada, o qual era tal que a nenhum conselho se subjectava e assim se tornou desta ilha, sem fazer nada mais que alguma pouca mostra que levou ao Reino.
Pela qual causa, determinou João de Torres fazer umas casas nas Caldeiras, perto da vila da Ribeira Grande, e nelas fez três ou quatro quintais de pedra humi, em caldeira de chumbo.
Com a qual mostra mandou um Gonçalo Canheto, castelhano, a Lisboa, para a ver Sua Alteza.
E, por esta mostra que viram, mandou a Rainha D. Catarina de Áustria um Filipe Silveira a Cartagena buscar mestre, o qual chegando aos Almacarrões, fábrica da pedra humi de el-Rei de Castela, pousou em casa de um viúvo, chamado Francisco de Caravaca, que servia de bagaceiro, que é deitar a terra que sai da balsa no rio. Este homem veio ao Reino, donde o mandou a Rainha a esta ilha ao tempo do segundo terramoto. E passou no mar, quando vinha, pelos bancos de pedra pomes e cinzeiro, aonde encalhavam; e acharam reses mortas. Trazia, por ser mestre de pedra humi, de ordenado em cada dia duzentos e sessenta réis. Fez experiência na pedra humi das Caldeiras, nas casas que tinha feitas João de Torres, dizendo-lhe que a fizesse ele da maneira que fazia. E, fazendo-a João de Torres, disse o mestre que não se fazia melhor em Cartagena; pelo que fizeram então uma boa cópia dela, que levaram a Lisboa no mês de Outubro do ano de sessenta e três, em que foi o segundo terramoto. Alvoroçado o Reino com a nova das novas minas de pedra humi, perguntaram ao mestre Francisco de Caravaca que gente e que cousas eram necessárias para fazer a fábrica, o qual, como tinha filhos, determinou mandar por eles. E deu por apontamentos que era necessário quatro paleiros e um terrador e escolhedor da pedra, e um homem que tivesse cargo de estender a pedra humi para se enxugar. Para isso mandaram o próprio Filipe Silveira, o qual trouxe os quatro paleiros e o terrador, que foram dois filhos de Caravaca e um Pero Garcia, Francisco de Aranda e Francisco Carreiro, castelhanos, dos Almacarrões. Vindos, casou Francisco de Caravaca com uma irmã do dito Filipe Silveira, e um filho com outra irmã, com que vieram a esta ilha, onde se começou a fazer a fábrica em fim de Setembro do ano de mil e quinhentos e sessenta e quatro, andando na obra dela setenta pessoas, entre oficiais, carreiros e trabalhadores, sendo feitor de el-Rei Francisco de Mares e, escrivão da dita fábrica, Pero de Paiva.
Nos ordenados se gastou, enquanto durou a obra da fábrica, que foi perto de um ano, seiscentos e noventa e oito mil réis. O feitio das caldeiras custou cento e sessenta mil réis, pela vinda dos oficiais que vieram do Reino a fazê-las, que foram um Martim Navarro, carpinteiro da Rainha, que veio para dar ordem aos dois pratos de metal para o fundo das caldeiras, em que se havia de cozer a pedra humi, e a outras cousas necessárias, e um Cosme Dias, fundidor de el-Rei que as fundiu, e levaram ambos oitenta e sete quintais de metal. A obra da casa, em si só, custou com madeira, telha e feitio três mil e duzentos e cinquenta e sete cruzados, contando as casas, eiras, fábrica, cal e gente de serviço e carreiros e cavouqueiros, que tiravam os tufos, ferramentas e descobrimento das pedreiras, de modo que se gastou, na obra da fábrica e ordenados, dois contos e duzentos e cinquenta mil e duzentos réis, com o descobrimento das pedreiras. No mesmo ano que se fez a fábrica, se fizeram cento e noventa fornos de pedra humi, que saía da pedreira das Caldeiras e de outro lugar que se chama as Pedras Brancas, em que se gastaram oitocentos e cinquenta e seis mil réis, porque o Caravaca obrava isto pela ordem de sua terra, ou de Cartagena, regando a pedra com a água, e com a regar lhe fazia perder a virtude e não dava nada. De modo que em toda a obra assim em ordenados como em o mais, eiras e pedra e experiências, se gastaram três contos e cinquenta e cinco mil réis, afora o ordenado do feitor Francisco de Mares e do escrivão Pero de Paiva.
Era esta fábrica uma grande casa de três naves de grande compridão e largura, que servia para cubaria, e levava dezasseis cubos por banda, cada um da altura de um homem, que podia levar seis pipas de água, com uma cale de pau que corria por cima de todos os cubos por um torno que da cale em cada cubo caía, que abriam quando o queriam encher; e a cale nascia de uns tanques em que se botavam as lexias, que eram cinco ou seis cozimentos de água cozida com a pedra dentro na caldeira, de que se fazia pedra humi, para com ele se encherem os cubos, onde se havia de coalhar a pedra humi. E para reformar os tanques, que nunca faltasse a lexia neles, se fez uma balsa, que era como um tanque junto da caldeira, no qual, com a água fria que vinha por um cano de fora, se lavava a pedra que ficava cozida na caldeira e, de dois em dois dias, a botavam nos tanques para os reformar com ela.
Além desta casa grande de três naves, havia outras duas da mesma compridão e de largura de doze côvados em vão; uma delas servia para duas caldeiras em que se havia de cozer a dita pedra, e para duas balsas ou tanques. E a outra para granel de enxugar a pedra humi depois de feita. E as lógeas dela para a recolherem.
Quando se fazia esta fábrica no ano de mil e quinhentos e sessenta e cinco, que mandou fazer Francisco de Mares, feitor que então era por mandado de el-Rei, por ordem do Caravaca, continuamente andavam nela vinte cavouqueiros a quebrar pedra e quinze pedreiros; e alguns dias andavam vinte, trinta carros; outros dias, cinquenta e sessenta, que serviam de acarretar pedra de alvenaria, madeira, barro, telha, pedra de cal e areia. Andavam mais cada dia nove e dez carpinteiros, que eram tão poucos por ser a mais da obra grossa e de machado. E andariam homens de serviço, cada dia, quinze e vinte. Assim que o dia que andava mais gente nesta obra chegariam a cento e vinte e cinco homens. Sendo assentada e acabada esta fábrica, para que nela se pudesse fazer pedra humi, se mandou quebrar muita pedra nas pedreiras da pedra humi, junto a umas furnas, que chamam caldeiras, perto da fábrica. E fizeram-se sete fornos como de cozer cal, para cozer a dita pedra, e duas casas muito grandes em que a guardavam da chuva. O dia que se fazia cozimento, andavam ordinariamente na dita fábrica sessenta homens entre os oficiais dela e outros servidores; e continuamente dez, doze carreiros, acarretando em seus carros pedra e lenha e outras cousas necessárias.
Tinha também esta fábrica um mestre, um escolhedor da pedra, quatro paleiros e um lançador da terra, quatro ou cinco maçadores que maçavam com maços de ferro a pedra já cozida, e depois a vieram a moer, como em engenho de pastel, em lugar dos maçadores, um bagaceiro, dois capaceiros que levavam a pedra humi em umas alcofinhas, um balseiro, um forneiro de caldeira com um homem que o ajudava, dois forneiros dos fornos em que se cozia a pedra, um armador, um escrivão, um apontador da gente que vigiava os que trabalhavam e apontava os que faltavam; e, sobre todos, o feitor Francisco de Mares como sobrerolda, que provia tudo, afora carreiros, cavouqueiros e outras pessoas de serviço.
Fizeram-se neste ano, depois de acabada a fábrica, sessenta quintais de pedra humi, que como os cento e noventa não aproveitaram, por o mestre querer fazer como em sua terra se fazia; e pela têmpera dela não aproveitou nada. E fez de custo, deitar a pedra fora da eira onde estava, por despejar o terreiro, vinte e dois mil e quatrocentos réis.
Com a perda da pedra, vieram a ter diferença o feitor Francisco de Mares e o mestre Francisco de Caravaca, e se foram para o Reino diferentes, ficando um sobrinho de Fernão Cabral, na obra, por feitor; o qual fez cento e dez quintais de pedra humi, afora setenta e oito que ficaram nos cubos. Dizem que em seu tempo se ganhou alguma cousa e não perdeu nada.
Mas esteve pouco tempo, porque Francisco de Mares e Caravaca partiram desta ilha no mês de Junho do ano de sessenta e seis, e tornaram a vinte e seis de Octubro do dito ano, vindo Francisco de Mares por provedor desta ilha, com o cargo da pedra humi, trazendo sua mulher e filhos, e João de Torres a sua. E, seguindo a obra de Miguel Cabral, no preço dos carretos e mais cousas que tinha abaixado por muito menos que dantes, deixou de fazer pedra humi seis meses, que foi causa de se danarem as lixias . Nestes seis meses se fizeram muitas eiras de pedra da pedreira das Pedras Brancas e Caldeiras. E, como o mestre Caravaca não queria sair da ordem de sua terra, tornou a regar a pedra e deitou a perder grande quantidade dela, pelo que o Provedor mandou que o mestre não fosse à fábrica. E por conselho de alguns se esfolaram as eiras, e tomando o âmago de dentro da pedra, que não prestava para nada, se fizeram seiscentos e oitenta quintais de pedra humi, que o provedor mandou ao Reino, escrevendo ao Cardeal o que se passava; com cuja informação, veio provisão de Sua Alteza para que João de Torres servisse de mestre com trezentos réis de ordenado cada dia, a qual chegou a esta ilha a catorze de Maio do ano de sessenta e nove.
Fizeram-se logo mil e seiscentos e três quintais de pedra humi em pouco tempo, depois de vir a provisão; parte da qual se vendeu a um Gaspar Gonçalves, mercador da cidade da Ponta Delgada, e a outros, ingreses. E o almoxarife da fábrica, Francisco de Andrade, levou ao Reino oitocentos e sessenta quintais da dita pedra humi. E, por suceder Diogo Lopes de Espinhosa na feitoria e não trazer ordem de pagamentos, e haver novas que era provido provedor, cessou aos vinte de Agosto do ano de setenta, pela qual causa fez o mestre João de Torres um requerimento ao provedor Francisco de Mares e ao feitor, o qual respondeu que não tinha comissão para fazer pedra humi, nem ordem para os pagamentos, mas que à sua custa faria o que pudesse, para o que deu ao mestre quatrocentos cruzados, dos quais lhe fez quinhentos e sessenta quintais, rendendo, muito, o que se fez com seu dinheiro.
Sabendo o almoxarife Francisco de Andrade lá no Reino como a pedra humi rendia bem, contratou Sua Alteza a dezasseis de Octubro do dito ano de mil e quinhentos e setenta. Sabido isto pelo provedor, cessou de fazer pedra humi, anojado pela haverem dado ao dito almoxarife; pela qual razão, determinou João de Torres de tomar cargo dela, por sustentar a fábrica, lexias e outras cousas, em que gastou cento e vinte mil réis, de que fez cento e noventa e cinco quintais de pedra humi, que o desembargador Fernão de Pina lhe fez pagar.
Chegou Francisco de Andrade a esta ilha o primeiro de Abril do ano de setenta e um. E o provedor Francisco de Mares se partiu com sua mulher e toda sua casa no mês de Março do dito ano, na qual viagem sucedeu o mais cruel desastre de quantos sucederam nesta travessa das ilhas para o Reino, porque os franceses piratas tomaram o navio, onde mataram a Francisco de Mares e muita gente a vista de terra. E a morte deste provedor Francisco de Mares foi grande parte da perda da pedra humi.
Teve Francisco de Andrade contrato um ano e três meses e sete dias, no fim do qual tempo o prenderam por não cumprir com a obrigação dele por trezentos e quarenta mil réis e pelos quintais que era obrigado a dar e não deu. Fez seiscentos e sessenta quintais de pedra humi e gastou neles um conto e cento e tantos mil réis. Vendeu-se em Lisboa a mil e quinhentos réis o quintal. Perder-se-iam alguns duzentos mil réis.
Neste meio tempo, foi João de Torres ao Reino e trouxe provisão que tomasse cargo dela o feitor Diogo Lopes de Espinhosa, que fez pedra humi perto de dois anos, em que faria mil e quinhentos quintais. Veio depois o feitor Jorge Dias e cessou a pedra humi. Esta é a causa por onde se perde, porque, como não é bem particular de algum, nenhum outro quere que se faça.
Fizeram-se nesta fábrica, depois que se começou a fazer pedra humi, até o primeiro de Julho do ano de setenta e quatro, em que acabou Diogo Lopes e entrou Jorge Dias na Feitoria de el-Rei, quatro mil e oitocentos e trinta e três quintais de pedra humi sabidos, em que não houve muita perda nem ganho. A perda é a causa de não se ir com o negócio avante, e a fábrica estar muito longe das pedreiras e fora de mão. E também por os feitores serem pouco curiosos de a fazer.
Pelo que, vendo João de Torres que esta obra se consumia, determinou fazer outra fábrica nas Furnas, na qual gastou setecentos mil réis em tudo quanto fez. E, quando a teve acabada, ficou com dívida de duzentos e trinta mil réis, em que devia vinte moios de trigo ao feitor Jorge Dias, e quarenta mil réis a Diogo Lopes de Espinhosa e a outras pessoas. Fez o primeiro peso de sessenta quintais de pedra, de que levou certidão ao feitor para lha pagar, mas pagou-se dos quarenta mil réis do feitor passado, e deu-lhe nove mil e setecentos réis, com que começou a fazer o outro peso, que fez de cinquenta quintais. E, como viu o feitor que ia pagando, por rogo lhe deu quinze mil réis, pagando-se da demasia, pelo que dali por diante fez João de Torres pedra a medo, por não ter dinheiro e a gente andar muito cara, de modo que foi necessário vender as peças de ouro e prata que tinha. Toda a pedra humi que fez seriam quinhentos e oitenta quintais. E não fez mais por não ter poder para isso.
Por uma provisão de el-Rei, que trouxe João de Torres, que lhe vendessem a fábrica de pedra humi que estava acima da vila da Ribeira Grande, por preços limitados e já taxados no Reino, sendo contador nesta ilha Francisco Mendes Pereira, e porque a casa custou muito a fazer e desfazendo-se quase nada valia, vendeu-se a dita fábrica toda da pedra humi , por avaliações, por cento e vinte e seis mil e quatrocentos e vinte e três réis, a vinte dias de Agosto de mil e quinhentos e setenta e oito anos. E custou a fazer perto de oito mil cruzados. A qual obra foi causa de seu remédio, porque, com trabalharem muitos nela, se remediaram, de modo que não deixaram a terra, como é certo que houveram de fugir dela, com dívidas e com pobreza, se isto não fora. Afirmase comummente que não deixara de haver pedra humi, ao menos que rendera os custos que fazia e mais alguma cousa, se a obra, cozimento e feito dela andara sem cessar em roda viva.
O que fora grandeza deste Reino haver nele mina dela, ainda que não fizera mais proveito que pagar os custos.