O antigo lugar da Povoação Velha, assim chamado a respeito das outras povoações de toda a ilha que depois dela se fizeram, se a fortuna a favorecera, por sua antiguidade pudera pretender maior e melhor lugar antre todas elas; mas, os acontecimentos das coisas são assim, que às vezes o derradeiro é primeiro e o primeiro vem a ser o derradeiro; ainda que o não é esta aldeia em tudo, porque está situada e bem assentada em uma muito fresca fajã de até doze moios de terra, que dá trigo e cevada, pastel e todos os legumes, e deu já, no tempo dos açúcares, quando logo se começaram a fazer nesta ilha, grande canavial de canas dele; além de ser a comarca dela que deu as primícias de todos os frutos e foi a pedra de toque em que se tocaram os quilates do ouro e preço de toda a ilha, respondendo com grande fertilidade e muito mais do que o desejo do avaro lavrador cuidava, nem esperava, sendo todos os frutos os melhores desta ilha e das ilhas, como já atrás tenho relatado. Está cercada esta fajã e aldeia de altas rochas e ladeiras, todas cobertas de fresco arvoredo, vinhas e pomares de árvores de espinho e outras fruteiras de diversas pomagens, parecendo uma grande e formosa praça, armada ao redor toda de panos de verduras e diversas cores e de rica tapeçaria, não faltando ali a verde hera, abraçada com os antigos troncos de alto arvoredo, e pelos altos rochedos os medrosos coelhos por antre eles, nem os solitários e seguros passarinhos com suas cantilenas, com que fazem saudoso aquele deleitoso bosque, nem os pombos torquazes, quase soberbos e briosos com este nome, que alcançaram do nome Torques em latim, que em linguagem quer dizer colar, e eles são como azuis, que tiram a cinzentos e têm um colar branco pelo pescoço, antre as penas douradas, e por serem assim acalorados se chamam torquazes, por terem o torques ou colar ao pescoço; pelo que, com seu brio, estes azuis são piores de tomar e têm mais resguardo em si que os pombos pretos que, como tolos, com laços que à mão tente Ihe deitam no pescoço, se deixam tomar facilmente. E para selo da frescura ser mais fresca, pelas ladeiras e rochas caem quatro grandes ribeiras e nove frescas fontes, algumas, com que podem moer azenhas, que correm todo o ano e antes de chegar ao mar se ajuntam todas, assim ribeiras, como fontes, em uma só ribeira, em que está um moinho, chamada a Ribeira Maior, a respeito de outra que corre de outra banda do lugar, ao ponente, antre as quais está assentado e quase nadando como o peixe na água. Da banda de leste, da outra parte da grande ribeira, que sai ao mar, está uma ermida de Santa Bárbara, que foi a primeira igreja que se fez no mesmo lugar da Povoação, onde se celebrou a primeira missa que na ilha se disse: e às vezes enche tanto esta ribeira, com as muitas águas que nela se ajuntam, que se faz tão grande como o rio Mondego, que passa por Coimbra, ou como outro de Portugal ainda que maior seja, e leva do mato muita madeira e penedia com que vai fazendo tão grande arruído e estrondo que faz alevantar todos os moradores de noite, com temor dela; pela qual entram do mar muitas tainhas, além dos infinitos eirós que em si cria, e na boca dela entram sargos e outras sortes de pescados, que, com tresmalhos e tarrafas, tomam ali nela os vizinhos daquele povo. E, segundo conjectura e parecer dos antigos, e por sinais evidentes que se acham debaixo da terra, como é cascalho e areia, foi esta fajã no tempo antigo mar, como a dos Mosteiros e outras desta ilha, e depois se fez fajã de terra, com a que correu pelas ribeiras que nela caem e a ela vão ter, com as enchentes das grandes chuvas do inverno. E, no tempo de um João Loução, fez ele uma caravela junto de sua casa, por chegar ali o mar, que agora está afastado dela dois tiros de besta. Há nestas ribeiras e fontes muitas rabaças e agriões e aipo, e todas as fontes criam eirós, como as mesmas ribeiras. Os figos brejaçotes e toda a mais fruta. assim de espinho como de outras fruteiras, é a melhor de toda a ilha, como também os vinhos são os melhores de quantos ela produz. É finalmente toda a comarca deste lugar terra que logo no descobrimento desta ilha se enjeitou como estéril e pouco proveitosa, por ser muito forte; e agora, depois que a gente cresceu, a tornou a experimentar como terra nova, semeando trigo e prantando muitas vinhas em terra, como em Portugal, porque não tem biscoutos, com propósito de as terem por granjearia. Os herdeiros de João de Arruda da Costa têm nesta freguesia muita ou quase toda sua fazenda, procedida de seus avós, e fazem agora muita destas propriedades, pela razão já dita. O primeiro deles, que agora novamente fez ali casal e pumar, é Rui Tavares, filho de Pero da Costa, capitão- mor das ordenanças em Vila-Franca do Campo, de que este lugar e o Faial são sufragâneos. É terra de boas e grandes criações e muitos matos até às Furnas, uma légua dela pela terra dentro para o norte, que dá grossa granjearia de madeira aos outros moradores dela, e para todos eles dá trigo em abastança e dará daqui adiante mais, porque já se dão a ele.
Este foi o primeiro porto a que aportaram e em que desembarcaram os primeiros e antigos descobridores desta ilha, e aqui se disse a primeira missa em uma ermida de Santa Bárbara, que mandou fazer um Mateus Dias, homem honrado. Aqui fez o primeiro assento aquele antigo Gonçalo Vaz, o Grande, em tudo grande, na progénia de grandes e nobres descendentes e nas obras de virtude, no exemplo e na fazenda, que não somente neste lugar, mas em outros da ilha, deixou a seus herdeiros.
A terra deste lugar da Povoação tem três camadas sobre a terra boa, que era dantes. A primeira sobre a mesma terra boa é de cinza dois palmos em alto; a segunda, em cima desta, é pedra pomes que tem perto de três palmos de alto; e a terceira camada, que está de riba, é cinza da altura de dois palmos; e tudo isto desta maneira se conjectura que caiu sobre a superfície da terra, quando arrebentaram as Furnas, dali duas léguas, ou o pico delas ou outros ali chegados. Esta terra, pela folhagem das ervas ou folhada do mato que pelo tempo cresceu, com que estava estercada, depois que a roçavam, dava muito pão ao princípio, com aquele esterco, e por isso está ali uma lomba, chamada a Lomba do Pão, por o dar naquele tempo muito; e depois, por se gastar o esterco, ficou menos fértil e não deu pão muitos anos, mas já agora a começam a cultivar e dá algum fruto.
Aqui está o lugar onde estava a faia, ou ginja, ou zimbro, ou qualquer outra árvore que fosse, em que se fez a primeira justiça nesta ilha, quer fosse mandada fazer por Jorge Velho, quer por Gonçalo Vaz, o Grande, ou pelo Capitão Frei Gonçalo Velho, em um alto de uma baixa rocha, junto da ribeira, que fica do lugar para a parte do ponente, em que enforcaram o homem que veio da ilha de Santa Maria e primeiro pôs os pés nesta terra, para tão prestes Ihos alevantarem dela.
Antre as duas ribeiras, tem uma igreja que mandou fazer João de Arruda e seus filhos, da advocação de Nossa Senhora dos Anjos, cuja festa principal se celebra aos quinze dias do mês de Agosto; mas, por andarem neste tempo ocupados os fregueses em recolher suas searas e em outros trabalhos, celebram agora esta por dia da Natividade de Nossa Senhora, a oito de Setembro. É freguesia de cento e três fogos e duzentas e trinta e oito almas de confissão, das quais são de sacramento cento e quarenta e oito. O primeiro vigairo foi Baltasar Pires, por alcunha o Malícia; o segundo, Fernando Rodrigues; o terceiro, Baltasar de Sousa; o quarto, Francisco de Aguiar que agora serve.
Da Povoação para a parte de loeste, corre um pouco espaço de costa de pedra e calhau roliço, e da parte da terra, uma alta rocha até uma pequena ponta, da qual até à outra, que se chama do Garajau, por ali se ver algum, que está além de uma ribeira mediana e fresca, chamada dos Agriões, pelos criar muitos, acompanhada, de uma parte e outra, de graciosos arvoredos, que será meia légua da Povoação até à dita Ponta do Garajau, se faz uma enseada, dentro da qual, defronte da dita ribeira dos Agriões, está uma baixa, rasa, do tamanho de um alqueire de terra, que se chama a ilha de Mateus Dias, porque saindo ele a folgar, pescar e mariscar nela, mandou o batel a Vila-Franca, para da tornada o tornar a tomar, e alevantou-se o tempo de tal maneira que, tornando o batel para o recolher não pôde chegar à baixa senão com muito trabalho e com grande risco de perderem todos as vidas, estando já a baixa quase coberta de água. Da ribeira pequena, que disse, corre do mar uma ponta de pedra alta, onde ela é alcantilada, que se chama, como tenho dito, Ponta do Garajau, por aparecer ali algum muitas vezes, ou porque pegada com ela, onde se chama a Escada na Rocha, está uma pedra, feita pela natureza, por onde descem abaixo, ao longo do mar, em que estava um buraco que passava a terra da outra banda, por onde se via o ar branco e alvo que de longe parecia garajau, e agora está já atupido; com a qual faz uma grande enseada, abrigada dos ventos ponentes. Passada a Ponta do Garajau, dela até à Ponta de Simão Figueira antre estas duas pontas, está uma enseada de areia, tanto como um tiro de arcabuz, e logo adiante da Ponta de Simão Figueira, em uma baía de compridão de um tiro de berço, que se faz antre seu penedo e antre outra ponta chamada o Rosto Branco, por ser a mesma ponta de terra branca, onde estão fajãs que terão cinco moios de terra, que têm vinhas e dão pão e pastel, está a Ribeira Quente, de muito boa e copiosa água, por causa que se ajuntam nela as três ribeiras das Furnas, sc. a Quente e a outra que corre pela fábrica da pedra hume, que se chama a Ribeira que Ferve, e a outra chamada Ribeira Fria e alguns outros regatos pequenos, deles, das mesmas Furnas, e outros doutras partes; na qual ribeira entra muito pescado, onde com não pequeno gosto e grande passatempo, fazem os principais da terra e alguns sacerdotes e religiosos e alguns nobres estrangeiros, no Verão, grandes e ricas pescarias.
Da parte do Rosto Branco, a dois tiros de espingarda, antes de chegar ao direito, onde demanda a ribeira de Diogo Preto, está o Forninho, chamado assim por uma figura que a natureza fez ali naquelas pedras, da feição de um forno, onde está um recife, ainda que pequeno, todavia muito proveitoso aos barcos de pescar e a outros que navegam nesta costa, onde se acolhem, tomando-os nesta paragem algumas tormentas; e direito do Forninho para o mar, tanto como um tiro de pedra, está uma baixa grande, que terá vinte varas de medir pano, de comprido, e três de largo, antre a qual e o Forninho, saem no mesmo mar três olhos de água doce, como três canos, com uns borbulhões e olheiros dela na superfície da água, como em triângulo, tão afastados um do doutro como dez palmos, pouco mais ou menos. Um deles que está mais ao pego, é tão grosso como a coxa de um homem; os dois são iguais, tão grossos como a haste de uma lança; todos três tão apartados da terra como um tiro de pedra, saindo com tanta fúria, que dizem alguns que algumas vezes sobre a água do mar a tomam para beber naquela fervura. Mas, o mais certo e comum é que se toma ali água doce dentro na água salgada do mar, onde ela toda está misturada no fundo dele, mas não na superfície, com uma invenção, de que dizem ser inventor um Fernão Roiz, vigairo que foi da Povoação Velha e beneficiado depois em Vila-Franca, sendo muito velho, metendo um pichel com a boca cerrada, atado pela asa com um atilho e com outro pela tapadoira cerrada, levando um peso que o leve ao fundo e sendo em baixo, Ihe tiram pelo atilho da tapadoira e, aberto o pichel, recebe aquela água doce, e enchendo-se dela e tornando a afrouxar o cordel e deixar cair a tapadoira, ficando ele cerrado, o tiram de baixo, do fundo, pelo outro cordel da asa, e assim vem cheio daquela água doce, como se fora tomada em uma fonte cá da terra, porque trazem tanta força aqueles olhos de água, que afastam de si água salgada do mar e vem doce quase até à superfície dele. Uns suspeitam que vem esta água destes três olhos, da lagoa das Furnas, que está dali uma légua pela terra dentro, para o norte; mas, a mais certa conjectura é nascerem da ribeira de Diogo Preto, que dali quase uma légua, naquele mesmo direito, se consome dentro na terra, na lagoa Clara onde entra a ribeira sem crescer a alagoa e se consume ali em areia branca e parece sem falta vai por debaixo da terra aquele espaço, perto de uma légua, e entrando no mar torna a sair com os três olhos ditos, antre a baixa e o Forninho, que já disse. E não é muito ser assim, pois da mesma maneira se sume na terra, na ilha de Santa Maria, não longe do Castelete, para a parte do sul, uma fonte grande e vai sair, por debaixo da rocha e de umas fajãs, ao lível do mar, que não aparece senão com a maré vazia; e outras coisas maiores, desta sorte, há no mundo; para o que se há-de notar que vindo aquele espaço por onde a água vai ou for acanalada, ou como por canal, ou reçumada, se chama rio sobterranho do mar, como vai o rio Alfeo, por debaixo do mar Jónio, do boqueirão em que se sume e funde na Moreia, que é em Grécia, até que arrebenta a cabo de mais de cem léguas que há corrido por debaixo do mar em a Fonte Arethusa, perto da cidade de Çaragoça de Sicília, o que mostra a experiência, pois tudo o que se deita onde este rio se funde sai na Fonte Arethusa em Sicília; como se conta que, quanto deitam em Grécia, junto do monte Olimpo no rio Alfeo, tudo vai por debaixo do mar e sai em Sicília, nesta fonte chamada Arethusa, e por isso o grande poeta Virgílio, na décima e última égloga que fez em nome do pastor Menalcas, que começa: — Extremum hunc Arethusa mihi concede laborem — falando com a principal musa das sicilianas, a que atribui o nome desta Fonte Arethusa, a qual os antigos fingiram que, fugindo de AIfeo, mancebo que a seguia, muito suada de correr, se tornou em fonte, porque, como tenho dito, o rio Alfeo que nasce no Peloponeso, em Grécia, sumindo-se na terra, vai sair na cidade de Çaragoça, da ilha de Sicília e faz esta fonte chamada Arethusa, de que diz Ovídio no livro de suas Transformações, no lugar onde diz: — Arethusa in fontem — que Arethusa era uma ninfa que do muito suor que suou, fugindo de Alfeo, caçador que a perseguia na montanha, até Ihe fugir, além do mar, à Sicília, lá se tornou com seu suor em fonte e o Alfeo, em o Peloponeso, em o rio Alfeo: de que faz mui doces versos Virgílio, falando com a musa, que chama Arethusa, como a mesma fonte, pedindo-lhe o poeta que o favoreça naquele derradeiro trabalho, que queria tomar, de compor aquela final égloga, em louvor do poeta Galo, grande seu amigo, Ihe diz, antre outros, estes dois versos: Sic tibi cum fluctus subter labore sicanos Doris amara suam non intermisceat undam.
como se dissera: — Musa, chamada Arethusa, como a fonte de Sicília, favorecei-me, neste derradeiro trabalho; assim Doris que é a água) não misture a ti sua água salgada, com a água do rio Alfeo, de que tu nasces, quando suas correntes passam por baixo das ondas sicilianas, ou fluctos sicanos.
E desta mesma maneira se pode crer que vão muitos rios debaixo do mar pelos caminhos sobterranhos que têm feitos, como também o rio de Manicongo, um dos grandes que no mundo sabe de água doce, que é de largo duas léguas e de alto, em toda a boca e muito dentro, sessenta braças, dizem que entra pelo sertão trezentas léguas e que traz tanta força que pelo mar faz corrente ao longo da costa cinquenta léguas; o qual rio, terra de Congo, é Portugal mil e setecentas léguas. Como também em França, o rio Ródano vai e leva sua corrente por meio do lago Remano sem misturar suas águas com as do lago, e sai tão grande como entrou, ainda que o lago Remano seja de dezassete léguas em comprido; e o rio Guadiana que tomou o nome de Guadal, nome mourisco que significa água, e de Suano, sétimo Rei dos antigos de Espanha, é um rio notável, cujo primeiro nascimento é em umas alagoas em terra de Alhambra, perto de quatro léguas da vila de Montiel, e depois de correr obra de oito léguas pelas entranhas da terra, torna a nascer, junto da vila de Daimiel, em outra alagoa, a que chamam os Olhos de Guadiana, perdendo o nome primeiro de Rodeira, e é rio que folga de nascer muitas vezes e sem estes o faz outras vezes, sumindo-se em outras partes debaixo da terra e tornando a nascer; como no mapa de Espanha se vê, que em Castela, não muito longe da povoação de Puebla de Alcácer, se sume na terra e indo por debaixo dela, dali a dez léguas, perto de Vila Nova torna a sair e vai por Mérida, pelo que se soe a perguntar: — qual é a ponte que no estio sustenta sobre si e cabem nela quatrocentas mil cabeças de gado? e responde-se: — que é este espaço de dez léguas de terra, por debaixo do qual vai o rio Guadiana, que com sua humidade tem ali erva fresca na força do estio, quando falta em outras partes, e pastam nestas dez léguas as quatrocentas mil cabeças de gado, ou quarenta mil, como outros dizem. Em Itália, o rio Pado, que também por outro nome se chama Eridano, onde caiu Phaeton, filho do Sol, de que fala Lucano, no segundo Livro, sai com sete bocas ao mar, a maior das quais chamam o Pó, que quer dizer Pado; diz dele Virgílio: — Suumque in mare alveum servat, porque corre longe pelo mar, até se encontrar com o rio Istro da outra parte, e os que por ali passam tomam dele água doce: como destes olhos de água doce da ribeira de Diogo Preto, que vão sair dentro no mar, matam sua sede os barqueiros e passageiros que com mar bonança por aquele lugar fazem sua viagem. O rio Eufrates se sume também pelas areias e depois torna a sair e dizem que é o rio Nilo, como conta Virgílio, e Cícero na quinta Verrina. E como desta maneira vão muitos rios por debaixo do mar, pelos caminhos sobterranhos que têm feitos, assim parece claro a quem vê a ribeira de Diogo Preto sumir-se na lagoa Clara, que em baixo tem areia branca e que dali vai, por debaixo da terra e do mar, sair no mesmo mar, no direito dela, com estes olhos de água que dela nele nascem, como tenho contado.
Direito do Forno ou Forninho saem três fontes juntas da rocha, duas de água doce e a do meio como vinagre. Do Forno à Ponta da Lobeira, para o mar, haverá um tiro de arcabuz; a qual Lobeira é uma baixa metida no mar tanto espaço que passam navios por antre ela e a terra, e há nela muitas cracas e mariscos. Chama-se a Lobeira por se ver nela um lobo marinho. Da Ponta da Lobeira até à outra ponta adiante, chamada Tufo, por ser pedra mole, haverá um tiro de escopeta e antre elas fica a ribeira do Leitão, que cobrou este nome, por um bravo, que ali se tomou e comeu. Logo adiante, também um tiro de arcabuz, sai ao mar uma ribeira que se chama da Amora, por haver muitas amoras ao longo dela, defronte da qual, metido no mar, está um cais de pedra, como espigão feito pela natureza, agudo para o mesmo mar, de vinte varas de comprido e uma de largo, antre o qual e a terra haverá um tiro de pedra. Tudo isto está na enseada que faz antre a Ponta da Lobeira e a Ponta da Garça, que está para o ponente, e será de uma à outra uma grande légua, e da Povoação à Lobeira, outra. Grande parte da costa, atrás dita, da Povoação, e no mesmo lugar pela ribeira acima, é de pedra preta, que serve de cantaria; da banda da terra, do Forninho, já dito, por diante para loeste, é tudo rocha alta, e em algumas partes há também, ao longo do mar, algumas fajãs, que até este tempo presente não haviam sido cultivadas, mas cobertas de mui gracioso arvoredo, e agora semeiam nelas muito pastel e trigo e hortas de muitos melões e abóboras e outros legumes. Vai desta maneira correndo esta costa bem assombrada, acompanhada de frescas fontes e ribeiras e alto arvoredo, mais graciosa para ver do mar que para caminhar por terra, por ser em si por cima, pela mesma terra e ao longo do mar, em grande maneira fragosa; e é tudo serra tão áspera para caminhar, como deleitosa e graciosa para ver e, como dizia um negro, bom para olho, mas mau para pé. E vai assim deste modo até onde chamam as Grotas Fundas, por elas o serem, que estão antes de chegar à Ponta da Garça, tanto como a terça parte de meia légua. Daí começam as terras que semeiam, e ao longo do mar todavia vão rochas mui altas, ainda que não tanto como as atrás ditas, nem tão frescas, em que também há algumas fontes; e os caminhos pela terra são muito fragosos, por antre espessos e sombrios bosques e por meio de altas, fundas e frescas ribeiras. Está logo uma ponta, distante da Povoação Velha duas léguas, a que chamaram os antigos descobridores Ponta da Garça, por Ihe parecer de longe garça ou vulto o ar que Ihe aparecia, da outra parte, branco como ela, por um buraco ou vão que a mesma ponta tem na rocha. Da qual para o mar um tiro de pedra está uma baixa, que com maré vazia se descobre uma cabeça de pedra, da feição de um escopro, pelo parecer que tem dele, ou porventura com o vocábulo corrupto, que se chama em latim scopulus.
Nesta Ponta da Garça está um lugar do mesmo nome, que tornou dela, freguesia de Nossa Senhora da Piedade, que é a festa da sua Apresentação, que se celebra a vinte e um de Novembro, a qual igreja fez Lopo Anes de Araújo, na fazenda que agora é de seus herdeiros; tem oitenta e nove fogos e almas de confissão trezentas e trinta e duas, das quais são de sacramento duzentas e quarenta e oito. O primeiro vigairo foi João Afonso Salgado; o segundo, Afonso Anes; o terceiro, Fernão Rodrigues; o quarto Manuel Roiz.
É também, como o Faial e Povoação, termo de Vila-Franca, e todos têm juízes pedâneos, que julgam até um tostão e às vezes até trezentos reis, e o escrivão e alcaide senão a Ponta da Garça. Tem granjearia e lavoura de trigo, do melhor da ilha, e pastel, por ter muitas e grossas terras, em que os moradores estão espalhados e não muito juntos. É lugar situado à beira do mar, junto de altas rochas que tem por muro da parte do sul; pouco viçoso de frutas e menos regado de águas; onde há nobres fregueses e tem sua morada, principalmente no Verão, João de Arruda, filho de Pero da Costa, casado com D. Guiomar, filha de Hector Gonçalves Minhoto, neta do Capitão João Soares, segundo do nome, da ilha de Santa Maria.
Antes de chegar à Ponta da Garça, está o Cavouco, que é uma ressaca pequena e encolhimento da terra para dentro, onde há uma pequena ribeira que corre somente de Inverno, em tempo de enchentes e cai de salto. Está nesta fajã, chamada o Cavouco uma vinha e pomar.
Daqui, passando pela Ponta da Garça, já dita, até à ribeira da Abelheira, para o ponente, que será espaço de pouco mais de quarto de légua, caem da rocha, por antre ervas verdes, rabaças e agriões, e entre canas e outras ervas, muitas e frescas fontes, umas que deitam grossa água, como a coxa de um homem, outras menores e outras mais pequenas, onde, dizem alguns, que todas elas se chamam as Onze Águas, por serem onze fontes; mas a certeza disso é que são quinze ou dezasseis, algumas espalhadas e longe umas das outras, ainda que em um lugar onde estão seis ou sete juntas, no meio de uma alta rocha, passada a Ponta da Garça, pouco espaço além dela, como um tiro de falcão, dizem alguns que ali é propriamente as Onze Águas e parece que em algum tempo foram onze e por isso Ihe puseram, àquele lugar, onde as havia juntas na rocha, este nome; onde Jordão Jácome Raposo, com outras pessoas, tinham determinado fazer um engenho de açúcar, para o qual tinha já começado o caminho pela rocha e muita pedra de cal junta, por terem na mesma comarca prantadas muitas canas de açúquere o mesmo Jordão Jácome e Marcos Dias e Jorge Afonso, as quais se perderam juntamente com as da Vila-Franca, com um furacão que sobreveio, como adiante direi. E no mesmo lugar já esteve um moinho, em baixo, ao lível do mar, e ajuntaram estas águas todas com que ele moeu, no tempo do segundo terremoto desta ilha, por se perderem os moinhos da Praia, com as grandes enchentes que então foram, as quais não somente levaram os moinhos, mas também uma ponte que na ribeira deles estava, muito forte e bem feita, e outra que estava como um quarto de légua de Vila-Franca, na Ribeira das Tainhas, a qual havia pouco tempo que era acabada. Ou aquelas fontes se ajuntaram, ou algumas secaram, porque agora não são mais que seis juntas , onde comummente chamam Onze Águas: ainda que algumas pessoas dizem que toda esta comarca e espaço do Cavouco, até à ribeira da Abelheira, já dita, tem este nome de Onze Águas, dizendo que há nela estas onze fontes, sendo elas ao presente tempo quinze ou dezasseis.
Pode ser que de princípio seriam onze somente e por isso Ihe chamariam as Onze Águas, e depois nasceram e arrebentaram e brotaram as outras, e fizeram dezasseis por todas, ficando-lhe o nome antigo de Onze. Dizem também alguns que algumas destas fontes não correm no Inverno e secam de todo, e quando vem o Verão tornam a arrebentar e correr como dantes. Sendo assim, a razão disso será por se taparem no Inverno os poros da terra e assim ficarem tão cerrados e tapados os canos destas fontes, sem então correrem; mas, abrem-se e corre por eles sua água, vindo o Verão com sua quentura, com que abre os poros da terra, como acontece em outras partes, em muitas outras fontes, e como se vê no corpo humano que não sua no Inverno, por se Ihe taparem então os poros do coiro e da carne com o frio dele, mas vindo a quentura do Verão, que os abre, sua logo e estila de si água por suores, como fonte ou como algumas fontes; ou também porque nem todas as fontes nascem do mar, do qual nascem aquelas que acham meatos, cavernas e caminhos pela terra e vêm sair ou em rochas ou em vales, ora em outeiros, ora em altos montes, porque o mar é mais alto que toda a terra, pois seu próprio e natural lugar é estar sobre o globo dela. Mas, outras fontes e águas se geram e criam em algumas cavernas e lugares da terra, do ar que nelas está encerrado e se vai de novo encerrando, que lá se congela e converte em água, ainda que em menos quantidade, porque assim como de um punhado de água se converte e torna em dez de ar, assim de dez de ar se converte em um de água; e esta água feita de ar congelado nas cavernas da terra e em algumas partes dela, reçume pelos poros dela e corre em fontes, que às vezes são perenes e perpétuas, porque acabada de se congelar uma quantidade de ar, entra pelos poros da terra outra quantidade que se torna a congelar, fazendo-se água, e após aquela quantidade, outra e outra; assim como vai o ar cevando a concavidade onde encerrado se vai congelando e tornando água continuamente, com que continua a corrente da fonte feita dele e não do mar. Pelo que é perigoso cavar muito estas fontes que nascem e se geram de ar congelado, porque se Ihe abre com o muito cavar grande boca, fica o ar contínuo com o de fora e não se congela, por não estar encerrado, e não se congelando, e tornando água, seca a fonte que cavaram; e pode ser que algumas destas fontes das Onze Águas seriam geradas desta maneira sobredita, de ar convertido em água e quebraria algum pedaço da rocha, no lugar por onde elas dantes saíam e fazendo grande boca ficou o ar continuo com o de fora, sem se congelar e tornar água, por não estar encerrado, e desta maneira secarem-se algumas daquelas onze fontes juntas com a rocha, ali quebrada, e não ficarem onze fontes, como de antes eram, senão seis ou sete que agora são, ainda que sempre Ihe ficasse aquele lugar este nome de Onze Águas. Antes das Onze Águas, está a Grota Funda, pelo ela ser, onde junto do mar se criam muitas pombas no topo dela, como em um ilhéu; e das Onze Águas para Vila-Franca, que é uma légua, vão algumas fontes e ribeiras que não correm senão de Inverno, como a Ribeira Grande, e além a ribeira da Abelheira, por se achar ali alguma, e adiante a Ribeira das Tainhas, pelas haver nela, e depois a Ribeira Seca, a qual, ainda que em respeito doutras menores tenha esse nome, corre de Inverno e Verão, e está antes de chegar à Vila-Franca tanto como a quarta parte de meia légua, onde há um rico engenho de açúquere que foi de Lopo Anes de Araújo, depois de Gabriel Coelho e dos nobres irmãos e ricos Crastos, e por falecimento de um, o possuiu o outro, chamado Manuel de Crasto, mais rico de saber e prudência que de fazenda, e agora o possui sua mãe e Diogo Leite, seu genro. Está Vila-Franca, da Ponta da Garça, uma légua e da Povoação Velha três léguas.