Certo sabemos que muitas coisas, primeiro que se viessem a efectuar, andaram muito tempo na boca das gentes, sem saber donde nasceu a tal opinião. Assim a destruição de Vila Franca do Campo que quero contar, primeiro se dizia que viesse, ora procedesse de revelação divina, posta na boca dos meninos para denunciarem o castigo que Deus queria dar àquela vila, ou de outra qualquer causa.
E poucas vezes manda Deus a execução de sua justiça, para castigar os pecadores, sem primeiro mandar pregoeiros e mensageiros que declarem o rigor da sentença que ele tem dada na sua mente divina, como as visões e sinais que se viram sobre Hierusalém , antes de ser destruída por Tito e Vespasiano, e outros muitos pronósticos de desolações futuras de lugares e povos, que antes de serem chegadas já eram sabidas e apregoadas, até pela boca de meninos, de que não faço particular menção por evitar prolixidade.
Assim, querendo Deus castigar Vila Franca do Campo, a mais populosa vila destas ilhas dos Açores, onde com a grande abundância e viço vicejaram muitos males naquele antigo tempo fertilíssimo, sem saber donde nascera o prognóstico, permitiu Deus que andassem os meninos inocentes alguns dias dantes de seu dilúvio , apregoando pelas ruas que havia de vir cedo, e na sua véspera diziam claramente: amanhã havemos de morrer todos e se há-de alagar esta vila. Seus vizinhos diziam uns a outros: dizem que nos havemos de alagar esta noite; ceemos bem e morreremos fartos. E uns compadres diziam a outros: compadre, comamos hoje nossos capões, pois que havemos de morrer amanhã; tão cego andava todo aquele povo que em lugar de temer e tremer e fazer penitência, zombando se dava e entregava mais a deleites e manjares. Todavia, alguns temendo, fugiam para outras partes, outros, não o crendo, ficavam na vila, outros escaparam fora em suas quintas onde moravam, outros, por acudirem a seus negócios, se iam a suas granjearias fora dela, como aconteceu a alguns que irei dizendo.
Antes desta subversão e tremor da terra que quero contar, veio ter a esta ilha um padre pregador da ordem de S. Domingos, chamado Frei Afonso de Toledo, o qual, dizem, era irmão do arcebispo de Toledo e parente chegado do duque d’Alva. A causa de sua vinda a esta terra, dizem ser porque, no tempo das comunidades que houve em Castela, era ele um dos comuneiros, e dizem também ser o abade de Tentule que pretendia ser Bispo de Çamora, e o de Çamora arcebispo de Toledo. Este pregador, dizem alguns que naquele tempo pregara, aqui na vila da Ponta Delgada, que se havia de alagar uma vila ou ilha; outros dizem que não pregava senão que se emendassem todos nesta ilha e fizessem penitência, porque Ihe arreceava vir sobre ela grande castigo, pelos males e pecados que via na gente dissoluta, com a grande abundância e fartura que então havia nesta ilha, onde todos viviam ricos e abastados, sem se achar um pobre a quem se pudesse dar esmola, para o que fazia fazer algumas procissões muito devotas, o que parece ser assim; porque, como outros antigos contam, foi chamado o dito pregador uma sexta-feira, seis dias antes da subversão, de mandado do ouvidor do eclesiástico; do qual perguntado deste caso, como sabia que se havia de alagar esta ilha, respondeu: No digo io esso, sino que será lo que Dios quisiere; dizendo que pregava contra os vícios que via, arreceando que viesse algum grande castigo por eles.
Véspera da subversão, o tornou a mandar chamar o ouvidor do eclesiástico da Ponta Delgada; e chegando à Vila Franca já tarde, chamando à porta do dito ouvidor para falar com ele, Ihe foi dito de sua parte por um pagem de casa que ao outro dia Ihe falaria; ao que respondeu Frei Afonso: Puede ser que mañana no me podra hablar; a qual palavra o dito pregador confessou depois a algumas pessoas nobres que a dissera assim à ventura, sem adivinhar o que havia de ser. Também não passou assim o que outros contam dele, que acabando de dizer esta palavra, se foi além da ribeira, a uma pousada de um homem pescador, chamado o Gago, que servia de estalagem, onde estando recolhido em oração, mandou um seu moço fora, olhasse se via alguma coisa para a parte do mar, e tornando o moço dizendo que não via nada, o tornou a mandar com aquela sete vezes, e na derradeira Ihe disse o moço que vira uma nuve pequena, como pegada de um homem, subir do mar, e que então dissera o dito pregador que era chegada a hora que se havia de destruir Vila Franca.
A qual história, posto que ele estivesse então recolhido naquela estalagem onde soía pousar, não passou assim. Mas alguns, não certos relatores, Iha aplicaram, sendo caso que aconteceu a Elias, profeta, no Monte Carmelo, como se pode ver no fim do décimo octavo capítulo do terceiro Livro dos Reis.
Gomes Fernandes, homem nobre, que depois viveu no lugar do Faial, oito dias antes do terramoto, se partiu de Vila Franca para a ilha da Madeira, e o dia que se subverteu a dita vila sentiram os marinheiros e passageiros tremer a nau no mar; e chegando à ilha da Madeira, acharam nova que era perdida esta ilha de S. Miguel, do que eles se riram e disseram que tal não era. Mas não tardou muito um navio que foi desta terra, com o qual se soube que era destruída Vila Franca.
Segunda-feira, dois dias antes do dito tremor, se foi Pero da Costa embarcar com duas suas irmãs, Isabel da Costa, que depois se chamou Isabel do Espírito Santo, e Maria da Costa, que depois, sendo freira, foi seu nome Maria da Trindade, que então eram moças solteiras, e partindo de Vila Franca, onde moravam, para a Povoação Velha, para governar a fazenda de seu pai, que lá tinha, ainda que então também era mancebo bem moço, ia para começar a lavrar e semear as terras, com as ditas irmãs, para ministrarem o mantimento à gente de casa.
Deitado o batel ao mar para fazerem sua viagem e saídos do porto tanto como meia légua, sendo ante-manhã uma hora, não taparam a jaja do batel, pelo que fez tanta água que não lha podendo tomar, se tornaram ao porto donde haviam partido, e daí para casa, onde ficava seu pai e mãe e outros irmãos.
À terça-feira seguinte, de madrugada, querendo-se embarcar só no mesmo barco o dito Pero da Costa, oferecendo- se suas irmãs sobreditas a ir com ele, como dantes iam, Iho quisera estorvar sua mãe; mas uma das irmãs, Isabel do Espírito Santo, que desejava ir, por ver ser assim necessário, ainda que a outra tinha pouca vontade e a mãe muito menos, posto que porfiava, já cessava sua ida; todavia, como Deus as tinha guardadas para serem suas servas, como tanto depois foram, veio Maria da Trindade conformar-se mais com a vontade da outra irmã, e partindo, chegaram com boa viagem à Povoação, terça-feira ao meio-dia. A horas de véspera, Ihe pediu um vaqueiro de seu avô o barco, para nele vir a Vila Franca buscar coisas necessárias para o monte, e chegando com seus companheiros, varando o barco no porto da vila, donde havia partido, se recolheu a negociar e negociou para sempre, porque a madrugada seguinte foi espantoso tremor e coberta a vila de terra, onde ele e todos os demais ficaram sepultados.
Eis aqui como escapam muitas vezes vivos, pelos rodeios que Deus ordena, os que estavam no perigo, e vão buscar de perto a morte os que estavam fora e longe dela. Assim ficaram vivas as duas irmãs, como treslado da vida contemplativa que depois tiveram, com seu irmão, não menos servo de Deus na outra vida activa, em que, por muitos anos que viveu naquela vila, depois de reparada ou de novo feita, Ihe fez muitos e notáveis serviços, dignos de celestial galardão e perpétua memória, ficando também sepultada toda a mais casa de João de Arruda, pai do dito Pero da Costa, na dita vila, convém a saber, sua mulher e duas filhas e um filho e um escravo e uma escrava. Mas João de Arruda por ter que fazer na Ponta Delgada, para onde também André Gonçalves de Sampaio, chamado Congro, estava de caminho, para se recolher a sua fazenda do lugar de Rosto de Cão, ordenaram de irem ambos em companhia, e estorvava-se a ida por faltar uma cilha para a besta em que havia de ir a mulher de André Gonçalves, pelo que cessava sua partida; mas tinha-lhe Deus dado vida, porque João de Arruda Ihe ordenou de uma corda remédio, pelo que fizeram seu caminho e escaparam, ficando a mais gente de sua casa soterrada debaixo da terra, como todos os mais da vila ficaram. Donde se podem conjecturar outros muitos acontecimentos semelhantes, que haveria então em um povo tão grande.
Também o Capitão Rui Gonçalves da Câmara, três ou quatro dias antes do tremor, se queria partir só, de Vila Franca onde morava, para uma sua quinta do Cavouquo , que tinha acima da vila da Alagoa; mas por D. Filipa Coutinha, sua mulher, ter ciúmes dele, o quis acompanhar na jornada, deixando na dita vila filhos e filhas e toda a mais gente de sua casa.
Alguns dizem que queriam levar consigo seu filho Manuel da Câmara, que era então de pouca idade, contra sua vontade, querendo ele antes ficar com suas irmãs, para o qual fim foi à estrebaria encravar a mula em que havia de ir, por ao tal tempo andar de amores na dita vila.
Outros dizem que seu pai e mãe o deixavam ficar com os mais de casa, e partidos, ele como moço de pouca idade e muito mimoso, os vinha de trás seguindo e por mais que o Capitão o fazia tornar para a vila, não deixava ele de os seguir, até que por rogos dos cavaleiros que o iam acompanhando, o mandou tomar às ancas de um e levou consigo para o Cavouquo, com que escapou da morte, ficando morgado e herdeiro da casa de seu pai, por falecer em Vila Franca seu irmão mais velho, que o era, com toda a mais gente da dita casa.
A própria noite da subversão de Vila Franca, houve homem que ouviu um ronco muito grande vir da banda do noroeste e ir para oriente, e chegando o dito ronco como sobre a vila de Água do Pau, começou tremer a terra.