No tempo do ilustríssimo Capitão Manuel da Câmara, houve um Afonso Anes dos Mosteiros, que foi homem nobre, rico e principal, e veio a esta ilha dos primeiros; e teve de suas searas e rendas cento e cinquenta moios de trigo cada ano, além de outra fazenda, afora vacas, porcos e ovelhas. Foi cavaleiro da ordem de S. Lázaro, que naquele tempo era grande honra. Fez uma capela de S. João Baptista na igreja da Misericórdia da cidade da Ponta Delgada, com sua abóbada e coruchéu, todo de enxadrez até cima, com suas ameias de frol de liz, pelo meio e por baixo, e por dentro toda de azulejos lavrados, e nela está ele sepultado em uma sepultura alta de pedra negra, na qual mandou que se lhe disesse todos os dias do ano uma missa com seu responso. Para sustentação desta capela e gastos destas missas, aplicou da sua terra trinta moios de renda de trigo cada ano, perpétuos, os quais andariam no seu filho, mais velho. Deixou para substentação de uma cama na mesma Casa da Misericórdia um moio de trigo cada ano. E quando se fundou este hospital, deu o chão em que se fez, e ajuda para as obras, por ser mui amigo dos pobres. Este Afonso Anes foi o primeiro que veio a esta ilha dos ascendentes de que procedeu uma santa matrona, chamada Margarida de Chaves, de gloriosa memória. A qual foi pessoa nobre e principal desta terra, e casada com António Jorge Correia, cidadão da cidade do Porto e fidalgo da família dos Sousas e Correias deste Reino, que trazem por armas as correias no escudo atravessadas, com dois braços atados, com uma correia por timbre. Esta matrona foi pessoa de tão raras virtudes que mereceu fazer-lhe Deus raras mercês e comunicar-se-lhe tanto, que o que comunica a muitos Santos dividido, junto o comunicou a ela. Desta procedeu a mor nobreza que houve em todas estas ilhas dos Açores, porque esta não somente enobreceu todas as ilhas, mas ainda todo nome português, pois é santa portuguesa, a primeira natural desta ilha de S. Miguel, que por tal publicamente foi julgada em todas estas ilhas dos Açores e em todo Portugal, onde se tiraram, por grandes letrados e gravíssimas pessoas, sumários autênticos de seus milagres.
Viveu esta santa viúva Margarida de Chaves na freguesia do mártir S. Sebastião da cidade da Ponta Delgada, desta ilha de S. Miguel, primeiro casada e depois viúva, que todos tinham por mulher santa, como ela o mostrava bem em todas suas obras e palavras, e por uma inquirição que se tirou nesta ilha, por comissão do ilustríssimo e reverendíssimo senhor D. Pedro de Castilho, bispo então deste bispado de Angra e ilhas dos Açores, do conselho de el- Rei, nosso Senhor, acerca da vida, fama, bom exemplo e virtudes da dita Margarida de Chaves, viúva, se provou melhor sua santidade e se fez certo de muitos milagres que Nosso Senhor por ela obrou nesta terra , no ano de mil e quinhentos e oitenta e um, que se começou a tirar a dita inquirição na cidade da Ponta Delgada da dita ilha, aos dezasseis do mês de Janeiro do dito ano, pelo ilustríssimo senhor D. Luís de Figueiredo de Lemos, daião que então era da Sé do Salvador da cidade de Angra, e ouvidor e visitador nesta ilha pelo dito bispo, e depois vigairo geral e governador deste bispado de Angra por sua Majestade, que agora é benemérito bispo do Funchal, a petição do reverendo padre Francisco de Araújo, sacerdote, teólogo e grande pregador da Companhia de Jesus, que tinha ouvido, assim no Reino como nesta ilha, muitas cousas e milagres que o Senhor obrava nesta serva sua, e a instância de Manuel Jorge Correia, filho da dita santa, para o mesmo Deus ser mais glorificado e redundar em proveito e edificação das almas no tempo presente e futuro.
Porque, segundo a divina escritura, opera Dei revelare honorificum est, cousa honrosa é revelar as obras de Deus. E por isso o dito bispo mandou tirar um sumário autêntico de testemunhas dignas de fé, que com juramento disseram muitas cousas que sabiam de sua penitência, oração, virtudes e milagres que nela Deus obrava; pelo que se tem nesta ilha e em algumas partes do Reino por grande santa. E bem o mostrava em sua vida, pela frequentação do sacramento da Confissão e Comunhão, e milagres que Deus nela obrou, assim na vida como na morte.
Depois, a instância do mesmo Manuel Correia, filho da dita santa Margarida de Chaves, por receio que tinha de furtarem os ossos de sua mãe, pelos milagres que o Senhor por ela obrava, mandou o mesmo bispo ao dito daião meter os seus ossos em um caixão, estando também presente o dito Manuel Jorge, seu filho, e dois criados seus para abrirem a cova. A qual se abriu a catorze dias do mês de Março da era de mil e quinhentos e oitenta e um, às oito horas da noite, pouco mais ou menos, na igreja do Mártir S. Sebastião da cidade da Ponta Delgada. E, fazendo abrir a sepultura da dita santa Margarida de Chaves, em que fora seu corpo sepultado com o hábito de S. Francisco, que está diante da capela do Santíssimo Sacramento, se acharam seus ossos, compostos da cabeça aos pés, assim como foi sepultada, com muitos pedaços do hábito, e boa parte do cordão com seus nós, assim da cintura como da ponta que ia descendo até quase os pés; e por ordem foram tirando os ditos ossos e metendo-os em uma caixa para isso preparada, começando pela cabeça, que acharam ainda com os cabelos e muitos dentes, e queixo per si com os dentes quase todos, e os ossos e alguns pedaços do cordão; tudo ficou envolto em uma toalha de holanda, dentro na arca, que era toda forrada por dentro de tafetá preto. E fechando-a com uma chave que ficou em poder do dito Manuel Jorge Correia, seu filho, a tornaram pôr no fundo da dita sepultura, em a qual ficou coberta de terra com duas pedras por cima, como dantes estava. E, por informação do vigairo Sebastião Ferreira e de outras pessoas dignas de fé, se achou como não se enterrara depois dela outro corpo na dita sepultura. Sentiram todos os que ali estavam, como cheiravam aqueles ossos e sepultura suavemente. E tudo foi justificado e reconhecido por tabaliães e escrivães públicos da dita cidade da Ponta Delgada, assim do eclesiástico, como do secular.
Esta Santa foi filha de nobres e virtuosos pais e de honrados parentes, todos de bom coração e inclinação, e tementes a Deus. Sendo moça solteira, era muito amiga de Deus e o mesmo foi depois que casou com o dito António Jorge Correia, de que houve filhos muito virtuosos e amigos de Deus. E assim, sendo casada, como depois de viúva, sempre foi mulher de grande virtude, mui registada em sua casa, vida e costumes; principalmente depois que viuvou, foi muito mais amiga de Deus, dada ao exercício espiritual de penitência e oração e frequentação dos Sacramentos, de tal maneira que todos a tinham por Santa. Nem era muito tê-la em conta, pois além das virtudes que mostrava, era pranta que procedia de tão honrados e virtuosos troncos, e fazia uma vida tão abstera que trazendo cilícios e jejuando rigorosos jejuns, quase todos os dias e noites, sem se deitar em cama, ora na igreja, ora em sua casa, empregada em meditações e contemplações, em que lhe dava Deus muita graça e lhe fazia grandes e subidas mercês espirituais.
Afirmava desta Santa um teólogo que ouvindo-lhe algumas cousas que na oração lhe eram representadas, ou da Santíssima Trindade, ou do Santíssimo Sacramento, ou do Amor de Deus, ou da castidade e pureza da vida, e de outras semelhantes, lhe parecia que ouvia a mais alta teologia do mundo, porque de tal modo falava destas cousas e de outras da fé que parecia que as estava vendo evidentemente com os olhos e entendimento, como claras demonstrações. E muitas vezes ficava pasmado da delicadeza de altos e santos pontos, declarados por ela com as mais delicadas palavras que podiam ser, e comparações altíssimas, extremadas e nunca ouvidas, com tanto espírito e fervor que bem parecia ter por mestre o Espírito Santo, que lhe ensinava tudo.
Tinha esta Santa três cousas principais. A primeira ser de todo negada em tudo, porque nem trabalhos, nem descansos, nem enfermidades, nem testemunhos falsos, nem quanto se podia imaginar de bens ou de males, a podiam apartar do Amor de Deus, que mais forte era nela que a morte. Toda era mortificada no interior da própria vontade e só vivia em Cristo e Cristo nela, sem se poder nunca apartar dele, esquecendo-se de todo das cousas do mundo.
A segunda, que no carecer das consolações sensíveis não cessava de buscar a Deus, assim nos jejuns, esmolas e abstinências, como no essencial da vida espiritual, pintada na escritura sagrada, porque, ainda que algumas poucas vezes lhe não acudia Deus na oração com os subidos mimos e favores que soía, não deixava de estar tão transformada e unida no mesmo Deus como dantes, e assim ficava sobremaneira consolada, porque não sabia querer senão o que Deus queria, nem o sabia buscar para seu gosto e interesse próprio. E nunca era alevantada a cousas altas, que não tivesse por apêndice grande mortificação e conhecimento de sua baixeza, por uns modos que se sabem ouvir e entender, mas não contar. E sabia ser Marta a seus tempos devidos, ficando sempre Maria, transportada aos pés do Senhor.
A terceira cousa que tinha era que as impressões, que lhe causavam as consolações espirituais, eram ficar-lhe um fastio de quanto nesta vida via das cousas do mundo e uma saudade grandíssima de Deus, que não via. E, ainda que seus desejos iam encontrar às vezes com a humanidade de Cristo, nosso Redentor, todavia não parava aí, mas lá ia buscar a divindade em uma obscuridade que parecia que, sem a ver, a estava vendo, e sem a possuir, a gozava.
Estando uma vez esta Santa transportada em oração, transformada em Deus e Amor Divino, lhe foi representado que ainda que vira um anjo e posto que vira todos os anjos e a corte do Céu junta, nada disto lhe enchera as medidas, nem a satisfizera. Vendo o anjo que lhe perguntaria, morta de sede e cheia de fome e saudade de Deus: — Ó Anjo de Deus, onde está o meu Deus e meu Senhor?, conforme aquilo da esposa nos Cantares: — ubi est, quem diligit anima mea? Somente a fazer-se uma cousa com Deus aspirava, e endereçava seus desejos. Muitas vezes recebia as consolações sensíveis no coração em grande abundância, as quais vieram em tanto crescimento e tanto se foi empinando que já muitas vezes as recebia na alma, sem ter os sentimentos e gozos do coração, a que já chamava exteriores. Finalmente, era tão firme e conforme com Deus e tão favorecida dele, ficando tão fundada sempre em humildade profunda que, quem a conhecia e sabia de sua vida, julgava que enquanto ela viveu, depois que se começou dar a Deus, nunca caiu deste santo exercício, e lhe parecia ser em vida já confirmada na graça divina, e que sua longa e virtuosa vida passada confirmava mais este parecer e ser tudo isto que dela sentia obra de Deus, na qual o demónio nada tinha.
Dizia o teólogo que, se a algumas cousas das desta Santa podia dar algum mais certo parecer, era nisto, que quanto ela fazia ia nivelado e regulado pela doctrina católica, sem discrepar o menor ponto do mundo, e nada fora dos limites do Evangelho, mas tudo enfiado nele, fundada sempre em grande humildade.
Afirmava mais o dito teólogo que, assim em confissão, confessando ele algumas pessoas, como fora de confissão, ouvira de alguns milagres que fizera a dita Santa Margarida de Chaves em sua vida e depois de falecida, pelo que a tinha por tão santa que não ousava rogar a Deus por ela, nem em seus sacrifícios, nem em suas orações; antes rogava a Deus que se lembrasse dele pelos merecimentos da vida dela, de quem ele não duvidava, senão que estava na glória com Deus, recebendo lá o prémio do que cá com seu favor mereceu, e ainda vivendo ela, pois Deus lhe comunicava em vida tão grandes cousas, parece que a tinha certificada dos bens da glória, dos quais depois de sua morte está gozando no Céu.
Quanto à fama pública de sua santidade e exemplo de vida, muitos anos foi tida por muito santa de todos, principalmente das pessoas virtuosas e religiosas, e dos padres da Companhia de Jesus que aqui vinham, a esta ilha. E era exemplo de muitas virtudes e santidade, e continuação de sacramentos e obras pias.
Quando se punha em oração, dizia que se ia pôr diante de Deus, sem saber o que havia de dizer, nem levar ponto forjado, nem cousa cuidada; tolamente, como mulher sem entendimento, sem levar outro tino senão ir buscar a Deus. Pelo que ouvindo isto dela e outras cousas semelhantes, o doctíssimo padre Francisco de Araújo, grande pregador da Companhia de Jesus, lhe chamava e dizia que era esta Santa passiva divina.
Afora um filho seu, tão virtuoso que se tinha por santo, e faleceu estudando na Universidade de Coimbra, deixou esta Santa dois filhos honrados, virtuosos e de raras habilidades, que lá estudavam; um chamado Manuel Jorge Correia, outro Gonçalo Correia de Sousa, ambos bacharéis formados nos sagrados cânones, e uma filha, chamada primeiro Maria Correia, e depois Maria da Trindade, a qual deixando o mundo e metendo-se freira no mosteiro de Santo André, da ordem de Santa Clara, na cidade da Ponta Delgada, desta ilha de S. Miguel, imita e segue bem as passadas de sua mãe santa, na virtude e exemplo, vida e oração, em que Nosso Senhor lhe faz também grandes graças e favores, e comunica cousas altíssimas. Também tem uma irmã, chamada Bárbara de Chaves, tia de Maria da Trindade, de grande virtude e oração, que já em vida da mesma Santa a imitava.
Depois do falecimento desta Santa, a manifestou Deus por tal com muitos milagres grandes e de diversas maneiras, que fez não tão somente nesta ilha, mas também no Reino e principalmente no arcebispado de Évora e bispado de Coimbra e Bragança, e outras muitas partes; por algumas das quais os padres da Companhia de Jesus levaram suas relíquias. E depois com comissão do gravíssimo e reverendíssimo Cabido da Sé de Coimbra, ao reverendíssimo doctor frei António de S. Domingos, lente de prima de teologia na insigne Universidade da dita cidade, tirou o dito doctor outro sumário, ao pé do qual afirmou que era Santa. Depois mandou o ilustríssimo senhor D. Manuel de Gouveia, bispo de Angra, tirar outro sumário nesta ilha de S. Miguel de seus milagres; os quais fez ler por diversas vezes diante dos letrados, religiosos, teólogos e pregadores que havia na ilha Terceira, e alguns canonistas; e cada um per si, todos disseram que lhes parecia que sua vida fora santa, e que as cousas que Nosso Senhor fizera por sua intercessão, assim na vida como depois de morta, eram milagres e por tais os tinham, pelo que se devia escrever a Sua Santidade, e a Sua Majestade para que favorecesse este negócio ante Sua Santidade, e a sua sepultura se devia ter respeito e acatamento, e fazer-se-lhe alguma diferença das outras. E, assim, o dito senhor Bispo julgou a vida por santa e aprovou seus milagres, e mandou que a sua sepultura, onde está seu corpo, se tivesse respeito e acatamento e que ao redor dela se fizesse uma grade. E sobre este negócio escreveu a Sua Santidade, a el-Rei e ao Cardeal, para que favoreça a determinação ante Sua Santidade.
Dia de Santo António, depois de vésperas, que foi a treze de Junho do ano de mil e quinhentos e oitenta e sete, por certos respeitos, com licença do Bispo, estando presente o licenciado Simão Fernandes de Cárceres, chantre de Sé de Angra e seu vigairo geral, com muita solenidade e cantoria de psalmos, se transferiram seus ossos, fechados na mesma caixa em que estavam, à capela-mor, levando-os o conde D. Rui Gonçalves da Câmara, D. Francisco, seu filho, o Dr. Gilianes da Silveira, juiz de fora, o capitão Alexandre, o capitão António de Oliveira e um sacerdote, onde foi muito para ver a grande devação de todo o povo, e a profunda gaiva que se fez em sua sepultura, tirando e levando dela terra, que todos estimavam por grande relíquia. Com a qual depois Deus fez muitos milagres em louvor desta Santa, glória e esplendor das ilhas do mar Oceano, e certa norma do bem viver, e estímulo penetrante em nossos dias, e despertador grande para o caminho da glória e salvação.