Tornando a D. Francisco Coutinho, segundo comendador da ilha de Santa Maria, de que vou contando, sabei, Senhora, que foi homem pequeno de corpo, mas bem feito e gentilhomem, galante, gracioso e discreto em suas falas e muito de zombar, e dos melhores genetairos (sic) que houve em seu tempo, e, como bom cavaleiro que era, teve gentis cavalos.
Foi muito curioso da caça de açor e, assim, os tinha muito bons; como nos bons intrumentos se conhece o bom oficial em seu ofício, teve uma mula, que tudo o que fazia um bom ginete fazia ela, de correr e parar e jogar canas, pela qual lhe dava o Duque D. Jorge, mestre de Santiago, sem lha ele querer dar por isso, mil cruzados, quinhentos em dinheiro e os outros quinhentos em papéis. Era esta mula preta como amora, muito bem feita, não muito grande, e morreu de uma postema, que lhe nasceu antre as mãos daí a pouco depois que o mestre lhe comprava.
Era este D. Francisco muito aceito ao Infante D. Luís e foi com ele na tomada de Tunez , e, depois da morte do Infante, foi também muito amigo do senhor D. António, seu filho, de tal maneira que ia muitas vezes folgar com ele em uma quintã sua, que tinha junto de Peralonga, no termo de Sintra, que chamam Minalvela. Mas, depois, vieram a estar mal, sobre uma igreja que o comendador tinha na Beira, que lhe dera o Conde, seu tio, a qual comia anexa a esta comenda, e por ser a igreja da... do Senhor D. António , que houve por morte do Conde de Marialva, D. Francisco impetrou do Papa para a poder deixar ao filho segundo, por nome D. Pedro, e, por fazer isto sem dar conta ao Senhor D. António , ou porque ele se punha contra isso, vieram a estar ambos mal avindos.
Era este comendador voluntário, agastado, determinado e perigoso para quem lhe fizesse ou dissesse coisa fora de seu gosto, em tanta maneira que, indo um dia ao Paço, porque o porteiro logo o não quis deixar entrar, lhe deu uma bofetada, de que el-Rei houve menencoria , e mandou-lhe tirar a moradia, a qual dizem que depois lha mandou dar, mas ele a não quis.
Era muito opiniático e grandioso; nunca teve dever com rei, nem príncipe, nem privado e zombava de tudo, pela qual razão não valeu no Reino mais do que valia, nem teve cargos, como outros tiveram, sendo ele tanto para isso como todos, pelas partes que tinha. Mas, contudo, nunca pediu coisa a el-Rei, que muito levemente lha não concedesse; tanto que um dia, estando el-Rei comendo, vieram acaso a falar em um escravo seu, que estava preso por ladrão, e, por isso, o mandavam desorelhar, e querendo-lhe D. Francisco comprar as orelhas, saíram-lhe muito caras, e, falando nisso, como digo, acaso, respondeu que muito dinheiro era para tão ruim carne, o que caiu em graça a el-Rei, que mandou soltar o negro, sem nenhuma pena. Tinha destes ditos de presente muitos e mui discretos, e, onde ele estava, sempre havia ajuntamento de gente.
Também lhe fez el-Rei mercê da comenda para o filho mais velho, que ficasse comendador à hora de sua morte, que foi uma mercê larga que os Reis costumam fazer poucas vezes, sem nomear a pessoa a quem se há-de dar, porque, se acerta de morrer o nomeado, fica no peito do Rei querê-la tornar a dar a outrem. E esta foi tão larga, que, ainda que todos morreram e não ficara o mais moço, era sua a comenda.
Tratou-se D. Francisco Coutinho, em sua mocidade, muito custoso e galante e sempre teve grande casa de muitos escudeiros, e pajes e moços de esporas, e outros servidores necessários, e os que tinha, fora de escudeiros e pajes, em sua casa, eram filhos de homens nobres, porque se não queria servir nestes foros senão de semelhantes. E havia muitas casas de condes e outros senhores, que não eram de tanto estado como a sua, com ter tão pouca renda, que não chegava a um conto. Mas a mulher governava tudo por tal ordem, que lhe sobejava, com a casa ser bem provida e abastada de todas as coisas necessárias e ordenado de seus criados muito bem pago.
Era casa de muitos hóspedes, de parentes e outras pessoas, em que a mulher tinha gentil graça no gasalhado deles. E, se acontecia adoecer algum dos seus criados, de qualquer sorte que fosse, ela o curava por sua mão, e, se era moço pequeno, mandava-o levar para dentro, onde estavam suas donzelas, para ser curado melhor, e, se era homem, ia-o visitar à pousada todas as vezes necessárias, de maneira que não perecesse à míngua. Estas e outras coisas tinha de nobre senhora. Ela tinha também conta com todas as rendas e gastos de casa, de maneira que tudo corria por sua mão, e não era nada avara, mas muito larga no dar, e coisas grandes, e mui amiga de fazer bem, e caridosa com os pobres e necessitados; e o ter muitos filhos lhe não dava lugar a usar tanto de sua larga condição, mas tudo fazia de maneira que nela se não enxergava.
Faleceu o comendador D. Francisco Coutinho a dezoito dias de Outubro de mil e quinhentos e sessenta e cinco, de câmaras de sangue; e do dia que lhe deram a sete dias passou desta vida, sendo de idade de cinquenta e seis anos, estando em muito boa disposição, sem cabelo branco na cabeça, nem na barba; muito bom cristão com receber todos os sacramentos da Santa Madre Igreja.
E no dia e hora de seu falecimento se perdeu um navio na barra da Ribeira, carregado de trigo seu, que ia da comenda, que, com a sua morte, deu grande abalo à casa, porque se despediram algumas pessoas dela, de mais pouca obrigação.