Sendo D. Luís Coutinho, filho mais velho de D. Francisco Coutinho, de idade de vinte e cinco anos, pouco mais ou menos, sucedeu na comenda que vagou por morte de seu pai, por el-Rei lhe ter feito mercê dela, como atrás fica dito e adiante direi. E foi segundo do nome e o terceiro comendador da ilha de Santa Maria, de que vou tratando: grande de corpo e bem feito, gentil-homem, de rosto sôbelo (sic) moreno e corado, grave, de seu natural, e de poucas falas e certas, discreto, amigo de honra, muito pontual, em tanto que o que ele dizia se podia bem ter por escritura pública. Foi homem de branda condição, opiniático e bom latino; em vida do pai, e depois da morte, sempre teve mestres que lhe lessem.
Vivendo ainda seu pai, foi ao cerco de Mazagão; depois esteve em Tânger dezassete meses com cinco cavalos e seis homens à sua custa, em tempo que Lourenço Pires de Távora era capitão. Foi na tomada do Pinhão. Depois do pai (sic), sucedeu saquear-se a cidade do Funchal da ilha da Madeira, e ele foi ao socorro, dos primeiros, em companhia dos filhos do Capitão da dita ilha. Todo o mais tempo gastou na Corte, fazendo el-Rei muita conta dele, metendo-o sempre em todos os folgares em que ele entrava, de torneios e jogos de canas, e outros semelhantes. E seria ao presente, pouco mais ou menos, homem de idade de trinta e oito anos, ainda solteiro, não por faltarem casamentos e de bons dotes, mas parece que não eram de seu gosto.
Da (sic) renda da erva que se chama urzela, que se apanha pelas rochas, de que se faz a tinta roxa e anil, tão fina como de pastel, que pertencia a ele por ser tinta, a qual ainda agora nada rende, mas já rendeu em outro tempo, e veio-se a perder o trato dela não sei por que razão. Mas em tempo deste comendador D. Luís Coutinho rendeu esta erva, três ou quatro anos, vinte mil réis cada um ano; depois tornou a acalmar, nem houve quem mais a arrendasse; dizem que, por amor das guerras de Frandes, não tem saída, porque lá se vai apurar para se fazer a tinta dela.
Acrescentou-lhe mais as pensões dos três tabaliães que há na ilha, como tudo tinha e havia seu pai, D. Francisco Coutinho, por carta de el-Rei D. João, terceiro do nome, e o dízimo da terra e do pescado, que se antigamente arrendava pelos oficiais dos Reis passados para sua Fazenda. E, assim, a vintena do pastel da ilha e dos dois ilhéus, que estão junto dela, ao mar, um que se chama de São Lourenço, que está detrás da ilha, e outro que está defronte da ilha, perto da Vila, dos quais o comendador se pode aproveitar, sem deles pagar direitos alguns, e a dízima do pastel que sair da dita ilha para fora do Regno. De maneira que tudo isto fica e se tem em comenda, que rende o que atrás fica dito. Mas a primeira dada foi em cento e vinte mil réis, e assim o diz a carta da mercê, que ao primeiro comendador foi feita.
Foi este terceiro comendador D. Luís Coutinho com el-Rei à guerra de África, porque sempre foi homem que folgou de se achar nas empresas com os Reis, a quem servia com muita diligência e lealdade, mas não há novas dele, e, por tardarem tanto, se tem por morto no serviço de seu Rei, em que nunca faltou e sempre foi dos primeiros e dianteiros; e, como muito valente e esforçado cavaleiro, que era, veio alcançar que África fosse sua gloriosa e saudosa sepultura.
D. Pedro Coutinho, irmão segundo deste comendador, depois da morte do pai, foi-se para a Índia, sendo de idade de vinte e dois anos, pouco mais ou menos, e mancebo também grande de corpo, alvo e louro; onde andou oito anos, nos quais serviu a el-Rei de capitão no mar e na terra, em que lhe sucederam coisas boas, com que era já homem de muito nome. E no cabo dos oito anos, vindo em uma galé, em companhia de outros fidalgos, para se embarcar para o Regno, a requerer o despacho de seus serviços, encontraram no mar uns navios de imigos, a que chamam sanganes, que dizem ser gente de baixa sorte, e, por assim serem, fizeram pouco caso deles e não se quiseram armar, dizendo que os teriam em pouco, se tomassem armas para gente tão vil; os imigos, como eram muitos, cercaram a galé e renderam-na com matarem e ferirem toda a gente, onde acabou este fidalgo, sendo de idade de trinta anos, pouco mais ou menos. E a galé foi tomada aos imigos, da armada dos portugueses, que atrás vinha.
D. Gonçalo Coutinho, seu irmão terceiro, foi também para a Índia, sendo como de idade de vinte anos, mancebo de meão corpo, bem formado, muito gentil-homem e bem acondiçoado, liberal, cortês, muito macio, e tinha todas as partes que um bom fidalgo deve ter, e, sobretudo, era temente a Deus e muito esforçado.
Como foi na Índia, daí a poucos dias sucedeu o cerco de Goa e Chaúl, e mais forças da Índia, sendo Vizo-rei D. Luís de Ataíde, no qual tempo tiveram aquelas grandes e celebradas vitórias, que todos sabem. Mandou o Vizo-rei a este fidalgo, em companhia de outros soldados, a socorrer Chale, uma das fortalezas que, então, estava cercada, na qual não puderam entrar senão obra de quarenta homens à força de espada por antre os imigos, onde entrou este D. Gonçalo Coutinho, ferido de uma arcabuzada pelo rosto e uma setada em uma perna; e, porque, quando entraram, não puderam meter mantimentos nem munições de guerra, de que havia muita necessidade, se largou a fortaleza a partido aos imigos, e D. Gonçalo Coutinho foi à mão ao capitão que se não rendesse, escrevendo-lhe sobre isso um escrito, estando ferido na cama, que depois veio ao Reino com um estromento que disso tirou, para que se soubesse que não fora ele de parecer que se rendessem; pela qual razão el-Rei mandou cortar a cabeça ao capitão, não porque a fortaleza se pudera sustentar, que não tinha remédio, mas pela largar antes de tempo, podendo-se sustentar mais alguns dias, nos quais lhe pudera ir socorro.
Depois disto, andando este fidalgo, D. Gonçalo Coutinho, de armada na costa do Malabar por capitão, acharam uma fusta de imigos e, por o navio em que ele andava ser grande e pesado, passou-se a uma fusta mais ligeira para alcançar os contrários, que logo alcançou, e, estando aferrados, acudiu a gente portuguesa toda a uma banda para entrarem com eles, e os imigos também a defender-lho, de maneira que se viraram as fustas ambas e se afogaram todos, escapando só um (segundo dizem), onde acabou este fidalgo, mas afirma-se que, ao tempo que as fustas se viraram, ia já tão ferido, que não podia escapar de uma maneira ou de outra; e assim acabou, sendo de idade de vinte e quatro anos, pouco mais ou menos.
D. Bernardo Coutinho, seu quarto irmão, sendo de idade de dezoito anos, se foi também para a Índia, pequeno de corpo, sem se esperar dele ser maior que o pai, com que se ele muito parecia, e, assim, era opiniático. E andando na Índia, de armada no Malabar, por capitão de uma fusta, vindo outra de imigos, correu após ela e alcançou-a com brevidade, por ser a sua mais ligeira, e, estando aferrados para a renderem, chegou outra fusta de portugueses, em que vinha por capitão um Fuão Caiado, que aferrou também a fusta, que logo foi rendida, e largada por D. Bernardo ao Caiado, como em desprezo, fazendo pouca conta dela, por se achar afrontado de outro o socorrer em coisa tão pouca, de que não tinha necessidade, por não ser nada para ele render uma fusta. E, fazendo disso queixume ao capitão-mor, com ásperas palavras (como dizem), dizendo que, se não andara debaixo da sua bandeira, houvera de quebrar uma cana na cabeça ao outro, que estava presente e, achando-se destas palavras afrontado, o desafiou e matou no desafio, indevidamente (segundo dizem), não guardando a ordem que em os tais casos se deve ter, de maneira que lhe foi estranhado por muitos fidalgos.
Mas, bem morto ou mal morto, ele acabou miseravelmente por ser em desafio, se antes de expirar não se arrependeu de suas culpas, não dizendo nunca alguém a sua mãe a maneira de sua morte, senão que acabara como os outros.
Teve D. Luís Coutinho outro irmão, chamado D. Hierónimo, de que adiante direi.
A provisão de el-Rei, por que este D. Luís Coutinho, terceiro comendador da ilha de Santa Maria, houve a comenda dela, diz assim: “D. Sebastião, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d’aquém e d’além mar em África, Senhor de Guiné e da Conquista, Navegação, Comércio de Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia, etc.: — Faço saber aos que esta minha carta virem que, por parte de D. Luís Coutinho, fidalgo de minha casa, cavaleiro da dita Ordem (sic), filho de D. Francisco Coutinho, que Deus haja, me foi apresentado um alvará de lembrança de el-Rei, meu senhor e avô, que santa glória haja, por ele assinado, por que lhe aprouve de, por falecimento do dito D. Francisco, fazer mercê a seu filho mais velho, que por sua morte ficasse, da comenda de Nossa Senhora da Assunção na ilha de Santa Maria, que o dito D. Francisco tinha, como é declarado no dito alvará, de que o treslado é o seguinte: “Eu, el-Rei, faço saber aos que este meu alvará virem que, havendo respeito aos serviços que me tem feito D. Francisco Coutinho, fidalgo de minha casa, e aos que espero que ao diante me faça, hei por bem e me apraz de, por seu falecimento, fazer mercê ao seu filho mais velho, que por sua morte ficar, da comenda de Santa Maria da Assunção, da ilha de Santa Maria, das ilhas dos Açores, que ele D. Francisco ora tem; e para sua guarda e minha lembrança lhe mandei dar este alvará por mim assinado, o qual quero que se cumpra e guarde inteiramente, como se fora carta feita em meu nome, passada pela chancelaria, posto que este por ela não passe, sem embargo da ordenação do segundo livro, título vinte, que dispõe o contrário. André Soares o fez em Lisboa a vinte e cinco de Setembro de mil e quinhentos e cinquenta”. — Pedindo-me o dito D. Luís Coutinho, por mercê, que, porquanto o dito seu pai era falecido e ele ser o filho mais velho, que por seu falecimento ficara, segundo fez certo por certidão de justificação do doutor António Vaz Castelo, juiz dos meus feitos da Fazenda e das justificações dela, a que vinha e pertencia a dita comenda, conforme ao dito alvará de lembrança, houvesse por bem lhe mandar passar carta em forma dela. E visto seu requerimento e o dito alvará, havendo respeito aos serviços do dito seu pai e aos que espero que ele, D. Luís, à dita Ordem e a mim faça, hei por bem e me praz de lhe fazer mercê em comenda, com o hábito dela, dos dízimos da terra da dita ilha de Santa Maria e a dízima do pescado que se antigamente arrecadava pelos oficiais dos Reis passados, para sua Fazenda, e assim a vintena do pastel da dita ilha de Santa Maria e dos dois ilhéus, que estão junto dela ao mar, um que se chama de São Lourenço, que está detrás da dita ilha, e outro, que está defronte da ilha, dos quais ilhéus hei por bem que o dito D. Luís se possa aproveitar no que lhe bem vier, sem deles pagar direitos alguns, e por esta presente carta lhos couto e hei por coutados. E lhe faço isso mesmo doação e mercê da dízima do pastel que sair da dita ilha para fora do Reino, que anda com a dita comenda, como tudo à dita Ordem e a mim pertence e pertencer pode, por qualquer maneira que seja, e como tinha e possuía o dito D. Francisco, seu pai, pela carta que da dita comenda lhe foi passada, porque de tudo faço por esta doação mercê ao dito D. Luís, com o hábito da dita Ordem, como dito é, com tal declaração que ele será obrigado pagar à sua custa os mantimentos e ordenados do vigairo e clérigos e tesoureiro e quaisquer outras ordinárias de oficiais eclesiásticos da dita ilha, e dar o trigo necessário para farinha para as hóstias, e o vinho, velas e candeias de cera para o serviço das igrejas da dita ilha, cada vez que para isso for pedido. E, portanto, mando ao capitão da dita ilha e ao seu ouvidor, juízes e oficiais da dita Câmara e povo dela que hajam o dito D. Luís por comendador da dita comenda, como era o dito D. Francisco, seu pai, e ao contador de minha Fazenda na contadoria da ilha de São Miguel que lhe dê a posse dele. E assim mando ao almoxarife ou recebedor do almoxarifado da dita ilha de Santa Maria, que ora é, e pelo tempo for, que lhe deixe haver e arrecadar por si e por quem lhe aprouver o rendimento da dita comenda, que, conforme a esta carta, lhe pertencer haver. E isto desde o dia do falecimento do dito seu pai em diante, na maneira sobredita. E cumpram e guardem e façam inteiramente cumprir e guardar esta minha carta que por firmeza lhe mandei dar, assinada e selada com o selo da dita Ordem, a qual se registará no livro dos registos da dita contadoria. E, para se ver e saber como tenho feito esta mercê ao dito D. Luís, ao assinar dela se rompa o dito alvará de lembrança acima tresladado. Dada em Lisboa aos vinte e sete de Junho. Gaspar de Magalhães a fez ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quinhentos e sessenta e sete. Sebastião da Costa a fez escrever e dar-lhe-á posse da dita comenda Pero Hanriquez, contador da Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, posto que acima diga que lha dê o contador de minha Fazenda da ilha, a qual posse dará por si ou por sua comissão cada vez que para isso for pedida. O qual está assinado pelo Cardeal Infante”.
Fez também el-Rei D. Sebastião mercê (como acima disse) a D. Luís Coutinho, filho de D. Francisco Coutinho, dos direitos da urzela da ilha de Santa Maria, por lhe pertencerem por ser tinta, e assim da pensão dos tabaliães da mesma ilha, por uma provisão feita por Simão Pimentel a seis dias de Julho de mil e quinhentos e sessenta e sete anos.
Tem também o comendador na ilha de Santa Maria, e o desta de São Miguel, a dízima das moendas, em comenda, por provisão de el-Rei D. Sebastião, feita por João Orelha, tabalião, a vinte e três do mês de Agosto de mil e quinhentos e sessenta e oito anos.
Tem el-Rei na ilha de Santa Maria, somente, um quarteiro de trigo de renda da terra da Abegoaria, e tem mais o dízimo das entradas de todas as coisas que vêm de fora do Regno.