Andando no mar as duas armadas contrairas, travadas na batalha que agora acabei de contar, andavam nesta ilha os religiosos e sacerdotes com o povo fazendo procissões, em que pediam a Deus paz e concórdia entre os príncipes cristãos, para quietação de seus povos; e alguns, em seus corações, rogavam a Deus particularmente desse vitória à armada de Hespanha, outros à de D. António , mas no geral se pedia que se lembrasse Deus dos cristãos e alumiasse os errados. A quarta-feira, dia do Apóstolo Santiago, viam de terra as armadas apartadas grande distância uma da outra para o sul, defronte de Vila Franca do Campo, onde na igreja matriz do Arcanjo S. Miguel, junto o povo para ouvir missa, houve uma excelente pregação de um padre da Companhia, chamado Faustino de Maiorga que aí os franceses trouxeram de um navio que da ilha da Madeira havia saído e encontrado com sua armada, no qual o dito padre e um seu companheiro iam por passageiros. A qual pregação foi sobre aquelas palavras do Evangelho da mesma festa: — Nescitis quid petatis. Potestis bibere calicem, quem ego bibiturus sum? Dicunt ei: possumus. Onde consolou grandemente os cristãos, animando-os, dizendo que ainda que muitas misérias, trabalhos e perseguições passássemos, tudo permitia o Senhor para melhoria nossa e glória sua. Um frade domínico português, chamado frei José, que em companhia de D. António viera, estava então assentado com os mordomos da mesa do Santíssimo Sacramento, defronte do púlpito, onde ouviu e interpretou a pregação a seu gosto e vontade, porque, acabando de pregar e descer do púlpito o padre da Companhia, logo se ergueu ele em pé e disse a todo o povo que estivesse atento ao que queria dizer e manifestar. E advertido e atento o povo, começou ele em alta e inteligível voz, a dizer: — Vendo eu que o padre que acabou de pregar é português, lhe dei licença que hoje pregasse na igreja do Arcanjo S. Miguel, entendendo que ele pregaria e declamaria o que vos convinha saber acerca do nosso Rei D. António, que vedes e sabeis anda com sua armada procurando vencer o imigo, como prestes vencerá, e a declarar-vos o que há feito e fará por nos dar liberdade e paz, e para nos fazer grandes mercês, o que o padre não pregou nem tratou senão do Evangelho, o que todos já sabeis, e disto que tanto vos importa saber e fazer, nada disse; pelo que a mim convém avisar-vos: — Haveis de saber que o vosso Rei e senhor D. António é Rei e senhor destes Reinos de Portugal e assim lhe são concedidos e o direito deles pelo Papa. E porque el-Rei de Castela com poder e força se apoderou deles e ora os está possuindo com ter guarnição e gente de armas neles injustamente e contra direito, conveio a vosso Rei e Senhor buscar modo e vias como deste Reino saísse escondido, tendo antes escapado com feridas mortais, das quais, dando-lhe Deus saúde, andou escapando de não ser preso nem morto de seus imigos, ora vestido em trajos de pastor, ora de lavrador, ora fugindo de barco em barco, ora de monte em monte, até vir dar em uma serra mui espessa de arvoredo, fragosa e áspera de caminhar, dormindo sobre pedras à chuva e ao vento, buscando caminhos e veredas por onde pudesse sair de lugar de povoado, para ver se pudesse ir buscar quem em direito e justiça o pusesse com seu contrairo e favorecesse com armadas e gente, até ser tornado à posse de seus Reinos e Senhorios. E, estando uma noite cuidando nisto, lhe apareceu uma estrela junto de terra, no ar, como fez aos Reis Magos, e o começou a guiar, com que ele louvou ao Senhor por tal mercê, e pôs em sua vontade de seguir o caminho que aquela estrela lhe mostrasse. Assim andou após ela até ver a luz do dia, em que se achou na praia de Setúvel, onde viu uma grande nau que de verga de alto estava disposta e aparelhada para partir, e perguntando para onde se fazia prestes aquela nau, lhe foi dito da barca da mesma nau, que para Inglaterra; perguntou como se chamava a dita nau, disseram-lhe que os Reis Magos. Logo disse ele: — nela me convém ir; levai-me dentro a ela. Recebido na barca, foi levado à nau e vendo-a tão formosa e grande, e de tal nome, louvou a Deus em seu coração, dizendo que, para ter bom sucesso do que desejava e esperava, Deus o havia tirado daquele deserto e serras onde andava perdido, e com sinal, como os Magos, o tinha trazido a tal lugar e à nau de seu apelido. E que desta jornada fora a Inglaterra e a Frandes e a França, e contando-lhe suas cousas, à Rainha mãe e aos grandes de Frandes, de França e Inglaterra, lhe prometeram dar tanto favor e ajuda quanto bastasse e fosse necessário para cobrar e recuperar seu Reino, com maior aumento, e veriam como quanto possuem e têm os luteranos hespanhóis tudo há-de vir a sua mão, porque esta tão grande armada que aqui vedes, que traz Sua Majestade , é toda muito pouco para as que se esperam; e vêm já pelo mar D. Diogo de Menezes com cinquenta grossos galeões e naus de armada, que fez em Frandes e em Inglaterra; Duarte Perin com outros vinte ou trinta galeões; e a da Rochela com outros tantos; e sendo junta com esta que vereis presto ganhada, averiguando estas ilhas que fiquem fortalecidas e bem fortificadas, logo partirá Sua Majestade a tomar posse do seu reino, porque todo está aparelhado para se lhe entregar, como ao conde de Vimioso e ao bispo da Guarda, todos os condes e senhores de Portugal têm prometido, e logo tomarão a Castela; e haveis de saber que vosso Rei é tão católico que não quis ajuda do Grão Turco, que também para tudo isto lha dava. E não traz nenhum luterano consigo, senão todos católicos, que por exalçar a fé católica hão passado muitos trabalhos e visto-se em grandes guerras e encontros com luteranos; e o senhor Filipe Strosse traz uma honrosa cutilada pelo rosto, recebida por destruir luteranos, e outros grandes senhores que aqui vêm muitas feridas e golpes que houveram por exalçamento da fé. Assim vereis como deles sois bem tratados e defendidos, e não tão somente não tomarão o vosso, mas antes vos darão do seu, pagando-vos o que vos comprarem inteiramente, sem vos fazer ninguém injúria, como lhe é mandado a todo soldado, que nenhum agravo faça a nenhum português, tanto vos estima Sua Majestade, e por isso agora que vedes ser necessário o ajudar com orações e fazer procissões para que Deus lhe dê vencimento do imigo, com quem já anda em batalha, ainda que é tudo muito pouco para ele, mas todavia para que vos mostreis bons súbditos e vassalos, é razão que assim o façais, e para isto foi dada licença ao padre que pregou, para que vos avisasse e informasse, e ele não quis tratar senão do Evangelho, e não do que importava. Sabei que quando são guerras necessárias, Deus as quer e permite, senão vede a de Faraó em Egipto, e como foi destruído, e vede outras muitas que o povo de Deus teve com seus imigos; tudo se acabou por guerra. Bem vedes quanto nos é necessário alcançar nosso Rei a vitória, para que fiqueis todos livres desses luteranos, espanhóis e castelhanos, que desejam e querem tomar e haver vossas fazendas e terra, e cativar vossas mulheres e filhos. E vosso Rei, por vos livrar de tudo isto, anda em pessoa pelejando com eles; e pois isto vos é notório, rogai todos a Deus lhe dê deles vitória. E assim fareis o que deveis e sois obrigados como bons cristãos e súbditos. Dizendo isto e outras mais cousas, este padre deu fim a sua prática, a que todos os circunstantes estiveram calados, o que foi claro sinal de lhe não ser agradável, principalmente porque o padre da Companhia tinha tão bem e tão direitamente falado e dado tanta doutrina e tão suave, que arrebatou os corações de todo o auditório e povo e os uniu com Cristo. E, como os moradores desta ilha estão tão enfadados de sedições, nem por o que este frade então disse deram nada, nem falaram nada; nem edificou cousa alguma sua tal doutrina, especialmente aos sacerdotes e aos discretos e honrados. E, acabada a missa, houve homem que indo para acompanhar sua mulher para casa, lhe disse ela, pelo dito frade frei José: — Marido, eu ouvi agora o Anti-Cristo; é certo que este frade o parece; o pregador d’antes pregou a palavra de Nosso Senhor com tanto espírito que a todo o povo consolou e edificou, e este a todos desagradou e descontentou, com tanta sizânia que falou.
Contudo, por ser tempo duvidoso, por estar a batalha do mar em balança, não ousavam os homens falar na terra a verdade que entendiam; e, sendo então como dobrões de duas caras, foram acompanhando muitos com grande caterva o dito frei José, da igreja até sua pousada.
Ao meio-dia da mesma festa do Apóstolo Santiago, se viram em Vila Franca descobertas ambas as armadas, que antes estavam cobertas com sarração de grande nevoeiro que no mar havia, que ainda que as não viam, ouviam os da terra o grande estrondo da artilharia e tom da mosquetaria que entre si atiravam, e entendendo que já pelejavam, se fez uma devota procissão em que ia muito povo; e outra parte dele fez outra da vila até Ponta da Garça. Todo aquele dia ouviram no mar os mesmos estrondos. Ao seguinte, que era festa de Sant‘Ana, viram o galeão S. Martinho, onde ia o marquês, rodeando e como ajuntando suas naus, como faz o bom pastor no lugar onde se teme de lobos, e sentiram travar a escaramuça da batalha às onze horas, como atrás tenho contado. E o tirar das bombardas e mosquetaria era tal e tão contínuo, que aos que estavam em terra parecia que todas as naus e ambas as armadas se acabavam, e os que dali escapassem não prestariam para nada; pelo que toda a cleresia e gente de Vila Franca andava em procissão, e a justiça e vereadores em cuidado de mandar refresco a D. António , porque havia na vila alguns franceses que ficaram em guarda de Aires Jácome Correia, que com D. António viera e ficou ali enfermo, para se curar no mosteiro de S. Francisco, não por vontade do guardião, frei João de Faro. Ficaram também alguns franceses, como digo, na terra, por causa de um senhor francês que ficou doente em casa do Correia, genro de Francisco Lopes, de que logo direi. O estrondo e tom das bombardas e basta mosquetaria não cessava, dizendo uns que os franceses venciam, outros que os espanhóis eram vencedores, afirmando cada um o que mais desejava. Durou este estrondo das onze horas do dia até às cinco da tarde, ao qual tempo, clareando o ar e vendo-se o mar, foram os de terra descobrindo ambas as armadas, que, com o espesso fumo das bombardas e tiros, dantes se não viam. E divisaram três ou quatro naus ir destroçadas de mastos, enxárcias e obras mortas. E entenderam alguns que a armada francesa era desbaratada e que dos espanhóis era a vitória, como na verdade assim passava.
Depois do marquês ter alcançado a vitória que tenho dito, tão gloriosa, andou três dias bordeando com vento contrairo para arribar a terra, levando por popa do galeão S. Martinho, metido em um ceirão, o corpo morto do conde de Vimioso, com tenção de lhe ir dar em terra honrosa sepultura e estar presente a seu enterramento, por ser seu parente. Mas, por não poder chegar tão prestes e cheirar mal o corpo, lhe foi forçado deitá-lo no mar, onde nas águas salgadas dele ficou sepultado.
Divisaram os da terra o galeão S. Martinho vir para ela com sua bandeira no masto maior, como sempre trazia, do que inferiram ser nossa a vitória; e assim o conheceu o Capitão Alexandre, do lugar onde estava apartado e escondido do povo. Logo ao outro dia pela manhã, que era sexta-feira, vinte e sete de Julho, viam os da terra que umas naus se apartavam das outras, tristes com os mastos do meio quebrados e desfeitas de castelos e duas delas indo na volta da cidade e derrota da Terceira; e a noite que sobreveio lhas encobriu de todo no mar, mas ficou descoberta a tristeza dos frades e franceses que na terra andavam, que seriam até dezoito os que apareciam, afora quase outros tantos que se não viam, os quais franceses se acolheram logo em um patacho dos que tinham tomados, fugindo nele ao longo da costa.
Por mandado do padre frei José, estava em uma caravela, posto em guarda em poder de franceses o padre Maiorga, quando acabou de pregar o dia de Santiago, e seu companheiro; os quais franceses, vendo que os outros iam fugindo, ficaram temorizados, e arreceando o padre Maiorga que quisessem também fugir, lhes disse: — Amigos, não temais, que eu vos prometo se vos dará a vida, se fazeis o que vos eu disser; levai-nos ao galeão capitaina e eu vos empenho a cabeça que não recebais nenhum dano. Segurados os franceses e contentes do partido, se puseram logo em via, entregando suas espadas aos padres que lhas pediram, por irem mais seguros; e assim se foram apresentar ao marquês, que os recebeu amorosamente, por haverem passado trabalhos em poder de frei José, já dito, e outorgou a vida aos franceses.
Andava nossa armada toda junta, seguindo o galeão S. Martinho, e, como todos entenderam claramente serem os franceses rotos e vencidos, apareceu o Capitão Alexandre que de receio e temor dos moradores de Vila Franca andava escondido nos matos, e veio mui seguro à praça, com Manuel Favela, cidadão da dita vila, que também de novo apareceu. E disse o dito Capitão Alexandre a Manuel de Castro e a outros honrados da governança que ele se queria ir ver com o marquês, e pedir-lhe de mercê que não mandasse Sua Excelência saquear aquela vila, e que se tardava já em ir lá; e confiava em Deus alcançar do dito marquês mercê tão importante. Logo se embarcou em um barco, ele e Francisco de Arruda da Costa e João de Melo, seu genro, Manuel Favela, Batolomeu Nogueira e Manuel de Castro. Todos foram bem recebidos do marquês, e muito mais o Capitão Alexandre, que de muito tempo na guerra de serviço de Sua Majestade o tinha conhecido, ao qual concedeu perdão para a vila e para Aires Jácome, que não se pôde embarcar. Prometeu de o levar vivo a Sua Majestade, a quem pediria por ele mercês. Assim se tornaram mui contentes e alegres do bom gasalhado e despacho do marquês, a aparelhar cousas de refresco que lhe mandar e pôr em obra de haver às mãos o padre frei José e outro francisco, que em terra ficaram, da banda do norte, com Aires Jácome, para se acolherem em um barco em que se foram, tornando a desembarcar o dito Aires Jácome, por estar muito enfermo. Ficaram também em terra um francês, fidalgo, doente, e seus criados e guarda, ao qual logo o dito Capitão Alexandre, por ordem do marquês, foi prender a sua pousada. Mostrava este francês ser homem de muito preço, de gentil corpo e rosto, mancebo de trinta anos, bem proporcionado, de boa estatura e bem tratado, grande fidalgo, senhor de muitas vilas e lugares em França, segundo diziam, e trazia nesta armada sete naus suas, com as quais vinha ajudar a D. António . Levantando-se este francês da cama, onde estava enfermo e acabando-se de vestir, caminhou com ele e com os mais para a cadeia que perto estava; e, antes de partir, tremia e dizia, com as mãos alevantadas, ao Capitão Alexandre: — reserva-me la vita. O Capitão lhe respondia em italiano que esforçasse sua senhoria, que em tais transes havia de ter bom ânimo. Chegando à cadeia, lhe tornou a dizer o francês: — reserva-me la vita, onde o Capitão Alexandre lhe tirou uma bolsa de seda, em que estavam até sessenta peças de ouro, de sua moeda, e do pescoço uma rica cadeia e um esgravatador e algumas peças, tudo de ouro, de que se fez inventário. Rogando o francês e dizendo então mais afincadamente: — reserva-me la vita, o Capitão Alexandre lhe prometeu que faria tanto com o marquês que lha concedesse, quanto por um irmão seu; e assim foi que, por este francês se não achar na batalha do mar, e por lho pedir o Capitão Alexandre, antes que nenhum fosse justiçado, lho outorgou, mas que estivesse em lugar onde visse degolar os outros, como se fez e adiante direi. Este dia, que eram vinte e sete de Julho, se esperou que aos vinte e oito viessem a terra os que se haviam de degolar e justiçar, e não pôde ser, por andar o mar picado e por se primeiro pôr remédio nos feridos, que eram muitos; e vinham as barcas das naus carregadas deles, tão mal tratados que era mágoa vê-los, porque havia muitos que traziam braços e pernas menos, que as bombardas lhe tinham levado cerces; e outros passados com pelouros por ambas as pernas e por braços, costas e corpo; outros pernas e braços quebrados que lhe acabavam de cortar, dando-lhe cautérios de fogo para sararem, e cheiravam tão mal que não havia quem os aguardasse. Vieram com eles muitos serugiões , com o serugião-mor da armada, chamado Pero Alonso, natural de Vilhalpando de Campos, que também vinha ferido na cabeça, o qual curava a todos com óleo que chamam de aparício; e os que já não tinham remédio morriam. Vinham outros com os rostos e outras partes queimadas; a um português, que vinha com o rosto, pescoço e mãos queimadas, curou uma mulher de um João Vicente, tecelão, cum urina fresca e azeite. Vieram com estes feridos, também, quatro ou cinco religiosos enfermeiros, que tinham cargo de dar o necessário para tantos enfermos e feridos, que não cabendo no hospital e Casa da Misericórdia, estavam repartidos por outras casas da vila em que havia muitos capitães e valorosos soldados. Um dos quais, mui assinalado, era Fernão de Medinilha, que tinha um olho passado de um pelouro de arcabuz. Seriam estes espanhóis feridos, que saíram ali em terra, até trezentos, de que morreram a metade, e os que estavam para isso se tornaram embarcar, quando se embarcou o marquês para a cidade da Ponta Delgada, onde também desembarcaram até quinhentos espanhóis feridos, queimados e enfermos, depois que na dita Vila Franca mandou fazer justiça dos franceses.