Por mar e por terra, uma légua e meia da vila de Água do Pau e da Ponta da Galé, quase norte e sul com a mesma ponta, está a vila da Alagoa, chamada assim por uma que teve de água nadível, defronte da porta da igreja principal acima de um recife e porto onde podiam entrar batéis; na qual antigamente se tomou já muito pescado, por entrar às vezes o mar nela, e bebia o gado e nadavam por passatempo algumas pessoas, e onde já se afogou um moço, soltando o rabo de um boi a que ia pegado, nadando. Agora, com terra e polme está atupida e é terra que dá pastel e outras novidades e rende para o concelho; onde António Lopes de Faria teve ali perto dela um fresco pomar, acompanhado e ornado com muitas faias. Foi este lugar feito vila por el-Rei D. João, terceiro do nome, na era de mil e quinhentos e vinte e dois, a onze dias do mês de Abril, no qual tempo estava o dito Rei em Lisboa, e Ihe deu de termo, da banda do oriente, assim como parte com Água do Pau e da banda do norte, da maneira que parte o seu limite com o termo da vila da Ribeira Grande, e da parte do ponente, partindo pelos biscoutos, meia légua e não mais. Os primeiros juízes foram Estêvão Travassos e João Gonçalves; dos mais oficiais da Câmara, do mesmo ano, não pude saber o nome, mas logo o ano seguinte de mil e quinhentos e vinte e três saíram por juízes João Gonçalves e Fernão Vieira, e por vereadores, João Roiz, genro de Álvaro Lopes, e João Rodrigues, de Água , e por procurador do concelho, Pero Gonçalves. Tem esta vila uma bem assombrada igreja Matriz, de naves, da advocação da Santa Cruz, cuia festa se celebra duas vezes no ano, uma dia da Invenção, outra, da Exaltação da mesma Cruz, quando as celebra a Igreja, em seus tempos. Há dentro na vila três ermidas: uma de S. Sebastião, outra de Nossa Senhora do Rosairo e outra do Sprito Santo; e acima da vila, um quarto de légua, a célebre ermida de Nossa Senhora dos Remédios, ao pé do monte que chamam Vulcão, de muita romage de toda a ilha, que se vê na terra de muitas partes e do mar também, a quem pedem na ilha, e de quem também recebem algumas vezes os mareantes seu remédio. Tem esta freguesia de Santa Cruz duzentos e oitenta e um fogos, e almas de confissão mil e seiscentas e cinco, das quais são de comunhão setecentas e oitenta. O primeiro vigairo foi um João de Évora, clérigo da Ordem de S. Pedro; o segundo, Sebastião Fernandes que teve a vigairaria muitos anos; o terceiro, Diogo Ferreira, irmão de Gaspar Ferreira; o quarto, Baltasar Fernandes; o quinto, Pedro Anes Mago, que agora está nela. O primeiro beneficiado foi Luiseañes; o segundo, Simão Gato; o terceiro, Gabriel Lourenço; o quarto, Amador Travassos; o quinto, Pero Dias; o sexto, Amador Martins; o sétimo, João Lourenço, que também era tesoureiro; o oitavo, Gaspar Martins; o nono, João Marinho; o décimo, Jácome Gonçalves; o undécimo, Manuel Roiz; o duodécimo, Sebastião Gonçalves. Tem agora quatro beneficiados. O primeiro cura foi Crisóstomo de Oliveira; o segundo, Manuel Rebelo; o terceiro, Hierónimo Gonçalves de Valasco, que agora serve.
Houve nesta vila duas capitanias das ordenanças: de uma bandeira foi o primeiro capitão, Cristóvão Soares, e o primeiro seu alferes foi Pero Velho Travassos, o segundo, António de Oliveira; o terceiro, Afonso de Oliveira; o primeiro sargento foi João Cabral; o segundo, António Pereira. O segundo capitão foi António Lopes de Faria; seu alferes foi seu sobrinho António de Faria; e sargento Fernão Gomes. Haveria então mais de trezentos homens de peleja. Agora há duas bandeiras: de uma é capitão Francisco Lopes Moniz; alferes, Jorge Correia de Sousa; e sargento, Leão Soares; o outro capitão é António de Faria; seu alferes, Paulo Soares; e sargento, Manuel Pereira. Tem cada uma cento e sessenta homens, quase todos arcabuzeiros.
Do porto da Alagoa por espaço de um tiro de escopeta para o ocidente, corre a vila até o porto que tem, de boa serventia, chamado Porto dos Carneiros, porque depois dos antigos povoadores estarem na Povoação Velha dez meses, não Ihe contentando aquele sítio de terras, se passaram para este porto dos Carneiros, onde fizeram sua habitação, até à tornada do navio que os trouxera, que tornou dali a dez meses do Regno, para onde tornara depois que na Povoação Velha os deitou em terra; e, quando tornou a esta ilha, depois dos ditos dez meses, não os achando na Povoação, discorrendo pela costa para o ocidente, os foi achar neste porto dos Carneiros, que se chamou assim por acharem ali tantos carneiros que, para fazer matança neles e tomar alguns para comerem, faziam dois bardos de paus e de madeira, de uma banda e da outra, por antre os quais os vinham recolhendo e ajuntando, até que do monte e manada tomavam os que queriam. Mas, a certeza da razão desse nome é que, quando o Infante D. Henrique descobriu estas ilhas, com licença de el-Rei D. Afonso, quinto do nome, mandou deitar gado nelas na era de mil e quatrocentos e quarenta e nove por Frei Gonçalo Velho, comendador de Almourol, e começando ele a deixar algum na Povoação e outras partes desta costa do sul, vindo a este porto, deixou nele alguns carneiros, pelo que Ihe ficou este nome de Porto dos Carneiros, que então lançaram nele e multiplicaram tanto em poucos anos com o bom pasto que por ali tinham, sem se trasmontarem mais longe para outras partes, que quando tornaram dali a pouco tempo os acharam quase juntos, em manadas, e então os tomavam da sobredita maneira.
É, este dos Carneiros, bom porto, principalmente de Verão, de que se serve a vila para suas pescarias e necessidades e carregação, e nele se carrega todo o pão que vai da banda do norte, como da vila da Ribeira Grande e seu termo, com obrigação que têm ali de guardar, sem contradição, os despachos que pelos oficiais da Câmara dela vão assinados, porque assim o tem a vila da Ribeira Grande por sentença, em um litígio que sobre isso tiveram.
Tem por granjearia esta vila trigo e pastel e vinhos, que são muitos e, depois dos da Povoação Velha, comummente, os melhores de toda a ilha, de que se recolhem, uns anos por outros, mais de seiscentas pipas, em cada um ano. Digo comummente, porque em algumas partes, e principalmente nas vinhas do termo da cidade, os fazem algumas pessoas curiosas, de vantagem. Havia nesta vila, antigamente, muitos homens nobres, ricos e poderosos; agora são poucos. Aqui morou, como pai de toda a vila, o nobre António Lopes de Faria, freire do hábito de Santiago, memposteiro-mor que foi dos cativos em toda a ilha, que tinha em muitas partes dela muitas rendas e propriedades, como currais de gado vacum e de toda outra sorte, e granjeava muito pão e pastel, de sua lavoura, e outras coisas: pelo que valia sua fazenda mais de sessenta mil cruzados, com que ele e sua nobre e virtuosa e mui caritativa mulher valiam aos moradores e pobres da vila e doutras partes, fazendo muitos benefícios e largas esmolas, a seus tempos devidos. Moram também ali ao presente os nobres Pedro de Faria e António de Faria, irmãos grandiosos e poderosos; e o virtuoso Francisco Lopes Moniz, que terá cinquenta moios de renda, cada ano, de seu próprio património, com o qual e com granjearia de lavoura de trigo e pastel se governa; além doutras nobres pessoas que não são tão ricas. Tem a vila uma fonte de água que custou muito a trazê-la onde está abaixo dos sumptuosos paços, ainda que já velhos, que o Capitão Rui Gonçalves, segundo do nome, ali edificou depois do dilúvio de Vila-Franca, com grandes e fortíssimos esteios dentro das paredes, provendo-se com isso para os terremotos futuros; antes da fábrica dos quais, fez prantar um riquíssimo pomar de diversas árvores de esquisitas pomages, que mandou trazer de Portugal e da ilha da Madeira e de outras partes, acima da vila, para o norte, menos de um quarto de légua, da outra banda do pico que chamam de Lamego, por haver sido porventura de algum homem desta terra assim chamado, em um deleitoso vale, ornado com uma pequena fonte, onde chamam o Cavouco, por ali, nos biscoutos dele, cavoucarem e tirarem pedra os cavouqueiros para seus muros e casas. Não faltavam ali as cerejas e ginjas, nem as peras e peros, maçãs, romãs, nozes e castanhas, nem a fruta de espinho de toda sorte, com que era aquela riquíssima quinta celebrada em toda a ilha, que com sua fruta provia. Mas, parece que acabou tudo com seu dono, como acabaram nesta terra muitos pomares com seus primeiros prantadores, que deles se presavam, presando- se depois seus descendentes de dissipadores, por Ihe faltar a diligência e curiosidade de seus avós e pais curiosos. Logo, saindo do Porto dos Carneiros, está uma ponta pequena de pedra de biscouto, que se chama o Punhete, porque pegado, além dela, tem um porto para a banda de loeste que, por ser pequeno em comparação do porto grande dos Carneiros, como manga, se chama Punhete, em que muitas mulheres antigamente lavavam a roupa, a cuja enseada se acolhem os batéis com tormentas; e também por ser crespo, pelo biscoutal, ou como outros dizem, por ser pequeno e estar no cabo do outro grande dos Carneiros como em um braço, se chamou Punhete, como manga de camisa do mesmo braço.
Do Punhete a dois tiros de besta, está uma ponta que entra pouco no mar, chamada a Ponta Longa, e dela a outro tanto espaço está o calhau onde entesta a terra de Cristóvão Soares; no qual lugar desembarcaram os franceses em dez barcos, a gente de um dos quais se perdeu, tomando água pela popa, com o peso das armas, sem nenhum escapar, e sete deles enxoraram em terra, onde ficaram e os desfez depois a gente da ilha, aproveitando-se de sua madeira; e, dos dois que foram mais para loeste, saíram os soldados sem nenhum perigo, alargando-se logo ao mar, sem serem vistos, os que desembarcaram, dos da terra que estavam guardando o Porto dos Carneiros.
Deste lugar donde saíram os franceses a dois tiros de besta, correndo a costa direita, está uma pequena ponta que por ser alta se chama o Muimento, onde há muito perrexil; e do Muimento a quase um quarto de légua, está o marco que divide os termos da vila da Lagoa e da cidade da Ponta Delgada; e entre o Muimento e o termo, fica no meio o Poço d’Atalhada, onde bebem os gados daquelas partes. Chama-se o Poço d’Atalhada porque, pela terra dentro, Ihe fica para o norte um biscoutal que vai beber na água salgada do mar, onde havia um mato de altas e direitas árvores que antigamente cortavam ou talhavam para mastos de navios, pelo que Ihe ficou o nome Atalhada dos Mastos, onde tem sua quinta e morada o nobre Cristóvão Soares da Costa, com suas terras de lavoura, pomar e vinhas; tão valente por sua pessoa, quanto discreto em suas palavras, já homem antigo e grande amigo de Deus, mais rico de discrição e condição que de fazenda; já falecido.
Indo dali para loeste, está o biscoutal grande, em comparação dos outros pequenos, seus vizinhos, que terá légua de comprido por aquela costa, toda de pedra de biscouto seco e raso, com o mar, sem rocha nenhuma alta, onde se acha muito perrexil, agradável e apetitoso manjar para enjoados e famintos no mar, e fartos e enfastiados na terra; e pela banda da terra, vinhas e pomares ornados com quintas e casas alvas, antre sua fresca verdura, com que fica todo aquele sítio muito aprazível à vista de quem o vê e muito mais deleitoso a quem o goza. E assim vai continuando com o mar salgado esta doçura, sem haver fontes mais que uma no cabo, muito pequena, por todo este espaço, repartido em foros pelos herdeiros de Domingos Afonso, cuja foi a maior parte, até chegar ao fim do biscouto, acima do qual, pela terra dentro, está a cruz no caminho, que chamam do Crongo e logo mais para o norte a sua quinta, de André Gonçalves de Sampaio, chamado o Crongo, por em seu tempo ser o mais rico homem da terra, como dizem ser o crongo, entre os peixes que se comem, o maior peixe do mar. Abaixo do biscoutal grande, ao longo da costa, está um meio pico que se chama o Pico de Guiné, porque no tempo antigo faziam ali cevadouros para tomar algumas das muitas galinhas de Guiné que nele andavam; este pico é agora dos herdeiros de Amador da Costa e do bacharel João Gonçalves. No cabo do biscoutal grande está o porto de Jorge Furtado, fidalgo de grande corpo e grandes partes, na condição, discrição e conversação, que ele mandava fazer para mandar recolher e varar nele um barco que ali tinha, para seus passatempos, por ter acima da estrada, para a banda do norte, sua quinta e fazenda, junto do bacharel João Gonçalves, grande e antigo jurisconsulto. Neste biscoutal se dá aos mais perigosos forasteiros impedidos, às vezes, degredo; que assim eles, como os moradores daquela freguesia de S.
Roque, se provêm de água boa, quase doce de um poço que ali descobriu um negro, mudo, escravo de Gaspar Ferreira, bradando e mostrando com acenos haver naquela parte água.
Do porto de Jorge Furtado e deste poço se começa um areal que pelo ser em respeito doutro adiante mais pequeno, Ihe chamam o grande, que será de comprido como de um tiro de escopeta. No meio dele, da banda da terra, está outro meio pico, chamado o Pico da Areia, por estar ali junto e meio coberto dela e agora o Pico das Canas, por prantarem nele muitas; o qual foi de Jorge Nunes Botelho e logo de Pero Pacheco, seu genro, e depois dos herdeiros de Jorge Nunes, que o venderam aos herdeiros do bacharel João Gonçalves e a Francisco Ramalho, seu sobrinho. Vai-se estendendo o areal grande até dar em outro biscoutal e rocha baixa de pedra, acima do qual estão as moradas dos dois nobres irmãos Manuel da Costa e Álvaro da Costa, filhos de Amador da Costa, de tanta virtude que, depois do falecimento de seu pai, nunca quiseram casar; e logo a quinta de Diogo Martins, seu cunhado; e depois a do grande capitão Francisco do Rego de Sá, que houve de Jorge Nunes Botelho, seu sogro, com sua mulher D. Roqueza, cuja fazenda se ajunta e vai continuando pela terra dentro, até chegar à outra costa, da banda do norte, junto do lugar de Rabo de Peixe, sem se entremeter com ela outra, senão dois cerrados alheios.
Logo junto está a igreja de S. Roque, freguesia de cento e vinte e seis fogos e almas de confissão quatrocentas e quarenta e cinco, das quais são de comunhão trezentas e dez, que é sofraganha à cidade; cujo primeiro vigairo foi Pero Cão , que serviu mais de quarenta anos neste lugar chamado Rosto de Cão e freguesia de S. Roque, em cuja história se lê que um cão Ihe lambia as chagas; o segundo, Amador Travassos; o terceiro, Simão Roiz Pavão; o quarto, o licenciado Beraldo Leite; o quinto, o licenciado Ascêncio Gonçalves, que agora é ouvidor do eclesiástico, e tem o primeiro cura, Francisco Rangel. Acima da igreja, estão as moradas de Domingos Afonso Pimentel, homem nobre, prudente e rico em seu tempo, que deixou ricos seus herdeiros. Logo, por uma pedreira queimada vai uma pequena descida de S. Roque para o outro areal, pequeno em respeito do grande atrás dito, onde está um poço de água, mais salobra que a do poço do areal grande, de que bebem os gados e serve de lavagem de roupa, defronte das casas de Jorge Nunes Botelho, do hábito de Cristo, com vinte mil reis de tença, filho de Diogo Nunes Botelho, contador que foi em todas estas ilhas dos Açores, bem imitador, na fidalguia e prudência, de seu pai já defunto; onde está conservando e acrescentando, e não diminuindo aqueles ricos aposentos, fresco pomar e boa fazenda que herdou dele, com o mais concerto que nenhum que eu haja visto nesta ilha, porque tem um rico e grande pomar, com cento e sete grandes laranjeiras, todas arruadas por boa ordem, e um pinheiro de grande sombra e muitos limoeiros, limeiras, cidreiras e outras muitas fruteiras, de toda sorte de boa pomage, e diversas enxertias novamente feitas, pereiros, albricoqueiros, macieiras, marmeleiros, figueiras e amoreiras, tanta cópia que, do sobejo e podado, sustenta quase todo o ano a sua grande casa de lenha; grande vinha com seu lagar e casa; batatal, horta de toda a hortaliça, onde se criam muitos galipavos, patos e galinhas, em grande número; com outra serventia desviada para a casa do pumereiro onde vão os de fora comprar a fruta, em que se faz muito dinheiro, sem Ihe devassar nem inquietar sua casa e família; até na flor de laranjeira, de que se estila, se faz muita água de flor, de que se dá, vende e gasta em muita quantidade; de modo que quase provê de fruta, principalmente de espinho, toda a cidade, de que para ela levam às vezes carros com sebes cheias, carregados de laranjas, com que finalmente parece aquele pomar riquíssima quinta da mesma cidade. Defronte das ricas casas mandou fazer um grande e espaçoso granel, com dois engenhos de pastel debaixo na lógea, sem andar fazendo engenho cada ano, como alguns lavradores fazem, antes aqueles Ihe servem de guarda de toda a abegoaria, que neles fica fechada no Inverno e neles podem agasalhar e se agasalham, muitas vezes, seis e sete cavalos de hóspedes e parentes. Nas paredes do granel estão feitos muitos agulheiros, onde criam pombas; e logo junto um grande lago ou tanque, que leva mil e quinhentos e mais molhos de linho, juntamente com seus estendedoiros ao redor; e acabando de alagar o seu linho e dos vizinhos, tiram a buxa do boeiro e vasam e lavam o tanque sem o abrir, caindo a água dele em um baixo, junto do areal; o qual tanque levará setenta pipas de água, em que se podem tomar muitas pombas bravas e pássaros que vêm a beber nele. Para ir coada a água das chuvas ao tanque, tem na entrada uma cova, à maneira de arca, onde fica assentada a areia e terra, e vai somente a nata da água entrar no tanque, limpa. Logo abaixo das casas, dentro da mesma cerca delas, tem seus repartimentos de casas de gente e duas estrebarias de cavalos e outra casa de repartimento de porcos de monte per si, e outro de bácoros e outro de palheiro. Ao longo do engenho, para a banda do sul, tem em um campo chão perto de cem caniços, para enxugar o pastel, e logo abaixo as tulhas, com uma janela, para recolher por ela os bolos enxutos, e as portas das tulhas, para a banda do sul e da areia, por onde tem a saída.
Tem também no mesmo campo dos caniços um jogo de bola, com sua entrada e porta, para os que a ele vêm de fora, e outra, subindo por um pau, sem derribar parede, para lá irem os de casa; junto da qual tem um grande quintal e figueiral, quase comum aos vizinhos, à sombra do qual manda massar seu linho de dentro de umas covas onde estão as massadeiras, detrás da casa, subindo e descendo também por umas mossas de um pau, sem derribar paredes, com que tudo está amurado e guardado. Tem logo a eira como dentro de casa e a relva para o gado, com dois paus grandes, com seus galhos, em partes diversas, em que os bois se possam coçar, nos troncos o corpo e nos galhos o pescoço. Logo vão suas terras continuando para o norte, até ao Pico da Cruz, quase no meio da largura da ilha, do qual até às ditas moradas e mar do sul ficam águas vertentes, tendo tudo cercado e bem murado e junto das portas a dentro em que todos os seus podem trabalhar sem serem vistos de fora e ele, como sobre-rolda vigiando, acudir a mandar e ordenar todos os que trabalham, com suas serventias postas em tanta ordem e concerto que até os boeiros nas paredes e currais são de maneira que por onde entra o bácoro não pode entrar o porco, e outros boeiros por que entram as patas e galinhas a seus lugares deputados, ordenando os mantimentos e lugares destas coisas, sc., cevada, junça, linho, abóbaras, melões, pepinos e horta, cada coisa ao redor da casa, em cerrados per si, cercados de paredes de oito e nove palmos de alto, onde tem também cercada sua eira que nada se perde, e tudo a seus tempos convenientes, aproveitando não somente os lugares e cerrados, campos, relvas, pomar e horta, mas também os tempos que parece que as coisas e os serviços suavemente se estão fazendo; e com o poço que se chama de Diogo Nunes, seu pai, e mar à porta. E, se nas coisas de casa tem este concerto, não Ihe ficam as de fora sem ele, pois um moio de terra e cerrados de comedia, que tem no termo da vila da Alagoa, que somente Ihe rendia cada ano seis moios de trigo, arrendando os cerrados per si, com a renda deles manda negociar a terra de que recolhe, cada ano, quinze e às vezes vinte moios de trigo. Também tinha uma vinha, que dava de meias a um homem, com horta e criação de galinhas, e fazendo suas contas, agasalhando-o primeiro com terra de biscouto que Ihe deu de foro, em que fizesse casa onde morasse e prantasse outra vinha, pôs outro homem casado, por soldado, na primeira, da qual recolhe agora não a metade, senão todo o fruto, que serão vinte pipas de vinho, que a vinha dá, e toda a criação das aves; o que é notoriamente mais proveitoso, além de andar mais aproveitada a dita vinha, porque se a arrendara, como outros fazem, não Ihe renderia mais que cinco mil reis, e os rendeiros a deitaram a perder, com a cansarem, deixando-lhe muitas varas, para dar muito vinho no tempo do seu arrendamento, sem olhar ao diante, como coisa que não é sua própria, de que pouco se doem. Também mete o trigo no granel por medida e medido o manda tirar, pelo que, faltando, vem a saber quem Iho leva e quanto Ihe levam; e por medida se dá a cevada ao cavalo, com tanta conta, peso e concerto como eu quisera que tiveram todos os homens desta ilha e o tomaram nesta parte por espelho, para se verem e viverem mais ricos e abastados do que são, por não quererem guardar ordem nas coisas, que é todo o ser e acrescentamento e conservação delas. Até os vestidos e alfaias de sua casa manda vir de fora, mandando pastel a Frandes, Inglaterra e a Sevilha, donde Ihe vem tudo escolhido, rico e mais barato, vendendo lá o pastel mais caro e custando as mercadorias mais baratas. Com a qual ordem tendo somente até trinta moios de renda cada ano, os faz chegar a sessenta e setenta, e com esta fazenda não ser muita, mantém grande casa e família e agasalha muitos parentes honrados e sustenta um filho no estudo, tendo já duas filhas freiras no mosteiro de Santo André de Vila-Franca do Campo e casou outra com Pero de Faria, da vila da Lagoa, a que deu em casamento cinco mil cruzados. E por seu pai Diogo Nunes Botelho ter comprado o ofício de contador destas ilhas por quatrocentos mil reis que deu por ele, e o lograr só um ano, pretende havê-lo com sobeja razão e justiça, e sobretudo ele e sua mulher Hierónima Lopes Moniz, filha de Adão Lopes e de Maria Moniz, ambos de muita virtude e amigos de Deus, o que é bastante prova para se crer o grande concerto de sua casa, pois o têm maior em suas almas.
Adiante, passadas poucas casas, está um portal e muro no caminho, com suas seteiras, como forte para resistência e defensão de imigos, se por aquelas partes desembarcarem; e, logo pegada uma ermida de Santa Maria Madalena, com seu virtuoso eremitão, de que se pode dizer muito, porque tem muita virtude; igreja de muita romagem, onde vêm em romaria, por dia de sua festa, quase todos os moradores da cidade e de sua comarca.
Pouco mais adiante, indo para loeste, passada uma pequena ponta de pedra de biscouto, está outro meio pico, que também parece que arrebentou com o fogo em algum tempo e se sumiu no mar a meia parte dele que falta; e no cume do que ficou está a forca, instrumento de justiça da jurdição da cidade da Ponta Delgada, caiada e bem lavrada, com suas ameias, que parece ali um castelo, do mar e da terra, ainda que o mais do tempo sem gente de guarnição, por se haver nesta ilha muita piedade dos soldados que o deviam povoar e pareceram bem nele, que por estar de contínuo tão ermo, parece que ou não há justiça na terra ou são justos e santos todos os vizinhos dela, o que, pelos furtos e insultos que vejo fazer, não sei como possa ser sempre.
Pegado com este castelo, sai um ilhéu ao mar, com alta proa, continuando com a terra, de compridão de mais de um tiro e meio de besta, e no cabo tem uma fenda larga até baixo, por onde o mar entra e sai; e fica, da banda do sul, uma parte dele pequena em que se criam muitas pombas bravas, onde um Domingos Gil que foi carcereiro na cidade da Ponta Delgada, levando uma grossa e comprida vara e atravessando-a no cume deste ilhéu, sobre a fenda, passava da outra parte por ela, a buscar pombinhos, dos quais tomava muitos e os trazia no seio, sem Ihe fugirem, mais seguros e guardados que os presos que ele não pôde bem guardar e sem asas voaram. Na outra parte deste ilhéu, da banda do norte, estão algumas quatro ou cinco covas, algumas já desfeitas e quebradas, estreitas nas bocas e tão grandes dentro como jarras ou tinagens sevilhanas, cavadas no tufo, que no tempo antigo fez ali um João Prestes, cavouqueiro, para encovar e guardar, como em granel, seu trigo nelas, como na ilha Terceira e em outras ilhas costumam fazer debaixo da terra para este efeito. Junto com a terra, quase tudo é uma pedreira de tufo, de que se tira boa pedra para as chaminés da cidade e de toda aquela comarca, em que caldeia melhor a cal que em todo o outro tufo que há pela ilha. Parece este ilhéu um cão, ali assentado com o rabo baixo para a terra, e a ponta dele alta para o mar, que semelha focinho de cão, com os pés ao longo da água, pelo que os antigos Ihe chamaram Rosto de Cão, o qual nome ficou a todo aquele lugar e comarca. Da costa da qual freguesia, começando de casa de Jorge Nunes Botelho, até este ilhéu, entrando pela terra dentro para o norte, estão terras de pedra de biscouto, que correu como ribeira em outro tempo, todas prantadas de ricas vinhas e pomares, com formosas e curiosas quintas, assim dos moradores dela, como dos da cidade, antre as quais tem o principado a de Francisco Mendes Pereira, contador que foi nesta ilha, filho de António Mendes Pereira, casado com Isabel da Gama, dos Gamas de Portugal e da ilha da Madeira, moça da câmara da Rainha D. Catarina; das quais vinhas se recolhem mais de mil pipas de vinho, mas não tão bom, comummente, como o da vila da Alagoa, ainda que já agora, de quinze anos a esta parte, o fazem muitos melhor e, pelo fazerem, por ele vieram a valer as vinhas muito mais que terras feitas e lavradas. Dantes soía valer uma pipa de vinho dois cruzados, mil reis e mil e duzentos; agora três e quatro mil reis e são tidas as vinhas por boas fazendas porque, além dos vinhos delas, se aproveitam muito das frutas, no Verão em seus passatempos, e melhor da lenha em suas necessidades que, por valer já tão cara, a têm em muita estima. Pela terra dentro, para o norte, um quarto de légua da cidade, antre as vinhas, está uma freguesia do lugar da Fajã, cuja igreja é da advocação de Nossa Senhora dos Anjos, ali mudada por a outra antiga se mandar derribar, por estar erma e longe. Tem trinta e seis fogos e almas de confissão cento e oitenta e duas, das quais são de comunhão cento e quarenta e uma; tem anexa uma ermida da Encarnação, perto. O primeiro vigairo foi Jorge Fernandes; o segundo, João Afonso; o terceiro, António de Bastos; o quarto, Roque Coelho; o quinto, Baltasar do Monte. Houve e há, nesta freguesia de S. Roque, homens nobres e ricos que, afora as ricas vinhas, têm suas fazendas e terras de que recolhem muito pastel e trigo. Além do ilhéu, está logo a ponta chamada de João Delgado, porque mora quase nela; e adiante uma ponta de biscouto ao mar, entre a qual e a de João Delgado se faz uma baía de pedra e calhau, onde às vezes varam barcos; e logo outra baía, da mesma maneira, antre outra ponta de biscouto, defronte da casa de António Ledo Panchina, filho de Joane Anes Panchina, na qual ponta se dá degredo, muitas vezes, a muitos forasteiros impedidos, além da qual começa a entrada da cidade da Ponta Delgada, que está da Alagoa légua e meia, e da freguesia de S. Roque meia légua.