Ordinariamente, qualquer ilha nova em seus princípios depois de achada, parece um paraíso terreal e é fértil em tudo, quando dantes de povoada se deitam nela as sementes das coisas necessárias à vida humana, e Ihe dão espaço em que se criem e cresçam e possam multiplicar para uso e mantimento dos povoadores vindouros. Assim foi esta ilha de São Miguel que, sendo achada na era de mil e quatrocentos e quarenta e quatro anos por Gonçalo Velho, comendador de Almourol, enviado pelo Infante D. Henrique, de gloriosa memória, a seu descobrimento, que depois foi Capitão dela, dali a cinco anos, que foi na era de mil e quatrocentos e quarenta e nove, com licença de el-Rei D. Afonso, quinto do nome, tornou a mandar deitar muito gado de toda a sorte e outras sementes nela que multiplicaram tanto, que quando dali a pouco tempo a vieram a povoar, faltava a fome a seus primeiros povoadores para tanto mantimento quanto nela achavam, principalmente de gado de toda a sorte e de pescado, como agora direi.
Em diversas partes desta ilha, foi deitado gado entre o espesso mato dela; em partes, deitaram carneiros e ovelhas, e em outras, bodes e cabras, em outras, porcos e porcas, e em outras, cavalos e éguas, asnos e burras. Tudo multiplicou tanto entre o basto arvoredo, com os bons pastos que havia de erva e rama, que quando vieram os primeiros povoadores, dali a alguns anos, achavam grandes manadas deste gado em toda ela, e muito mais nas partes onde o deitaram; pelo que havia tanta fartura nesta terra, que não se cortava naquele tempo carne nos açougues, nem os havia, mas cada um fazia açougue em sua casa, tomando os bois, carneiros e cabras, e mortos os dependuravam à porta em uma árvore, e dali partiam e comiam quanto queriam, até que começava a ter mau cheiro e então deitavam o que sobejava da rez fora, em alguma grota ou apartado de casa.
Na Lomba da Ribeira Seca, termo da Ribeira Grande, houve uns homens honrados e forçosos, chamados os Fanecas de alcunha, que eram João Gonçalves, Rui da Ponte, Pero da Ponte, João Velho e seu pai deles, os quais, perto de suas casas, matavam cada um sua vaca e a dependuravam à porta, e todos os que passavam e queriam cortar, levavam a que Ihe contentava; e, como cheirava mal, não curavam de a salgar, mas cortando-a por riba, pelos pernis, a iam deitar por uma grota ou rocha abaixo, ou na ribeira aos cães.
Havia nesta ilha, logo no princípio de seu descobrimento, tão grandes malvas como árvores, nas quais dependuravam também os bois e vacas que tomavam, e dali repartiam a carne delas pela maneira sobredita, o que queriam e a quem a queria, e assim se proviam de carne sem haver mais açougue, senão o que cada um tinha à sua porta; de modo que não tinha preço a carne de toda a sorte, e de graça a comiam, e pouco era isto, se aproveitaram o que sobejava, mas deixavam apodrecer e perder muita por razão da grande multidão do gado, cuidando que nunca faltaria, e também por haver pouco sal na terra.
E outra se perdia no mato, onde matavam algum gado, para somente se aproveitarem das peles. Os mais dos homens, então, se prezavam de fragueiros e monteiros, e aqueles que eram mais valentes traziam do mato as reses que tomavam para si e para seus vizinhos.
Depois, passados alguns anos, veio a valer a carne quase de graça, e mais além algum tempo se começou a cortar a quatro, seis e sete ceitis o arrátel e por discurso do tempo se foram alevantando os preços.
Afora o gado bravo que andava na serra, outras reses e bois já mansos se iam dos povoados, das casas de seus donos, metendo-se pelo mato, sem saberem tornar nem os poderem achar, porque eram tão bastas as árvores que em muitas partes um cão não podia passar por entre elas, nem por debaixo delas; e muitas vezes se andava grande espaço de terra, sem porem os homens os pés no chão, senão por cima das árvores, que estavam verdes, deitadas e alastradas umas por cima das outras; não porque os ventos as tivessem derribadas, senão por se tecerem os ramos de través uns com os outros, com que ficavam liados e cobriam toda a terra, pelo que não havia caminho senão por cima delas, e alguns bois se perdiam e andavam a serra três e quatro anos.
E depois os machos das pernas deles cresciam tanto que faziam volta, e Ihe vinham fincar nas canelas das pernas, da banda de detrás, fazendo com aqueles machos uns vãos entre os mesmos machos e as canelas, na volta que davam, por onde caberia um dedo da mão de um homem e por onde se poderiam prender como por um tornel ou argola de ferro, e em vez de crescerem aquelas unhas e machos para baixo, cresciam tanto que viravam para cima e se fincavam nas pernas e canelas.
Os touros bravos tomados com um laço e presos a um pau ou árvore, três ou quatro dias, sem Ihe darem de comer, assim os amansavam, para se servirem deles, e depois sofriam a carrega esfaimados; e os que não podiam ter estes da terra mandavam comprar bois mansos à ilha de Santa Maria, para fazerem seu serviço e lavoura.
Os porcos do monte eram tantos e tão bravos que davam grande trabalho aos monteiros.
Havia infinidade deles além da cidade da Ponta Delgada, para aquela banda de Santa Clara, até a casa de Francisco Ramalho, onde os iam montear os moradores de Vila Franca, levando mantimento em seus batéis para alguns dias, nos quais, fazendo salga neles, se tornavam com muitos para a mesma Vila. Mas, muito mais número deles havia na ribeira da Salga, da banda do norte, onde parece que deitaram alguns no princípio, e lá iam da vila da Ribeira Grande e de outras partes muitos homens a montear e, fazendo grande matança e salga neles, se tornavam para suas casas, providos para muitos dias.
Não se aproveitavam em muitos anos nesta terra cabeças e fressuras, nem tripas, nem miúdos alguns de qualquer outra rês, tanta era a fartura nela.
Também se achavam grande número de asnos bravos, principalmente na concavidade das Sete Cidades, onde se acolheram do lugar donde primeiramente os desembarcaram, com as unhas muito crescidas, tão ferozes que se enviavam à gente como bravos touros e mais dificultosos eram de tomar que eles; porque o touro, esperando-o em uma vereda por onde passava, Ihe deitavam um laço ou Ihe cortavam uma perna, e assim o tomavam e se aproveitavam dele. Mas os asnos, por entre as alagoas das Sete Cidades e ao redor delas e por entre o arvoredo espesso, se Ihe cortassem as pernas, não aproveitariam para nada, pois Ihe não podiam comer a carne, como a do touro que jarretavam; pelo que era tão dificultosa de tomar esta caça que não havia coisa tão forte de tomar como eles, porque mais facilmente se tomava um porco montês ou um touro. E, na verdade, muita experiência temos todos que os animais desta sorte, ainda que tenham outra figura, sempre foram duros e maus de domar, donde vem que ainda agora melhor se atreve um cão filhar um touro que um asno, porque o touro, se não acerta ferir com o corno , não Ihe faz mais mal, mas os asnos bravos mordiam muito com os dentes e magoavam muito mais com os coices. E desta maneira os pregadores que ladram com a palavra de Deus e doutrina do Evangelho mais asinha convertem e filham com ela um nobre e discreto que um baixo e rudo.
Já pelo tempo mais adiante, valeu o gado mais. Um Afonso Anes, da Ribeira Grande, tinha um vaqueiro, chamado Fernão Pousado, a que dava a guardar o gado de meias; o qual, querendo-se ir para Portugal, o partiu com seu amo e vendeu dele a Rui Garcia, pai de Roque Roiz, escrivão da Câmara da dita vila, vinte vacas prenhes e muito grandes, por vinte cruzados.
Um Gonçalo Fernandes, da Ribeira Grande, de quarenta porcas parideiras, de que havia muitos e grandes e gordos leitões, mandando vender à vila alguns a dez réis cada um, muitas vezes os tornavam a levar para casa, por não achar quem os comprasse. E porque a carne dos porcos do monte sabia a baga de louro e sanguinho, ainda que eram muito gordos, mandava cevar com trigo os que se haviam de comer em casa, sem Ihe dar a comer outra coisa, e com isto os engordavam. Mas, os filhos e netos dos que levavam esta vida e tinham este viço são agora nesta terra como o filho pródigo fora da casa de seu pai, que muitas vezes desejam de se fartar de pão dos farelos que agora os porcos comem, quanto mais do trigo que então comiam.
João d’Outeiro, da Ribeira Grande, tinha um curral de gado nas Feiteiras, e era tanto o leite, que de contínuo tinham na cafua os pastores cinco e seis cestos grandes de leite escorrido, porque deitavam feitos debaixo dos cestos e o leite em cima a escorrer, o qual davam a comer aos porcos e às galinhas; e, para ordenhar às vezes as vacas em um dia, deitavam o leite dos outros dias fora.
Um vizinho de Jorge Afonso, da Relva, tendo um monte grande de cevada em sua eira, por não ter granel em que a ter, passados alguns dias, estava por cima toda nascida e verde, onde acharam nela um pequeno buraco e, olhando por ele o que estava dentro, saiu um porco de monte, e após ele outro e outros, até quatro, tantos eram naquele tempo, que se vinham às eiras; e atentando a concavidade donde saíram e comiam e dormiam, dentro acharam a cevada muito sã, que parecia ser àquela hora debulhada, senão só a que estava nascida na côdea de cima, a qual com as raízes e rama entrapou e fez coberta como de palha, com que defendia a água da chuva à que debaixo estava. E veio depois tempo em que um porco de dois e três anos, cevado, de chiqueiro, valeu por grande preço um cruzado, que agora valerá três e quatro mil réis.
As lavouras e debulhas, ordinariamente, se faziam nesta ilha com gado vacum, mas quem o não podia haver, lavrava, gradava e debulhava com os asnos, éguas e cavalos, de que também havia muito grande quantidade; dos quais se acharam mais principalmente no pico dos Ginetes, pela qual razão, afora as outras já ditas, parece que Ihe ficou este nome.
Na era de mil e quinhentos e dezassete e dezoito valia o arrátel de carne de vaca a real e meio; e tanta era a fartura até ali em todos os moradores, que não havia quem comprasse coisa alguma, tudo quase tinham sem dinheiro. E carne de vaca e de porco, muitos de fartos a não comiam. E era tão gordo o gado que uma porca dava doze canadas de manteiga. Abasta que naqueles primeiros anos, quase todos, matando uma rês, a dependuravam e dela comiam, e como Ihe sentiam bafio, a deitavam aos cães e tornavam ao mato buscar outra; desta maneira, e não nos açougues, se proviam de carne. Era tanta abundância na terra que, havendo na Ribeira Grande um carniceiro, chamado João Garcia, esfolava as reses e deitava fora as cabeças e mais miúdos para quem os queria levar, sem haver quem os levasse; e uma Inês Gonçalves, viúva, foi a primeira que nesta ilha aproveitou os pés dos bois, por causa da graxa, que saía das canas dos tutanos delas, para a candeia; e o mais se dava aos cães.
Deitava o carniceiro então os miúdos fora, por valer a carne tão barata que dava a quatro ceitis o arrátel; agora muitos não têm miúdos para comprar os miúdos, quanto mais a carne.
Havendo aqui no tempo antigo pouca louça, coziam a carne em cabaças, e às vezes cozinhavam um carneiro e uma cabra, ou carne de vaca, cozendo-a e assando-a na pele, fazendo uma fogueira na terra, e depois de muito quente, faziam uma cova nela, e embrulhando a carne do gado que matavam na mesma pele, a metiam na cova, tornando-a a cobrir com a cinza e rescaldo da fogueira, e tornando a fazer outra fogueira em cima, assim se cozia.
O pescado de toda a sorte, chernes, peixe escolar, peixe galo, crongos, gatas, gorazes, pargos, garoupas, abróteas, sargos, salmonetes e outras sortes, lagostas, lagostins e cavacos, muito dele era tanto nesta terra, que do porto de Santa Eiria levavam seves cheias em carros carregados dele à vila da Ribeira Grande. E agora tudo é miséria, parece que até o mar, e não tão somente a terra, se fez estéril e nega o que soía a dar de si com grande abundância.
Depois de achada esta ilha. mais de cinco anos, não havia homem que tivesse hanzolo . Costumavam fazer uma isca grande de carne, amarrando a uma linha e atando a linha a uma vara de ginja, por não haver ainda canas nesta terra; desta maneira pescavam, e era tanto o peixe que então matavam, e mais dele sem hanzolo, que agora com ele.
Um Lopo Gonçalves engordava os porcos com o pescado que Ihe sobejava do muito que pescava na boca da ribeira da vila da Ribeira Grande, onde vivia.
Depois, era o pescado tanto e tão barato, que ninguém o queria comer salgado, do qual mandavam deitar fora as gamelas cheias, quando vinha outro fresco. Na era de mil e quinhentos e dezasseis, comprou um João Lourenço, na Maia, noventa gorazes por três vinténs, que agora vale cada um daquele tamanho, pelo menos, um vintém. Mas naquele tempo não havia dinheiro na terra.
Às vezes tomavam no princípio muito peixe de toda a sorte com pregos dobrados; e outras vezes sem pregos e sem hanzolos, senão somente com as mãos tomavam peixes que andavam à borda de água. E tomou-se já tanta sardinha, na Ponta Delgada, sendo vila, que o bacio, que cada um dos que iam comprar levava, Iho enchiam delas os pescadores por um real, e davam seis cavalas ao real; afora outras baratezas que seria longo processo de contar e, por não enfadar, as calo.
Um pargo grande e qualquer peixe gordo, só das ventrechas dele se aproveitavam, do mais não fazendo caso, como também o não faziam das miudezas de toda carne. Veio tempo que já não queriam comer em muitas casas carne de vaca, porque a tinham por ruim e grosseira, enfastiados dela, como os filhos de Israel do maná, no deserto, e não comiam senão galinhas, cordeiros, pombos, mélroas, pardelas e outras aves que agora direi.