Estas ilhas dos Açores não são tão estériles como outras terras, em que há algumas de oito folhas e outras de sete, e daí para baixo até duas folhas, e nehuma de uma, porque não se semeiam cada ano, senão a melhor de dois em dois anos, um ano e outro não, e às vezes de três em três, e de quatro em quatro, até de oito em oito, o que se chama duas, três, quatro, até oito folhas em Alentejo, que é mãe do bom pão, e ainda estercadas, e a melhor delas de alqueive, lavrando a terra um ano, deixando-a apodrecer à chuva e à calma, e depois tornando-a a lavrar o outro ano seguinte, em que se há-de semear, e assim passa por dois invernos e verãos , curtindo-se ao frio e sol, lavrada e beneficiada para dar fruto; que é o que diz Virgílio nas Geórgicas, nestes versos: Illa seges demum votis respondet avari Agricolae bis quae solem, bis frigora sensit.
Que querem dizer: — Aquela sementeira ou seara, finalmente responderá aos desejos do lavrador avaro, que sente duas vezes o sol, que são dois verãos, e duas vezes os frios, que são dois invernos; — com que se está curtindo, apodrecendo e preparando. Mas estas ilhas dos Açores, e particularmente esta de S. Miguel, que é maior de todas, de maravilha espera por folhas de um ano ao outro, nem se usa aqui de alqueive; antes quase todos os anos continuamente se semeiam as terras dela, que nisto parece serem incansáveis, e dão abundantíssimo fruto, maiormente no princípio do seu descobrimento, em que tinham todo seu vigor e força; ainda que já agora não respondem com tanta abundância como dantes, pelo que direi algumas coisas notáveis da fertilidade antiga, em que quase não havia preço no trigo que a terra dava, porque tão barato o davam os lavradores como quase de graça, e depois pelos anos adiante declararei os preços que teve cada ano até o tempo presente, segundo melhor na verdade alcançar pude.
Nesta ilha, tendo os homens, ou cada um deles, três ou quatro moios de terra, só um semeava, ficando os outros sem semear; mas aquele só semeando Ihe dava tanto trigo, que Ihe sobejava e se enfadava.
Um Pedreanes, sapateiro, morador no Nordeste, casado com Beatriz Lopes, estante agora na vila da Ribeira Grande, comprou um moio de trigo por uns sapatos de vaca, que naquele tempo valiam três vinténs; e saía a real o alqueire.
Havia naquele tempo muita rapa-saia, uma erva deste nome, entre o trigo; um Estêvão Chainho, rico morador na vila do Nordeste, tendo um moio de terra semeado, e coberto dela, a deixava para os porcos; o que vendo seus vizinhos, pediram-lhe que Iho desse e eles o segariam, pois que o havia de dar aos porcos; e segando-o, ainda que estava perdido, apanharam eles nove moios de trigo.
O avô de Adão da Silva, vindo a esta terra, Ihe deu o Capitão por repartição a lomba que se chama a Grota Funda, e por Iha mercarem bem, ou ele não fazer caso de viver nesta ilha e se querer tornar, como tornou, para Portugal, a vendeu por quatro carneiros e uma viola; a qual lomba depois rendia cada ano mais de dez moios de trigo.
Na era de nove, um Pedreanes, do Pico, morador na Ribeirinha, comprou a Luís Gago, avô de Rui Gago da Câmara, oito moios de trigo por dezasseis quintais de pastel, que valia então o quintal a dois tostões somente. Este Pedreanes, do Pico, deu por uns sapatos brancos para um seu criado seis alqueires de trigo.
Um Francisqueanes, sendo compreendido em pena de um tostão, devido ao alcaide, Ihe deu um moio de trigo por isso.
Um padrasto de Pero Teixeira e de Antão Teixeira, morador em Vila Franca, vendeu uma terra Mécia , que rende agora passante de quarenta moios de trigo) por uma casinha de telha, terreira, em Vila Franca.
Em tempo do Capitão Rui Gonçalves da Câmara, primeiro do nome, que comprou a Capitania desta ilha de S. Miguel aos quatro dias de Agosto do ano de mil e quatrocentos e setenta e nove, um Fernando Afonso, pai da mãe de Francisco Pires Rocha, da governança da vila da Ribeira Grande, que hoje nela vive, comprou a um Pero Afonso, escudeiro, criado do conde de Monsanto, e a sua mulher Beatriz Rodrigues, cinco moios de terra, junto da ribeira, acima da dita vila, que inclui os assentos de Lopo Dias Homem e de Henrique de Betencor de Sá e o mosteiro das freiras e o assento do mesmo Francisco Pires Rocha, tudo por cinco mil réis, sendo, então, o real de cinco ceitis, e agora vale cada moio seiscentos mil réis, de seis ceitis o real. E, posto que alguns dizem que o estilo de escrever e falar antigo era grosseiro, o contrário se mostra na escritura que desta compra e venda fez Pero Cordeiro, escrivão do almoxarifado e tabelião público em todas estas ilhas dos Açores, que eu vi escrita em um pequeno pergaminho, mui breve e de poucas regras, em que está tudo rematado com palavras mui judiciais e discretas, muito diferente das que agora fazem compridas, de muita leitura desnecessária, com que mui poucas delas há que, pelas muitas palavras tabalioas com que são feitas, não sejam escuras e embaraçadas e não haja por isso depois dúvidas entre as partes .
Na era de mil e quinhentos, e daí por diante, alguns anos, valia nesta ilha o trigo a quatro réis o alqueire. Vendendo um Afonseanes, morador na Ribeira Grande, quatro moios a este preço, por o mercador não ter presente o dinheiro lhe deixou em penhor uma espada e sobre ela Ihe deu Afonseanes o trigo, por Ihe parecer que ficava seguro do preço dele com aquele penhor, e o mercador se foi, sem mais tornar a tirar a espada, cuidando cada um que o outro ficava enganado. E depois se vendeu a espada em um tostão, e assim Ihe saiu vendido o moio de trigo a vinte e cinco réis. Os farelos naquele tempo não se aproveitavam e deitavam-se fora, nos monturos.
Davam a este Afonseanes o pico do Ermo, que pode ter três moios de terra, por dois mil réis e não o quis comprar. Também Ihe davam dois moios de terra do Morro da vila da Ribeira Grande, que tem agora Nuno Barbosa da Silva, por cinco mil réis, e não os quis comprar, parecendo-lhe grande preço, e valem agora mais de três mil cruzados.
Um Gomes Fernandes, morador na Lomba, da Ribeira Grande, vendeu dois moios de terra por uma espadinha com meias bainhas. Este viveu mais de cem anos e sendo muito rico, parece que por Ihe sobejar a vida, veio a ser pobre pedinte.
Na era de mil e quinhentos e sete valia o trigo a cinco réis o alqueire, e um mercador de Lagos, do Algarve, acabando de carregar um navio, sobejando-lhe dois moios de trigo em uma eira, junto do porto dos Carneiros da vila da Lagoa, os dava por uma galinha e dois frangos, com que passava um moço que Ihos não quis dar, por não ter consentimento de seu pai; então deu o trigo de graça a Rui Martins, seu cunhado, morador na mesma vila.
Na era de mil e quinhentos e oito, um Fernão d’Alvres morador na ribeira do Salto, indo um dia da vila da Ribeira Grande para sua casa, disse a sua mulher que folgasse com as novas que levava, que já valia o moio de trigo a seis tostões, tendo aquele por grande preço, porque tinha muito que vender.
João Dias Caridade comprou por uns cintos dois moios de terra, junto da ermida de Nossa Senhora da Piedade, onde ele depois foi morar, porque vivia na vila da Ponta Delgada, que depois se fez cidade.
Na lomba grande da Ribeira Funda, de Luís Fernandes da Costa, se achou uma espiga de trigo que tinha ao pé dela sessenta filhos.
Em o quintal do Padre João Soares da Costa, beneficiado na igreja de S. Sebastião da cidade da Ponta Delgada, defronte de suas casas em que tinha semeado alguns grãos, se achou entre outros um pé deles que deu mil e trinta e três grãos; e dos outros pés, um tinha quinhentos, outro trezentos grãos, a que os castelhanos chamam gravanços.
Luís Gonçalves, sapateiro, morador na Ribeira Grande, pediu a um Gonçalo Pires meio moio de trigo por umas botas, que naquele tempo valiam oito, nove vinténs; e, por Iho rogar muito um seu amigo, tomou outro meio moio de trigo por outras botas.
Vasqueanes vendeu certos moios de trigo a três tostões o moio, posto no porto dos Carneiros, que é o que agora quase vale o carreto dele. E ordinariamente se dava naquele tempo antigo um quarteiro de trigo por uns sapatos de vaca.
Já quando o trigo ia alevantando o preço, na vila da Ribeira Grande, uma mulher mandou comprar um alqueire de trigo das maquias, e disse à criada: — se o moleiro te não escolher maquia, e maquia do melhor trigo que vier ao moinho, não o tragas, porque não hei- de dar meio vintém por um alqueire de ruim trigo.
Mandaram os almotacés deitar pregão na vila da Ribeira Grande que as padeiras fizessem pão de meio real; porque, passando um homem de caminho, não havia de tomar, nem comprar pão de real.
Na era de mil e quinhentos e vinte, ninguém queria o trigo do morro da Ribeira Grande, porque era tão forte e tinha a casca tão grossa, que se tornava farelo e não rendia em pão, senão de Janeiro por diante; rendendo então a terra a quarenta moios por moio.
Daqui veio que procuravam muitos as terras da Ribeirinha, que eram fracas, mais que as do Morro, ainda que eram, então, terras grossas e fortes; mas, gastada já aquela fortidão, são agora melhores e de mais valia.
Um Lopo Gonçalves, morador na vila da Ribeira Grande, deixou vinte e seis alqueires de terra, no morro da mesma vila, à confraria de Nossa Senhora da Estrela, que Ihe rende agora dois moios e quarenta alqueires de trigo cada ano. E então dava o Capitão Rui Gonçalves da Câmara, avô do conde Rui Gonçalves da Câmara, um moio de trigo a quem Ihe trazia outro, do lugar de Porto Formoso à vila da Ribeira Grande. E um Fernão d’Álvares, da dita vila da Ribeira Grande, deu um moio de trigo e três couros de vaca, postos na Alagoa, por umas botas de cordavão .
Fernão d’Álvares, o Grande, morador na vila da Ribeira Grande, avô do Padre Baltasar Gonçalves, beneficiado na dita vila, não quis dar um barrete vermelho, que trouxe de Portugal, por dois moios de trigo. .
Um Pero Vaz, morador na mesma vila, valendo os sapatos a dois vinténs, mandou por uns um vintém em dinheiro e quatro alqueires de trigo, por conta do outro vintém, a cinco réis o alqueire; e o sapateiro, chamado Luís Gonçalves, se aqueixava dele, porque não Ihe mandava o dinheiro, e não o trigo tão caro. E, no tempo de recolher a novidade, diziam as mulheres umas às outras:—comadre, deitastes vós já o vosso trigo no monturo?—porque costumavam naquele tempo deitar o trigo velho fora, sem o aproveitarem, e despejar os granéis para recolher o novo.
Na era de mil e quinhentos e sessenta e nove anos, um Manuel de Almeida, homem honrado, dos principais fregueses da freguesia dos Reis Magos, dos Fenais da Maia, nas terras da Ponta, junto de uma ermida de Nossa Senhora da Ajuda, na sua seara, achou um pé de trigo, que tinha cento e sete espigas, quatro delas de quatro ordens, e as outras de seis e de sete, de oito, de dez e doze; as raízes deste pé de trigo eram tão grossas como a barriga da perna de um homem, quase de grossura de dois punhos, e a rama em cima fazia soma de uma gavela. O qual pé de trigo dependurou o dito Manuel de Almeida na dita igreja da mesma freguesia, onde esteve muito tempo dependurado e o iam ver por façanha e coisa nova, até que espiga e espiga o levaram os que o viam. Também um Manuel Fernandes, enqueredor em Vila Franca do Campo, trouxe da ilha de Santa Maria uma espiga de catorze ordens, que era grande excesso e certo sinal da fertilidade da terra.
Um João Martins, de alcunha Calcafrades, morador nas Hortas, de Vila Franca do Campo, vendeu dez ou doze moios de terra de pasto, onde agora chamam Água Retorta, a João Afonso, do Faial, o Velho, por pano de Londres, azul, para um gabão, que agora dá muito trigo e pastel e é de João Roiz Cordeiro, filho de Pero Roiz Cordeiro.
João Calado, natural do Algarve, comprou um sombreiro nesta ilha por um moio de trigo, que então valia a trezentos réis o moio.
Um homem nobre comprou um capuz por nove moios de trigo e no fim de umas trovas, que sobre isso Ihe fizeram, diziam: — o que traz os moios nove, no capuz até o chão.
Rui Tavares, morador na Ribeira Grande, não há muitos anos que semeou dezoito alqueires de trigo, ao longo da sua eira, que Ihe deram vinte moios. E uma mulher deu um moio de trigo por uma bengala.
Dizia Rui Fernandes, primeiro beneficiado que foi na igreja principal de São Sebastião da cidade da Ponta Delgada, que se quisera, quando veio a esta ilha, comprara uma casa dentro na dita cidade, que então era vila, com um moio de terra, por menos de vinte mil réis; que agora valem mais de dois mil cruzados.
Está verificado por homens ainda ao presente vivos que na era de mil e quinhentos e oito, e daí por diante alguns anos, valeu o trigo a quinhentos e a seiscentos réis o moio e algumas vezes a cruzado; e em muitas casas somente comiam o olho da farinha, e em algumas estavam montes de rolão no granel, sem o aproveitarem. E vieram depois anos tão estériles que moíam os farelos duas e três vezes para fazerem pão que comessem.
Um Luís Gonçalves, sapateiro, morador na vila da Ribeira Grande, não quis dar uma botas de pele de cabra por um moio de trigo que Ihe davam por elas, que valiam então trezentos réis porque havia pouco dinheiro nesta ilha. Um André Álvares, o Grande, morador na vila da Ribeira Grande, vindo de Portugal, não quis dar um barrete vermelho, que trouxe, por dois moios de trigo, que Ihe davam por ele. E muitas vezes valeu o trigo a cinco réis o alqueire e, ainda com ser tão barato, não achavam quem o comprasse.
Bartolomeu Roiz da Serra e outras muitas pessoas que tinham muito trigo velho, quando vinha o tempo da aceifa, mandavam dizer a muitas pessoas que fossem por ele, e Iho davam de graça.
Um Gonçalo Fernandes, da Ribeira Grande, vendeu alguns moios de trigo a trezentos réis o moio, posto no porto dos Carneiros. No mesmo ano, Rui Garcia, pai de Roque Roiz, que foi escrivão da Câmara da dita vila, tendo quarenta moios em um granel para carregar para a ilha da Madeira, da qual vindo então um navio que deu nova valer o trigo a quinhentos réis o moio, vendo que não tinha proveito se o carregasse, e por não ter granel para recolher o trigo novo, os mandou deitar fora do granel, na rua, onde se perderam. Davam então um quarteiro de trigo por uns sapatos de vaca e um moio por uns brozeguis .
Na era de quatrocentos e noventa e oito até a de mil e quinhentos e seis, que por esta conta durou nove anos, era a fartura tanta que desejavam todos que viessem pobres a suas casas e eiras, para lhe darem esmolas, que não havia pobre na terra e estava o trigo em monte na eira, como em um granel; de um dos quais montes tirando um dia onze moios não fez mossa nele, ficando em vão como casa, porque com a chuva fazia côdea por cima, com que ficava como telhado que guardava o que em baixo deixavam. E não queriam comprar o trigo a cinco réis o alqueire, se não Iho dessem joeirado.
Na era de dez, um Lopo Gonçalves, morador na vila da Ribeira Grande, que deixou vinte e cinco alqueires de terra do Morro à confraria de Nossa Senhora da Estrela, da mesma vila, houve tanto trigo que não teve onde o recolher. Depois de fazer um granel debaixo, e ter ambos cheios, perguntou a um escravo seu, por nome Francisco, se havia mais trigo na eira, e respondeu-lhe que ainda havia um calcadouro limpo; deu graças a Deus, por não ter onde o recolher, e rogou a Frei Afonso, que servia de vigairo na dita vila, que dissesse na estação que quem quisesse trigo fosse buscar quanto quisesse à sua eira, e Iho daria por amor de Deus. E não se acharam mais que duas pessoas necessitadas, que lá foram, tão farta e abastada era a terra naquele tempo, em que valia o trigo a quatro réis o alqueire, e a duzentos e quarenta réis o moio.
Um mercador de fora, junto do verão, morador na Ribeira Grande, quando se havia de recolher a novidade, andava rogando a muitas pessoas que fossem buscar o trigo velho de graça ao seu granel, porque o queria despejar para recolher o novo; sendo o trigo velho bom e limpo e são.
Um João Moniz, morador em Rabo de Peixe, para recolher a novidade de um ano, além de carregar um navio de trigo e cevada, despejou o granel do trigo velho, que Ihe ficava, e eram nove moios que recolheu debaixo do mesmo granel, onde os comeram os porcos e galinhas e outras alimárias, pelos deitar ali como perdidos, por não ter onde recolher o trigo novo.
No Morro da vila da Ribeira Grande, e em outras muitas partes desta ilha, respondia a terra a sessenta moios por moio de trigo, e o mesmo de cevada; e tão basto e grado era o pão, que dois ceifões segavam trezentos feixes no dia, e cada feixe dava um alqueire de trigo; e os donos das searas não diziam que Iho apanhassem nem aproveitassem bem, senão que o levassem por cima e segassem pouca palha. Por isso naquele tempo pequenos calcadouros respondiam com muito trigo. E houve uma eira de um Francisco Martins, no Morro da Ribeira Grande, que Ihe deu vinte e cinco moios; mas agora tudo é pobreza. E o calcadouro que naquele tempo dava dez moios, não dá neste quatro, e é tanta a miséria que não há lavrador que queira ver perder uma espiga, perdendo-se tanto pão no campo naquele tempo antigo, em que um João Gonçalves, alfaiate, morador na Maia, bom ceifão, um ano ganhou a segar sete moios de trigo, com empreitadas que tomava. E ordinariamente no verão vinham ceifões do Algarve segar a esta ilha, pelo muito pão que se dava nela, e levavam para sua terra o que ganhavam.
Um Lourenceanes, serrador, vendeu por um barrete vermelho três moios de terra, arriba da Calheta de Pero de Teves junto da ermida de São Gonçalo, na cidade da Ponta Delgada.
Álvaro Lopes, que morava em Bulcão , sobre a vila da Lagoa, perto da ermida de Nossa Senhora dos Remédios, tinha trigo de três anos no granel, melhor ao cabo deste tempo que o trigo novo, que então se recolhia, que se danava muitas vezes, ficando aquele seu velho fresco e inteiro; parece que era isto pela frieza da terra, por morar ele ali, junto da serra.
João Jorge, da vila de Água do Pau, tendo vendido algum trigo barato, depois do navio carregado, sobejando a um mercador um moio, Iho comprou por três galinhas. Este João Jorge e Álvaro Lopes, dos Remédios, pai de Adão Lopes, eram dos mais ricos e abastados homens lavradores do seu tempo. João Jorge, o primeiro verão depois do dilúvio de Vila Franca, já na era de mil e quinhentos e vinte e três, vendeu trinta moios de trigo por sessenta mil réis, a dois mil réis o moio, que era grande preço naquele tempo, e ainda deu de arra trinta alqueires de trigo para biscoito. E na era de mil e quinhentos e vinte e um, nos Fenais da Maia, respondeu a terra a quarenta moios por moio.
Na Ponta da Garça, morava um bom lavrador, chamado João Fernandes; na era de mil e quinhentos e cinquenta e oito, e cinquenta e nove, determinando de se ir para Portugal Ihe perguntaram porque vendia sua fazenda e se queria ir, pois estava rico e à sua vontade.
Respondeu que se ia pelo que conhecia desta ilha, que tempo viria que não responderia a cinco moios por moio, porque o tinha experimentado nos anos atrás passados; que no princípio, quando ele fora à Ponta da Garça, Ihe davam as terras à razão de cinquenta e sessenta moios por moio e havia trinta anos que ele começara a fazer seara, e já Ihe não respondiam senão à razão de catorze moios; e, pois desta maneira faltou tanto em tão pouco tempo, que faria ao diante. E, se por isso não quis então deixar de se ir desta terra para a sua de Portugal, melhor se fora, se soubera deste nosso tempo, em que os senhorios levam cinco moios por moio, de renda, sem nenhuma piedade, vendo claramente que não dá, nem responde a terra tanto; e os pobres lavradores não podem, nem querem deixar os arrendamentos, ainda que se perdem neles, por não ter outra vida. São nisto como o pobre murganho, que não sabe mais que um só agulheiro ou buraco, em que se acolhe, pelo que prestes o tomam e morre. Mas, conquanto foi declinando a terra desta ilha de sua fertilidade, e no tempo antigo dando em alguns anos toda a ilha dezasseis mil moios e dezassete mil, e depois veio a dar oito mil, todavia o ano de mil e quinhentos e sessenta e nove deu doze mil, e o de mil e quinhentos e oitenta deu dezoito mil moios de pão, o que nunca se viu nela, porque parece que tornou então a seu princípio, e melhorado. E houve terra que respondeu a sessenta moios, e outras a trinta, e a razão de quarenta moios por moio; e muitos mais foram se não se perdera muito nas eiras, por falta de bom tempo para se poder recolher; que se vinha um dia bom, vinham logo outros chuvosos, por onde teve ruim colheita e estiveram muitos lavradores para cobrirem nas eiras o trigo, e os frescais com palha, como fazendo- lhe casas, em que o deixassem, para debulhar no mês de Maio do ano seguinte, por na era de oitenta não fazer tempo para isso, em que muito trigo nasceu nas eiras e ainda por todo o mês de Outubro não estava acabado de recolher todo, em toda a ilha. Valeu em todo o verão a três mil réis o moio, o menos; aos alqueires, o davam a dois vinténs o alqueire; e o ano de mil e quinhentos e oitenta e um, ainda que não renderam tanto as searas como dantes, deu tanto ou mais trigo que o ano de oitenta, por se semearem mais terras, porque se roçaram muitas de silvas, e todas as que chamam as cabeçadas, e aos pés dos picos e pelas faldras deles foram semeadas, e qualquer homem pobre fez seara, por Ihe não faltar trigo para semente do ano abundoso atrás passado. De centeio não se faz caso nesta terra, senão para alcacér, manjar de gado, e para se aproveitarem da palha dele nos enxergões.
É muito fértil esta ilha, não somente de trigo e cevada, mas de muitos legumes, como são favas, ervilhas, chícharos, lentilhas, tremoços e junça, em todo o tempo depois que foi descoberta até agora. E o trigo, a era de treze, quase não teve valia, mas daí por diante até este ano de mil e quinhentos e oitenta e oito, sendo o moio de sessenta alqueires, que é a medida que corre nestas ilhas, teve as valias seguintes, justificadas as mais antigas pela justiça no cartório de João Lopes, tabelião, que foi de Gaspar de Freitas, onde se há-de notar que, o ano que tinha dois preços, quem não pagava no verão, pagava depois na maior valia de todo o ano. E, ainda que nesta terra haja trigo de diversas maneiras, como é anafil, barbela, tremez, canôco e pelado, e o anafil só o primeiro ano que se semeia permaneça o seu ser, e semeado do segundo ano por diante se torna barbela, todo um e outro tem cada ano o mesmo preço .