Da ponta de Santa Clara começa correr a costa com rocha baixa para o noroeste, até uma pequena ponta ao mar, que se chama a Ponta de Baltasar Roiz , em que se acaba a compridão da cidade. Vai logo além alevantando a rocha mui alta, e fazendo urna baía, na qual está o lugar da Relva, meia légua da cidade, ao longo da rocha, como no outro caminho que há pela terra dentro até o mesmo lugar estão feitas as quintas de Francisco Ramalho, de seu sogro Afonso Anes, de João de Arruda da Costa e de João Roiz Ferreira, e casas de outros moradores, como de Lisboa até Belém, que quase tudo é a mesma cidade. Tanto vão em crescimento as gentes nesta terra, que tudo pode sustentar, ainda que alguns com algum trabalho, como em todas as outras acontece.
No caminho, pela terra dentro, que digo haver da cidade até o lugar da Relva, está, saindo da cidade, a fazenda que foi do licenciado Manuel Garcia, letrado em leis, homem de grandes espíritos, assim nas letras, como no governo da terra, fazendo o que entendia ser proveito dela, sem temer nem dever. Logo adiante está a quinta de Francisco Ramalho, toda cercada de alto muro, dentro da qual tem seus ricos aposentos e todas as coisas com grande ordem, seu pombal e tanque, para beberem os bois e cavalos e mais bestas de serviço, de que tiram água para lavar roupa quase todo o ano, ao qual vem água de fora do caminho e dele vai também para um fresco pomar, em que aproveita toda. Entrando por umas varandas na sala, dela vão ter à cozinha, da qual saindo a um páteo, vão subindo por uns degraus, até entrar em uma câmara de hóspedes, a qual está ladrilhada de tijolo, sobre uma tão grande cisterna que levará cem pipas de água limpa, de que bebem os de casa e muitos de fora e, quando falta no tanque, que leva mais de cem pipas de água, também dela se tira água para granar muita soma de pastel, na tulha que ali tem pegada; a água da qual cistema se colhe por canos dos telhados das casas, e detrás da torre dos hóspedes está um chafariz, que da cisterna corre, para os criados de casa tomarem água para beberem, sem irem por diante devassar as casas; e em um canto dos granéis, para a banda do levante, tem outra cisterna que leva oitenta pipas de água. Tem também três engenhos, com seu campo de caniços e sua tulha muito grande, em que grana o seu pastel, de que fará mil quintais cada um ano, e dois grandes granéis, um para trigo e outro para cevada e centeio, na lójea dos quais tem dois engenhos e guarda neles toda a fábrica da abegoaria de seu serviço. Tem casa de galinhas e outra de porcos. Fecha-se todo este circuito por dentro, como uma fortaleza; até os seus criados e escravos, que dormem na lójea da sala, fecha de cima do sobrado, com uma régua de pau que vai calando pelo meio da parede abaixo até dar em um dos couces da tranca, de tal maneira que de nenhum modo se pode abrir, senão se quebrarem a tranca com machados; e de cima fica fechada aquela régua dentro em um almário que ele pela manhã abre ou manda abrir para os criados saírem ao serviço. Debaixo de toda a cozinha tem um vão em que recolhem os carros e sebes, para que não apodreçam com as chuvas do Inverno, nem fendam com as calmas do Verão; porque a mais abegoaria de todas as casas se lança e ajunta em um lugar onde apodrece, que depois vale muito para as terras, onde manda deitar perto de cem carradas dele.
Perto, da outra parte do caminho para o norte, está a quinta de Afonso Anes, seu sogro, que agora é de herdeiros. Mais adiante, em um alto, está a quinta de João de Arruda da Costa, de grande casaria e oficinas, com um fresco pomar, em que se aconteceu criar um passarinho que iam muitos ver por maravilha, porque, estando no ninho com os filhos, não se alevantava ainda que passassem junto dele e, se alguém Ihe chegava o dedo, o mordia com o bico, sem se bolir do ninho; tanto pode o amor maternal, — arriscava sua vida pela de seus filhos. É este João de Arruda grande cavaleiro e amigo de Deus e da virtude. Mais além, junto do lugar da Relva, está a quinta e fazenda de João Roiz Ferreira, da progénie dos Reis de Escórcia, da grande casa de Drumond, bom cavaleiro e homem de grandes forças e valentia.
O lugar da Relva cobrou este nome, porque no tempo antigo havia por ali boa erva, e onde a costuma haver chamam todos nesta terra, comummente relva; e os moradores da cidade mandavam deitar para aquela parte, naquele campo, seus gados, por se achar nele boa comedia para eles, dizendo aos moços e pastores que levassem os bois à relva, onde os mantinham e criavam; e como dantes era sua relva, agora é seu termo. E, depois que se edificou o lugar e deixou de ser relva, Ihe ficou este nome que dantes tinha. É freguesia da advocação de Nossa Senhora das Neves, cuja festa se celebra a cinco dias de Agosto. Tem cento e trinta e sete fogos e almas de confissão quatrocentas e quarenta e sete, das quais são de comunhão trezentas e trinta e uma. O primeiro vigairo nela foi Álvaro Anes; o segundo, Simão Gonçalves; o terceiro, Hector Tenreiro; o quarto, António Lobo; o quinto, João de Contreiras; o sexto, António Neto; o sétimo, Sebastião Roiz Panchina; o octavo, o licenciado Francisco Leal, que agora serve. Há neste lugar poucos homens que lavrem herdades suas e todos se governam de lavoura, por serem boas terras, mas já não tanto como são as da cidade. Nele reside, o tempo do Verão, o muito nobre fidalgo João de Melo, cavaleiro do hábito de Cristo, genro de Francisco de Arruda da Costa, casado com sua filha Maria de Arruda da Costa, que foi ao Reino, pela cidade, em nome de toda esta ilha, dar obediência ao muito alto, poderoso e católico Rei D. Filipe. Tem este lugar, em baixo, na rocha, uma fonte de água doce de que bebe o povo, que se chama a Fonte do Contador, porque Martim Vaz, que teve este cargo em todas estas ilhas, vivendo ali, Ihe deu lustro com o mandar concertá-la em baixo, quase ao lível do mar, onde corre ou nasce, e o caminho que pela alta rocha a ele descemos.
Indo da Relva, para o ponente, espaço de dois tiros de arcabuz, está uma pequena ponta ao mar, chamada do Feno, pelo haver nela. Adiante, meia légua, está a Rocha Quebrada, que pouco há quebrou, com que se fez uma enseada e entrada ao mar na terra, não muito grande; antes dela, estão na rocha algumas fajãs que são ou foram de Gaspar do Rego Baldaia e têm algumas vinhas. Dali a um quarto de légua está a grota que se chama da Figueira, por haver tido em si uma; e logo junto está a ponta Aguda, assim dita pelo ser a rocha que faz; desta ponta Aguda a um quarto de légua está a Cruz de Monte Gordo, que é uma terra grossa, onde de muito tempo a esta parte está uma cruz arvorada, fazendo ali a rocha uma ponta ao mar, que se chama a ponta da Cruz, defronte da qual estão no mar uns baixos. Adiante está outra ponta, que chamam das Feiteiras, por haver nela muitos feitos, que tem uns ilhéus ao mar, muito pequenos, antre os quais e a ponta passam barcos; onde estão as terras que foram de D. Fernando e de D. Guiomar de Sá, sua mulher. Dali a mais de um quarto de légua está um porto em que saem batéis, por cuja razão se chama o porto dos Batéis, no qual já se fez antigamente uma nau muito grande; e arriba, na terra, está o lugar das Feiteiras que cobrou este nome por haver nele muitos feitos, em uma terra mais baixa e rasa, muito bem assombrada que se quer parecer nesta parte com a da ilha da Madeira, cuja freguesia é da invocação de Santa Luzia; tem noventa e dois fogos e almas de confissão quatrocentas e duas, das quais são de comunhão duzentas e oitenta, a cujo primeiro vigairo não soube o nome; o segundo foi André Fernandes; o terceiro, Domingos Afonso, que agora tem este cargo. Os fregueses vivem por lavouras de trigo e pastel. Mora ali alguma gente nobre, principalmente o generoso fidalgo Jorge Camelo da Costa Cogumbreiro, casado com D. Margarida, filha de Pero Pacheco, e, ainda que não tem filhos com que gastar o seu, é tão grandioso e liberal que setenta moios de trigo que terá de renda cada ano, assim ali, como no lugar dos Mosteiros, afora os muitos que recolhe de suas searas, de que alguns anos paga ao dízimo doze, catorze moios, quase todos gasta em sustentar parentes e parentas honradas e com muitos hóspedes que nunca Ihe faltam e em muitas esmolas que ele e sua mulher fazem a pobres. Fez no mesmo lugar uma igreja da advocação de Nossa Senhora de Guadelupe, tão alta e rica e sumptuosa, com uma capela de abóbada tão bem lavrada e ornada, que bem se parece obra dela com quem a mandou fazer, em que gastou mais de três mil cruzados, com que está honrado e amparado e dando lustro àquele lugar, enriquecendo-o com suas obras pias, suprindo todas as faltas, enobrecendo-o com sua presença, ajudando-o com seu favor, sendo pai de todos sem ter filhos e finalmente não poupando nada do seu por valer e enriquecer a todos; pelo que é sua casa um rico hospital de pobres, um farto gasalhado de ricos, um refúgio de caminhantes, uma pousada geral para hóspedes.
Tem este lugar uma pequena ribeira de boa água, com que de presa ou tanque já moeu e pode moer uma azenha, que corre pelo meio dele e sai ao mar junto ao porto dos Batéis.
Das Feiteiras a três quartos de légua para loeste, sai ao mar uma pequena ribeira, ao longo da qual, pela terra dentro, dois tiros de espingarda, está a freguesia que o povo chama de Nossa Senhora da Candelária ou das Candeias, que é da advocação da Purificação; junto da qual ribeira, para a banda do ponente, está uma ponta ao mar, que chamam a ponta do Camelo, do nome de um homem assim chamado, que ali morava. Tem este lugar quarenta e um fogos e almas de confissão cento e dezanove, das quais são de comunhão cinquenta e sete; cujo primeiro vigairo foi Brás Pires, pai de João Loução; o segundo, Francisco Fernandes; o terceiro, Manuel Dias Barroso; o quarto, Domingos de Crasto, que agora serve. Os moradores vivem por lavoura de trigo e pastel e alguns se aproveitam da lenha que trazem dali perto, da concavidade das Sete-Cidades. Adiante, meia légua, está a fresca e bem acabada ermida de Nossa Senhora do Socorro, que fez um Diogo Gonçalves; dali a um quarto de légua, está a ponta chamada de Pero de Moura, por haver morado ali um homem deste nome. Mais adiante, outro quarto de légua, está a nova freguesia de S. Sebastião, cujo primeiro vigairo é Gaspar Carvalho. Tem setenta e oito fogos e almas de confissão trezentas e vinte e quatro, das quais são de comunhão duzentas e dezanove; todos vivem de lavoura de trigo e pastel, pelo modo que os passados. Está esta freguesia em uma formosa, fresca e bem assombrada várzea, amparada dos ventos da banda do mar com o pico dos Genetes, chamado assim ou por ele ter uma selada no meio, como sela e diante por ser levantado como arção de sela e detrás outro; e por ser assim selado no meio, como genete, se chama pico dos Genetes, mais que por nele se criarem genetes. Da banda da serra, com o mato de frescas faias e outras árvores, é o pico dos Genetes de Aires Jácome, e achando-se nele uns olheiros donde, metendo-Ihe um braço dentro, sai deles um ar e bafo quente. Antre este pico e o das Ferrarias, estão duas pontas ao mar, que alguns chamam pontas do Mendo, por antigamente morar ali um fidalgo chamado Mendo de Vasconcelos, onde se mata muito pescado de toda sorte e podem chegar ao longo delas navios e batéis, que ali fazem ricas pescarias com que abastam de peixe muito bom a cidade da Ponta Delgada e outras partes da ilha.
Da Várzea ou freguesia de S. Sebastião a quatro tiros de besta para loeste, está o pico de Marcos Lopes Anriques, que chamam das Camarinhas, por ter árvores desta fruta no seu cume; chama- se também pico das Ferrarias, porque no tempo passado, antes de ser descoberta esta ilha, sendo tão alto junto com o mar que o fazia alcantilado, arrebentou e lançou de si para a parte do mar uma ribeira de fogo, que se meteu tanto pelo mesmo mar, que ocupou dele grande espaço, ficando onde dantes era mar um espaçoso e largo cais de biscoutos, ao longo da costa, tanto como três tiros de besta, que tem de largura, e dois de compridão, entrando na água salgada; ficando esta ponta de pedra baixa e rasa. Ao pé deste pico junto do dito cais, para a banda de leste, sai uma formosa ribeira, de água tão quente que nela se pelam leitões, coze peixe e escascam lapas, que ali se criam nas pedras; a qual ribeira se cobre com a maré cheia, mas com ela vazia mostra bem sua grandeza, doçura e quentura; é tão grande que pode com ela moer uma azenha e suspeitam alguns que vai das Sete-Cidades, dali meia légua; e ainda que as alagoas que há na concavidade das Sete-Cidades sejam de água fria, por debaixo da terra, em alguns vieiros de enxofre ou salitre, parece que se vai aquentando e cobra fogo, e por isso ao longo do mar sai quente. Os biscoutos de pedra que deste pico correram são tanto mais pesados que outros que há em muitas partes desta ilha, que no peso e forma parecem as escórias do ferro que nas ferrarias se acham, pela qual razão puseram a este lugar, e ao cais de biscouto de pedra que dele correu, este nome de Ferrarias. Donde parece que, além de haver naquele alto pico muitas veias de enxofre, marquesita e pedra hume, por ventura algum salitre, há também veia de ferro e outros líquidos metais, como se pode ver no biscouto que ali correu e na diferença que tem no peso de todos os outros biscoutos da ilha, os quais parecem ter todos alguma mistura dos ditos metais, principalmente de marquesita e ferro, de que este biscouto das Ferrarias tem maior parte; e no mar defronte destas Ferrarias se fazem as melhores pescarias da ilha, onde se tomam meros, chernes, crongos e muitas maneiras de pescados.
Antre o pico das Ferrarias e os Mosteiros, estão no calhau, junto do mar, duas fontes pequenas, uma na grota de Rui Vaz e outra no pé da rocha das Ferrarias. Para loeste, dois tiros de besta, estão os Escalvados, que são uma pequena ponta escalvada por cima, sem criar em si erva, pelo que se chamam aqueles lugares dela os Escalvados, onde é fim e topo da ilha, da parte de loeste, ainda que fica voltando já do sul para o noroeste; e este é o rabo da opa roçagante do grande gigante Almourol, ficando o pico das Ferrarias, que é o seu pé esquerdo, armado de ferro, porque dos Mosteiros direi depois quando tratar da costa da banda do norte, como logo contar quero, tornando-me ao Nordeste, que é a cabeça donde pela parte do sul comecei a contar a figura de seu corpo .