Manuel Correia, cavaleiro fidalgo da casa de el-Rei nosso Senhor, e sargento mor desta ilha de S. Miguel, foi filho de Fernão Gil, cavouqueiro, o qual era natural da vila de Ançã, termo de Coimbra. Seus pais e parentes eram lavradores e ricos, e nas terras onde moravam governavam a república. O dito Fernão Gil veio a esta ilha de idade de vinte anos, fugindo de sua terra por certo negócio que nela teve. Foi-lhe necessário buscar modo de viver, e assim foi cavouqueiro. Casou-se com Leonor Roiz, filha de João Roiz, o Mano, de Vila Franca; teve o dito Fernão Gil este filho e de idade de sete anos o pôs nas escolas de ler e escrever e canto, e estudou até idade de dezasseis, que o mandou para Coimbra aprender, e para o fazer letrado e sacerdote. Esteve no estudo quatro anos, acabou a gramática e, estando para passar às artes, deixou o estudo e se foi com Francisco Barreto ao Pinhão de Belles, quando se ganhou.
Depois de seu pai ser falecido, veio a esta ilha e daqui se tornou para Castela e se foi à guerra de Granada, na qual esteve desde o princípio até o fim, achando-se em todas as batalhas que nela houve, com o terço de D. Lopo de Figueiroa, que acabou de destruir a moirama daquelas ásperas serras. Foi ferido nesta guerra de uma espingardada em um quadril. Daí se embarcou com o senhor D. João de Áustria, de gloriosa memória, para Itália, no dito terço que se chamava o da Liga, e se achou na batalha naval na galé Ocasião, de Hespanha, onde pelejou como valente soldado, saltando em uma galé dos turcos e acabando de a render foi ferido de duas lançadas em uma perna. Depois se achou na jornada de Navarrin, depois na jornada de Hanes, depois na jornada da ilha dos Querquenes, em África. Depois se foi a Frandes, onde estava o senhor D. João, e se achou em ganhar dezoito vilas fortes, donde saiu ferido de duas espingardadas; e uma lhe deram, reconhecendo o Fuso de Matrique , a outra em uma escaramuça, a maior que houve em Frandes. Depois que mandou Sua Majestade vir toda a gente de Frandes, se veio à guerra de Portugal, onde não foi necessário e ficou em Itália e veio com a Imperatriz, e, embarcando-se na armada do marquês de Santa Cruz, se achou no galeão S. Mateus, com parte da artilharia a seu cargo, em sua estância, quando se desbaratou a armada de França. Veio a esta ilha, havendo dezoito anos que era fora dela, e, tendo-o já por morto, achou sua mãe e irmãos vivos; tornou-se na armada. Sua Majestade lhe fez mercê de o tomar por cavaleiro fidalgo com mil e duzentos e cinquenta réis de moradia. Logo o outro ano, veio com o marquês de Santa Cruz à jornada da Terceira, e se achou na desembarcação dela com o capitão Pero Rosado, dos primeiros que saltaram em terra. O marquês de Santa Cruz, havendo-o conhecido haver servido muitos anos a Sua Majestade muito bem, lhe fez mercê do ofício de sargento mor desta ilha e de cinquenta mil réis mais, de uma praça no castelo dela, que um ordenado e outro são trezentos cruzados cada ano. Foi soldado na companhia de D. Pedro de Bassão, e cabo de esquadra, e sargento, e alferes dezasseis anos, sem nunca deixar a dita companhia, no terço de D. Lopo de Figueiroa, que foi uma das maiores façanhas que ele fez no tempo que foi soldado.
É homem alto de corpo, envolto em carnes, forçoso e animoso, bem assombrado, discreto, nobre, liberal, macio, conversável e humilde; pelas quais partes sempre foi tido em muita conta entre a soldadesca, e é mui estimado e honrado do conde governador D. Rui Gonçalves da Câmara, em cujo tempo veio a esta terra, e amado de todos os moradores desta ilha de S.
Miguel, que de boa vontade o aceitaram por sargento perpétuo. É tão curioso que de todas as batalhas e empresas em que se achou fez um breve e copioso sumário, muito para ver e ouvir, em que bem mostrou ser mais que pastor, pois como Júlio César, trazia na milícia as armas em uma mão e os comentairos na outra.
A cabo de três anos que o dito Manuel Correia estava nesta ilha com o dito cargo de sargento mor, depois da batalha que se teve com os dois galeões ingreses, de cuja vitória foi ele a principal parte, se foi ao Regno, onde lhe fez Sua Majestade mercê de lhe confirmar o ofício de sargento mor perpétuo, com setenta mil réis de ordenado, que tinha dantes, e tomado por seu capitão do número, com doze mil réis pagos no mesmo lugar aonde se paga o ordenado de sargento mor, e duzentos cruzados em dinheiro para ajuda de custa, e a praça que tinha no castelo, que eram onze cruzados cada mês, que são cada ano cinquenta mil réis, e lhe aclarou que se lhe pague cada ano, como se lhe pagava, que vem a ser, um ordenado com outro, cento e trinta e dois mil réis cada ano, e a seu irmão, Simão Correia, que também se achou na mesma batalha com ele contra os galeões ingreses, fez Sua Majestade mercê de o tomar por cavaleiro fidalgo, e cinquenta cruzados de mercê para ajuda de custa.