Morto o Capitão Manuel da Câmara, herdou sua casa, sucedendo-lhe na Capitania o ilustríssimo senhor D. Rui Gonçalves da Câmara, conde de Vila Franca . E porque quase começa o governo dela e ainda vive, deixando o discurso de sua vida e heróicos feitos, que vivendo fará, para outros mais doctos e delicados engenhos, que os escreverão depois dele, contarei somente seus princípios, ainda que não direi a realidade da cousa com aqueles louvores e alto estilo que suas obras merecem, por fugir da lisonja e arrogância, e do que fez Alexandre, que, oferecendo-lhe Aristóbulo um livro de muitos louvores seus, deu com ele em um rio, dizendo que desejava depois de morto tornar ao mundo para ver se então o louvavam tanto, como Aristóbulo o louvava sendo vivo. Porém o que disser do conde D. Rui Gonçalves da Câmara são cousas tão modernas, e tão vivas, e presentes as testemunhas que foram nelas, que não darão lugar a fábulas. Somente me deterei algum tanto em abrir os alicerces de seus louvores e grandiosos começos, deixando o processo da traça e remate da obra e sumptuosidade deles para outro melhor mestre, porque o edifício, que há-de vir a ser alto na fábrica, há-de ter forçadamente nos fundamentos mais detença, e de quem tem, como ele teve, tão ditosos e altos princípios , não se espera senão que proceda e acabe, tendo por respondentes felicíssimos remates e gloriosíssimos fins.
D. Rui Gonçalves da Câmara, conde de Vila Franca do Campo e Capitão desta ilha de S.
Miguel, além do seu ordinário apelido, que herdou de seus progenitores pela linha masculina, também pela feminina procede primeiro dos Ferreiras e do conde de Marialva e depois dos Melos; e Vasco Fernandes Mendonça Coutinho, avô de D. Filipa Coutinha, mulher que foi de Rui Gonçalves da Câmara, pai de Manuel da Câmara e avô do dito conde D. Rui Gonçalves da Câmara, que era senhor de Coutim e Merlim, mui esforçado e valoroso cavaleiro, teve dois filhos, um conde de Marialva, outro conde de Borba, que é uma vila do duque de Bragança, da qual el-Rei D. João, segundo de nome, fez mercê a D. Vasco Coutinho, filho de D. Vasco Coutinho, fazendo-o conde dela, por lhe descobrir a treição que lhe tinham ordenada para o matarem. E, reinando depois el-Rei D. Manuel, tornou Borba ao duque que então era, e em satisfação deu a vila do Redondo ao conde de Borba. E logo D. João, filho do dito D. Vasco Coutinho, se chamou conde do Redondo, e assim se chamam agora os que dele descendem; e ao conde do Redondo pertence a capitania de Arzila.
Tomando el-Rei D. Afonso, quinto do nome, Tânger e Arzila aos mouros, na tomada dela morreram dois condes, o de Marialva e o de Monsanto; e, armando cavaleiro el-Rei D. Afonso ao príncipe D. João sobre os corpos dos ditos condes, mortos, lhe disse: — tal sejas tu, filho, como foram estes meus dois vassalos. Outros dizem que sobre a sepultura de Vasco Fernandes Coutinho, lhe disse: — Deus te faça tão bom cavaleiro como era Vasco Fernandes Coutinho, que aqui está enterrado.
O ilustre Capitão Manuel da Câmara não teve filho macho outro, senão a D. Rui Gonçalves da Câmara, que agora é Capitão, a quem ele queria grandíssimo bem. O qual, depois de ser de idade para ir ao Paço, sendo moço-fidalgo, o trazia seu pai gravemente acompanhado e lhe deu por seu aio a Lucas de Sequeira, natural desta ilha, que era cavaleiro fidalgo da casa de el-Rei e muito conhecido de todos, o qual andava sempre com ele, quando a pé, quando a cavalo, conforme aos caminhos que menino naquele tempo fazia, e trazia consigo oito, nove homens de esporas e outros tantos pajes . O qual senhor foi, do tempo do Príncipe D. João, filho el-Rei D. João, terceiro do nome, de sua criação e muito privado seu, em tanto que não jogava o Princípe, nem ia fora, nem estava hora sem ele; foi isto de maneira que houve fidalgos cheios de inveja que disseram ao dito Rei D. João, pai do Príncipe: — “Senhor, o Príncipe é tão afeiçoado a D. Rui Gonçalves da Câmara, que não vê aos outros fidalgos por amor dele”, temendo-se que depois que reinasse fizesse o mesmo, pelo que lembraram a el-Rei que pusesse cobro sobre isso, antes que o negócio fosse mais avante. E, querendo Sua Alteza meter mão disso, disse ao Príncipe: — Filho, será bom que vades a folgar a Almeirim e a caçar, para vos desenfadardes — por andar ao tal tempo o Príncipe mal disposto. Folgou ele muito com a mercê, pela qual beijou a mão a el-Rei e, fazendo-se prestes para isso, lhe mandou el-Rei que fizesse rol dos fidalgos que queria levar consigo; em cabeceira do qual pôs a D. Rui Gonçalves da Câmara. Visto o rol por el-Rei, o apagou e lhe mandou que pusesse outro em seu lugar. Tanto que o Príncipe o soube, fez-se doente e respondeu que não estava para ir. Passaram alguns dias, até que tornou el-Rei falar ao Príncipe na ida, dizendo-lhe se fizesse prestes e apontasse quem queria levar consigo, no qual rol tornou a assentar D. Rui Gonçalves da Câmara, já não na cabeceira, senão entre outros.
Quando el-Rei viu isto, entendendo ser esse seu gosto, disse-lhe: — folgo muito que leveis convosco a D. Rui Gonçalves, vosso amigo —. E logo o mandou fazer prestes para isso. Mas durou isto pouco, porque foi Nosso Senhor servido de levar ao Príncipe para si, com a qual morte perdeu muito D. Rui Gonçalves da Câmara e a Capitania desta ilha. Neste tempo, trazia e trouxe depois o Capitão Manuel da Câmara tão custoso a seu filho e com tanto gasto de banquetes que o mesmo filho dava aos fidalgos e às damas, e de jogo, que aconteceu pôr-se D. Rui Gonçalves da Câmara a jogar e depois de ter perdido o dinheiro que levava, jogar sobre escritos seus e, quando seu pai o sabia, os pagava. Mas, com todos estes e outros favores que o pai fazia a seu filho, não foram nunca parte de D. Rui Gonçalves sair uma só hora de sua vontade, que com verdade posso afirmar que não me lembra que visse nem ouvisse dizer que havia filho tão obediente a pai, como foi D. Rui Gonçalves, porque cousas lhe viram alguns passar com seu pai, depois de ter casado e com filhos, que pasmavam, tremendo diante dele como se fora menino, sendo, como digo, pai de filhos e além disso de quarenta anos, pelo que não era nada o que seu pai lhe fazia, para o muito que lhe ele merecia, pela grande obediência e acatamento que lhe tinha e a todas suas cousas. O mesmo acatamento tinha a sua mãe e irmãs mais velhas, virtude, certo, grande e pouco agora costumada nestes tempos.
Era tão grandioso o Capitão Manuel da Câmara em todas suas cousas e muito mais nas públicas, em especial do serviço de seu Rei, que o que tinha era muito pouco para o gastar todo em uma hora, para o qual não estimava nada, guardando outras horas tudo. Prova disso é a jornada de el-Rei D. Sebastião, quando passou a primeira vez aos lugares de África, para a qual se abalou toda a fidalguia de Portugal, que foram chamados para ela por cartas de el-Rei.
Entre as quais cartas, foram duas, uma delas para o Capitão Manuel da Câmara, e outra para D. Rui Gonçalves da Câmara, seu filho, se fazer prestes. A do pai não servia de mais que lhe dizer que ele passava às partes de África e que por ele ser velho o escusava da jornada, mas que fizesse prestes a seu filho e aviado se fosse logo atrás dele. Neste tempo, na cidade de Lisboa e em todo o Reino, fizeram os senhores e fidalgos largos gastos e se empenharam e venderam suas rendas e quintas e juros, para levarem muitos homens de cavalo e cavalos para suas pessoas, e outras despesas e cousas necessárias para a jornada.
Mas, da pessoa de el-Rei abaixo, não houve quem com mais custo e estado se fizesse prestes que o dito D. Rui Gonçalves, porque, além de levar vinte e sete homens de cavalo, todos de esporas e estribos prateados, com suas luas de ouro e adargas e cossoletes, levava mais seis cavalos para sua pessoa, que por todos eram trinta e três, e todos de muito preço. A cada dois homens de cavalo deu o Capitão Manuel da Câmara um homem, para lhe ter cargo dos cavalos e para os servir, a quem dava cada mês de ordenado seiscentos réis e quatro alqueires de trigo. Levava três tendas, uma dos cavalos, outra da gente, outra para ele, afora outras que D. Rui Gonçalves da Câmara mandou fazer nesta ilha, e afora quatro casas de madeira lavrada, levadiça, que ia metida em caixões, que se armavam cada vez que era necessário, e um catre de sanguinho, e para isto doze homens reposteiros que não serviam de mais que para armarem e desarmarem as casas todas, a que pagava cada mês seu salário.
Levava muita gente de pé e grandes vitualhas de mantimentos de toda sorte, até pipas e quartos cheios de ferraduras e cravos para ferrarem os cavalos, e grandes créditos passados a Castela, para lhe virem de lá de contíno todas as cousas necessárias, assim de mantimentos, como de dinheiro, e infinda prata que seu pai lhe mandou fazer para serviço das mesas e copas, com regimento de seu pai que desse mesa a todo homem fidalgo que a ela quisesse vir, para o qual levava três cozinheiros, dois negros e um branco, da cozinha da Rainha, que ela lhe mandou dar, os quais levavam fornalhas para cozerem pastéis e pão fresco, para o qual ia muitas pipas de farinha. Levava as mesas de peças, com suas chaves de parafuso e banquinhos levadiços de engonços, com seus encostos de uma verga de ferro delgada, para encosto de quem se neles assentasse; e um grande braseiro de prata, do tamanho de um fogão de navio, para no inverno estar cheio de brasas debaixo da tenda, quando comessem. Levava suas charamelas, vestidos de verde, com seus chapéus de tafetá preto e suas cadeias de prata ao pescoço, com figura do Anjo S. Miguel ao pé da cadeia, por divisa; as quais charamelas eram das melhores de Portugal, tirando as de el-Rei, e tangiam também frautas delicadamente. Toda a sua gente ia vestida de verde, com suas espadas de cavalgar prateadas. No de sua pessoa não trato porque, entre outras cousas muitas de vestidos e arreios de cavalos, levava um arreio de ouro todo acabado, feito na Índia, para o Viso-Rei Martin Afonso de Sousa, que é mais rica cousa que se pode ver, e outro de prata, feito a feição de favo de mel. riquíssimo; e quatro caparazões, um deles de veludo verde lavrado, com suas bandas de brocado, outro roxo com as mesmas bandas de brocado e outro de veludo cremezim da mesma maneira, outro de escarlata com seus tachos de prata assentados sobre veludo cremezim, cada um de rico e custoso feitio. E muitas outras cousas de arreios, com seus bocais de ouro e prata, afora vestidos ricos e de muitas invenções, de sua pessoa. E umas ricas armas que o Infante D. Luís deu a seu pai, de prova, lavradas, mas muito temerosas, das quais darão testemunho muitas pessoas desta ilha que aqui as viram; e outras mais leves, muito galantes para sua pessoa. Ia, finalmente, de maneira que parecia no estado imitava seu Rei, pela qual razão, os fidalgos de Portugal diziam: — ó ditoso D. Rui Gonçalves da Câmara, pois tal pai tem. E, demais de fazer isto a seu filho, foi homem que emprestou muito dinheiro a seus parentes para a jornada e deu outro, dado, a parentes pobres. O qual Capitão Manuel da Câmara, tendo aviado seu filho, como dito tenho, estando já para se passar à banda de além para ir por terra, um dia antes lhe veio outra carta de el-Rei, que estava em África, em que lhe mandava que não partisse seu filho de sua casa sem outra carta sua em contrário, a qual carta não veio, por ter a guerra infelicíssimo sucesso. Pela qual razão o dito D. Rui Gonçalves da Câmara não passou então às partes de além, como tinha determinado, estando preparado para isso com tão excessivos gastos, como tenho referido. A primeira vez que veio a esta ilha D. Rui Gonçalves da Câmara com seu pai Manuel da Câmara foi na era de mil e quinhentos e sessenta e seis anos, e trouxeram por sargento-mor a Francisco d’Osouro.
A segunda vez, veio D. Rui Gonçalves da Câmara, já casado, a esta ilha, por mandato de Sua Alteza, no ano de mil e quinhentos e setenta e seis, e trouxe consigo a Cristóvão de Crasto, homem curioso, por conselheiro, que alguns chamam mestre de campo, e por sargento-mor, Simão do Quental. Depois veio Luís Cardoso, seu irmão, capitão do número de el-Rei, nosso senhor, para também ser sargento. Trouxe também cinco escravos índios da Índia, que tangiam charamelas e violas de arco, que era uma realeza haver isto nesta terra. E em breve tempo faleceram todos, quase juntamente. Alguns praguentos quiseram dizer que, como foram tanger quando se pôs a primeira pedra na cava que se fazia de imenso custo, logo dali a poucos dias começaram e acabaram de morrer, como mostra de que não era Deus servido que tal obra se fizesse; mas isto só Deus o sabe. Outros diziam que faleceram de sua enfermidade, o que é mais certo. Esteve desta vez D. Rui Gonçalves da Câmara, nesta ilha, perto de dois anos e três ou quatro meses, em que dizem que ajuntou infinidade de dinheiro.
Neste tempo lhe vieram novas do falecimento de seu pai, no mês de Abril da era de mil e quinhentos e setenta e sete, que falecera no mês de Março do mesmo ano.
Como veio a triste nova, mandou o Capitão D. Rui Gonçalves da Câmara fazer saimento por seu pai no derradeiro dia de Abril da era de mil e quinhentos e setenta e sete anos. E o dia antes, a hora de vésperas, o foram visitar todos os oficiais das Câmaras de toda a ilha, cobertos de dó para o acompanharem, mas ele não foi às vésperas que, estando todo o povo presente, se cantaram com um primeiro nocturno do ofício dos defuntos, solenemente. Estava a nave do meio da igreja de S. Sebastião, da cidade da Ponta Delgada, onde se fez o ofício, e os peares todos, coro, órgãos e a fronteira toda do cruzeiro cobertos de dó. E junto do cruzeiro estava uma eça mui sumptuosa, que tinha dezoito degraus e em o mais alto dela uma tumba preta com uma cruz branca de oito palmos de alto, e a eça e tumba teriam ambas juntas, de altura, perto de sessenta palmos. Na cabeceira da tumba, da parte do cruzeiro, estava uma cruz grande de prata, com dois grandes castiçais, com seus brandões acesos, um de cada parte, e no meio do mais alto da eça estava pendurada no ar uma grande bandeira negra, com as armas do Capitão pintadas no escudo, em campo vermelho, que são uma torre branca com dois lobos marinhos em pé, que parecia que queriam subir a ela, cada um de sua parte, com seu elmo e paquife, e por timbre um lobo marinho assentado, com umas grandes asas estendidas. Junto da tumba, em cima, estavam dois sacerdotes, um de cada banda, com suas sobrepelizes, incensando sempre com dois turíbulos de prata. E por derredor da eça estavam muitas tochas acesas, que elas, com as que alguns homens principais levaram, acompanhando o sacerdote que dizia a missa e ao Evangelho, eram por todos sessenta, afora outros círios e brandões nos altares e velas que tinham os sacerdotes nas mãos, acesas a seus tempos; que entre sacerdotes e frades de S. Francisco, que disseram missas e estiveram presentes ao ofício, foram noventa e três. E a cada um ficou a vela, que lhe deram com um cruzado, que mandou dar a cada um dos de fora, e duzentos réis a cada um dos da cidade. E toda a cera que sobejou do ofício a mandou dar o Capitão Dom Rui Gonçalves à Casa da Misericórdia da cidade, e mandou ofertar trinta cruzados. Da parte do corpo da igreja, ao pé da eça, estava armado um altar, com licença da Sé vagante, com seus brandões e círios, onde disse a missa do ofício o vigairo Sebastião Ferreira, e o padre António Dias, que servia de vigairo na freguesia de S. Pedro da mesma cidade, cantou o Evangelho, e o padre Miguel Dias, beneficiado na vila da Ribeira Grande, a Epístola. Pregou o doctor Francisco Bicudo, morador na vila da Ribeira Grande. E Afonso de Goes, mestre da capela, com os cantores, que estavam em dois bancos, cobertos de pano preto, no meio de todos os outros padres, cantaram a missa e o ofício com música funeral e muita solenidade, estando presente o Capitão D. Rui Gonçalves da Câmara que foi a ele e tornou para sua casa muito acompanhado de todos os principais de toda a ilha e de todo o povo, todos cobertos de dó, que era cousa muito para ver.
E nunca se viu ofício até ali, nesta ilha, de tanta solenidade, tão acabado, nem tão custoso, porque se fizeram nele de custo mais de quinhentos cruzados.
No mesmo ano de mil e quinhentos e setenta e sete, que começou por dia de Santa Isabel, a dois de Julho, e acabou outro semelhante dia no ano de mil e quinhentos e setenta e oito, foi eleito por provedor da Casa da Misericórdia o dito D. Rui Gonçalves da Câmara, que com sua presença e ajuda fez crescer os edifícios dela. E com grande juízo que em tudo tem, particularmente no edificar e fortificar, mandou emendar a capela da sumptuosa igreja que se vai fazendo, parecendo bem a Pero de Maêda , mestre das obras de el-Rei nesta ilha, tudo o que ele disse. Foram eleitos com ele por conselheiros Francisco de Arruda da Costa, licenciado Bartolomeu de Frias, Pero Castanho, João de Arruda da Costa, António de Brum da Silveira e Francisco Lobo Velho, com seus companheiros e coadjutores do povo. Deu o dito senhor Capitão e provedor, de esmola para a Casa, trezentos cruzados. Partiu desta ilha o primeiro dia de Setembro do ano de mil e quinhentos e setenta e oito, em uma caravela, chamada a Misericórdia, em companhia da armada, de que era capitão-mor D. Jorge de Meneses Tubra , o qual veio com toda ela buscá-lo a esta ilha.
Na era de mil e quinhentos e setenta e nove, nos derradeiros dias de Setembro, se partiu o dito Capitão, com a Capitoa sua mulher e filhos, para esta ilha, vindo-se embarcar a Cascais, no galeão S. Pedro, que havia um mês que estava esperando por ele, com uma caravela da armada, onde foi recebido com muita festa, honra e agasalhado do capitão-mor do galeão, salvando-o com artilharia e preparando-se todos para o embarcarem, assim a ele, como a sua mulher e filhos e alguma gente que levava consigo, porque já neste tempo toda a mais era embarcada no galeão e na caravela, com os mantimentos e cousas necessárias para sua viagem. Depois que foi embarcado, logo ao dia seguinte, deram à vela sendo três horas ante manhã, pouco mais ou menos, correndo-lhe o vento próspero. E, andadas nove ou dez léguas, quis que arribassem, dizendo que sua mulher ia muito enjoada e estava parida de um mês, pouco mais, e, por ser já tempo de inverno, não para fazer viagem. Ouvindo estas razões, mandou o capitão-mor do galeão que arribassem, ainda que contra sua vontade. E porque havia dias que el-Rei tinha mandado ao dito Capitão Rui Gonçalves da Câmara que, sob pena de perder o morgado, se viesse para a sua ilha, não quis entrar dentro e mandou lançar âncora abaixo da torre de Belém. Donde mandou recado a el-Rei, fazendo-lhe a saber as cousas acima ditas, o que visto por el-Rei, deu licença que ficasse a partida para Março seguinte de oitenta, e então entrou para dentro da torre e desembarcou em Belém com toda sua gente, para daí se ir para sua quinta, que tem em Frielas.
Trazia também consigo o Capitão D. Rui Gonçalves uma caravela do Porto, que ele tinha fretada para levar trigo e cevada a sua irmã, em que vinha algum fato seu, vinte e cinco corpos de armas e dois cavalos e dois negros e algumas pipas de água, e palha e cevada para os cavalos, e uma caixa muito grande em que vinha um leito dourado, muito rico e outros dois ou três de outra sorte, e algumas mesas e cadeiras marchetadas de marfim, e algumas pedras brancas lavradas que mandou deitar na Alagoa para uns portaes; a qual caravela arribou juntamente com o galeão e em Belém descarregou o fato que levava, ficando somente as pedras e caixa nesta ilha.
Passado isto, o Capitão D. Rui Gonçalves apertava com os marinheiros que viessem buscar o trigo, como eram obrigados, ao que eles responderam que sua senhoria lhe fretara a caravela em Julho para virem em Agosto, e que estavam no fim de Setembro, já tempo de inverno, e não podiam vir às ilhas senão se lhe sua senhoria comprasse a caravela e lhe pagasse suas demoras. Vendo que eles tinham razão no que diziam, lhe comprou a caravela e pagou as demoras. Então determinaram de a calafetar e prover do necessário, para partir para estas ilhas.
Esta caravela partiu de Belém o primeiro dia de Octubro de setenta e nove, à tarde, com vento norte muito brando, mas pouco e pouco se veio saindo às voltas e, tanto que saiu fora da barra, lhe deu logo o vento nordeste de tal maneira que partiu à quinta-feira à tarde, que foi o primeiro de Octubro, e teve vista das ilhas à quarta-feira seguinte, mas, porque foi ante manhã, se enganou o piloto, cuidando pela ilha de Santa Maria ser o morro do Nordeste desta ilha de S. Miguel, e se foi direito a ela; mas, amanhecendo, viu que era a ilha de Santa Maria e, querendo virar a proa para esta de S. Miguel, se virou o vento ao norte muito escasso, que com grande trabalho se podia ter, arreceando que o tempo os fizesse tornar para Lisboa; assim se andaram tendo aos mares até que à sexta-feira, à noite, vindo demandar a ponta dos Mosteiros, se foram ao longo da costa meter no porto, em que desembarcaram um formoso cavalo e algum fato do dito senhor.
A terceira vez veio o conde D. Rui Gonçalves da Câmara a esta ilha de S. Miguel, na armada de el-Rei Filipe, que vinha contra a Terceira. Chegou a Vila Franca uma quinta-feira, sete dias de Julho da era de mil e quinhentos e oitenta e três anos. E ao dia seguinte, que foram oito do dito mês, desembarcou no porto da mesma vila, donde depois se foi por terra para a cidade da Ponta Delgada, acompanhado com muita gente de cavalo, onde se recolheu no mosteiro de S. Francisco por alguns dias, fazendo ali grandes gastos em banquetes com os senhores e fidalgos da armada. E uma quarta-feira à tarde, vinte de Julho da dita era de oitenta e três, se passou do mosteiro para a fortaleza, com grande festa da gente e estrondo de artilharia, onde esteve alguns dias, até se passar para as suas casas, que tem na freguesia de S. Pedro, donde foi visitando e fazendo fortificar toda a ilha, nos portos e lugares mais fracos, mandando fazer resenha de toda a gente de cavalo e de pé, e exercitando-a nas armas, até ele em pessoa correr a par com os cavaleiros, levando sempre avantagem na carreira, por ser bom cavaleiro e muito bem posto e airoso a cavalo. É alvo, de estatura mediana, não muito envolto em carnes, de olhos verdes rasgados, com todas as particularidades do rosto mui perfeitas, e a barba bem posta. Tem grande modéstia, prudência, discrição, conselho e habilidade para tudo; e extremado escrivão e arimético, na presença mui grave, mas mui afábil, cortês e humilde com todos. É, nesta era de mil e quinhentos e noventa, de idade de cinquenta e sete anos e já pinta de branco. Do povo cego é murmurado que ajunta muito dinheiro. Não é pecado ajuntar sem dano de outrem para gastar a seu tempo devido, antes é prudência e virtude, principalmente tendo tantos filhos e filhas, como ele tem, afora o morgado. Se umas vezes ajunta e adquire, outras espalha e reparte com viúvas e pobres, fazendo muitas esmolas, sem costumar tomar testemunhas quando as faz.
Casou este ilustríssimo senhor com D. Joana de Gusmão, filha do conde do Redondo e dama da Infanta D. Maria, senhora de tão raras virtudes e heróicas obras, que todos os desta ilha a desejam ter presente, sabendo certo que há-de ser amparo dos ricos e riqueza dos pobres e mãe de todos. Mas, parece que esta terra não merece tanto bem. Foi recebido com ela no Paço, em casa da dita Infanta, por D. Fernando, arcebispo de Lisboa, parente de el-Rei, o qual quis ser presente no recebimento, não sendo chamado para isso senão D. João de Melo, bispo do Algarve. E chegando o arcebispo, disse que a ele pertencia recebê-los, pelo que a Infanta teve depois suas escusas com o bispo do Algarve; estando presente el-Rei com todos os senhores da corte e toda a fidalguia, com que se celebrou o recebimento com grande solenidade. Foram padrinhos de D. Rui Gonçalves, o conde de Vila Nova e D. Afonso de Alencastro, e padrinho da senhora D. Joana, o duque de Aveiro, o de grande saber e conselho, parente de el-Rei. Houve em dote trinta mil cruzados. E logo o dia seguinte se partiu o conde do Redondo por viso-Rei para a Índia, deixando sua filha casada com o dito senhor, da qual tem cinco filhos e seis filhas.
O primeiro, D. Manuel da Câmara, será agora de vinte e quatro anos. É afábil, humilde, conversável, grande de corpo, forçoso, bom lutador e cavaleiro, gentil homem, bem assombrado e de boa condição; tira bem a barra, é latino e bom escrivão; sabe canto de órgão e é grande músico, dado a toda a maneira de música, principalmente de harpa, viola e tecla. Tem gentil voz com que suavemente canta quando tange. Sendo de pequena idade, cantou, tangendo harpa, diante de el-Rei D. Henrique que o louvou muito. Casou com D. Leonor, filha de D. Fradique Henriques, mordomo dos quatro de Sua Majestade, muito chegado em parentesco à casa do duque de Alva, e de sua mulher D. Guiomar de Vilhena, dama que foi da Rainha D. Catarina. Sua Majestade lhe tinha prometido casamento para uma filha sua e dando-lhe a escolher em Portugal dos melhores morgados, este lhe pareceu melhor. E el-Rei mesmo fez este casamento, fazendo conde ao Capitão D. Rui Gonçalves da Câmara e a seu filho morgado, D. Manuel da Câmara, por sua morte, a quem deu o hábito de Cristo com um conto de réis, dando-lhe também outras muitas cousas e muitos ofícios que ele dantes não tinha aqui na ilha.
O segundo filho, D. Gaspar da Câmara, é muito gentil homem, forçoso e bem inclinado; o qual trouxe o conde, seu pai, consigo a esta ilha, onde foi capitão da gente de cavalo, e seu logo-tenente o capitão Alexandre, e Manuel da Fonseca seu alferes.
O terceiro filho, D. Francisco da Câmara, grande músico e de boa voz, estudava em casa e depois veio a esta ilha, onde foi capitão da gente de cavalo. E estes ambos são também inclinados a guerra e a soldadesca. O quarto filho se chama D. João da Câmara. O quinto D. Augustinho da Câmara, ambos ainda de tenra idade.
A primeira filha, chamada D. Juliana, nesta era de mil e quinhentos e noventa, de idade de vinte e quatro anos, é muito formosa, discreta e muito dama; sabe ler e escrever. A segunda, D. Maria, de idade de treze anos, também formosa. A terceira, D. Hierónima, mais moça que a outra dois anos, que ambas querem meter no mosteiro, de tão pouca idade, com licença do comissairo, porque têm lá suas tias, irmãs de sua mãe. A quarta, chamada D. Constança, nasceu a vinte e cinco de Agosto de oitenta, em Óbidos, o dia do desbarato de Lisboa, quando foi tomada dos castelhanos. A quinta, D. Isabel, ainda menina. A sexta, D. Francisca.
Quando este senhor está no Regno, ora pousa nas suas ricas casas, que tem na freguesia das Martes em Lisboa, ora em Frielas, em uma sua quinta mui rica, em uns paços que nela tem, que antigamente foram de el-Rei D. Dinis. A qual quinta está duas léguas de Lisboa por terra, e por mar duas léguas e meia, porque vão lá entrando pela boca de Sacavém, indo pelo braço do rio acima meia légua até desembarcar à porta da quinta, que, quando a maré é cheia, lhe dá a água na mesma porta. Tem também outra quinta, quando vem de Lisboa para Belém, onde se chama a Pampulha, em que faz umas sumptuosas moradas .
No tempo da guerra dos castelhanos, lhe saqueou o alcaide Pareja as casas da cidade, que estão às Martes, e nelas morou uns dias. E nos do saco lhe saquearam outros soldados a quinta de Frielas, em que lhe levaram mais de seis mil cruzados de fato seu e de sua irmã D. Hierónima, a qual estava concertado casar com o conde do Redondo, e por haver dúvidas entre eles não casou. Depois não quis casar e fez vida de beata. Foi senhora muito amiga de Deus e de grande virtude, devota da Igreja e de ouvir os ofícios divinos. Faleceu nesta vida e virtude, como já disse.
Deixando aparte os três ou quatro meses que este senhor governou a ilha antes do falecimento de seu pai, contando o tempo dos dois governadores Ambrósio de Aguiar e Martim Afonso de Melo , vai em treze anos que começou a governar na era de mil e quinhentos e setenta e sete, depois da morte de seu pai, até esta de mil e quinhentos e noventa, em que esteve governando esta terra com muita paz e mansidão, fazendo todas as cousas do governo dela com grande saber, prudência e bom zelo de que é dotado, dispondo tudo tão suavemente que não se sentia o seu jugo no povo obediente, que se quere reger por razão. E havendo alguns súbditos sem ela, quando ele os não podia dobrar, nem domar com sua condição macia, então com aspereza os refreiava; pelo que é amado e obedecido dos bons e obedientes e grandemente temido dos que têm dura cerviz e são revéis. E assim se espera que vá de bem em melhor em todas suas cousas, que Nosso Senhor prospere, como ele deseja. Mandou socorrer a ilha de Santa Maria e nesta de S. Miguel aos biscainhos, defronte do porto da cidade da Ponta Delgada, mandando depois pedir a Sua Majestade quatro valorosos capitães e munições de guerra, que logo lhe mandou, para mais fortificação da terra, como adiante direi.
O ano de mil e quinhentos e oitenta e sete, começou o dito conde a mandar fazer umas sumptuosas casas que, segundo mostram em seus princípios, depois de acabadas, virão a ser como uns riquíssimos e soberbos paços, situados quase no meio da cidade da Ponta Delgada, com que lhe dá muito lustro.

No ano de oitenta e oito, foi eleito por provedor da Casa da Misericórdia da dita cidade, com conselheiros e coadjutores dos mais nobres da terra.
Domingo, doze de Agosto de mil e quinhentos e noventa, às doze horas, partiu este senhor para o Reino em uma sua caravela, com outra companhia de navios. Levou consigo a seu filho D. Francisco e o capitão Alexandre e o capitão Peralta.
A quinze de Agosto do dito ano, às quatro horas da manhã, chegou arribado, com tempo contrário, ao porto da cidade da Ponta Delgada.
A quatro de Setembro de mil e quinhentos e noventa, tornou a partir para o Regno na sua caravela, bem aparelhada de armas, com outras velas em sua companhia, e, depois de partidos, véspera de Nossa Senhora da Natividade, em amanhecendo, os correram dois navios de cossairos e vendo que não podiam tomar a caravela do conde, viraram sobre as outras duas de sua companhia; e ao domingo, dando à do conde muita tormenta com tempo contrairo, tão rijo que lhe quebrou o mastro grande, perguntou ele, vendo-se desta maneira e muito enfermo, em que rumo estavam, e achando-se estarem cento e cinquenta léguas de Lisboa, e da ilha da Madeira noventa, mandou que arribassem a ela, por terem para lá o vento em popa, aonde chegando foi recebido com muita alegria de toda a gente da terra, principalmente o general Tristão Vaz da Veiga, que lhe fez muita festa e o agasalhou com toda a companhia em sua casa, onze dias que aí esteve. Depois, temendo o conde que os cossairos tomassem algum navio da sua companhia e dissesse que ele ia na caravela, fretou um francês por quatrocentos cruzados e se meteu nele com sete homens; e partiu daí um sábado, depois de ouvir missa, e a caravela partiu à noite com a mais gente. Puseram uns e outros no caminho sete dias; o conde foi ter a Peniche e daí a Lisboa, onde foi bem recebido de Sua Alteza, que lhe faz muitas honras, como se espera também ser recebido de Sua Majestade, que lhe fará muitas mercês.