Já que não posso bem saber a ordem dos tempos, sem a guardar contarei várias coisas que aconteceram nesta ilha.
No tempo que el-Rei D. Afonso trazia guerra com el-Rei D. Fernando de Castela e Aragão, vieram a estas ilhas duas naus de castelhanos com determinacão de roubarem e meterem a saco as povoações delas, e como Vila Franca do Campo era então a mais populosa e rica que em todas as ilhas havia, lançaram âncora em um ilhéu que está junto da dita vila, determinando de efectuarem seu desejo. Vendo os da vila as naus e temendo o que podia ser, se fortificaram, com valos e tranqueiras, o melhor que puderam, e não havendo bombardeiro, nem outra pessoa que atirasse com uma espera que tinham, um religioso de São Francisco, que ali se achou, a assestou às naus e Ihe pôs fogo, e foi tão bem guiado o pelouro e o religioso fez tão bem o ofício de bombardeiro que derribou a uma nau o masto do meio, matando-lhe muita gente.
Vendo os castelhanos tão grande destroço feito com um só pelouro, se alevantaram logo do dito ilhéu e foram para a ilha Terceira. Na dita vila não havia mais que aquela espera e aquele só pelouro, nem mais pólvora, a qual espera se perdeu quando correu a terra sobre Vila Franca e está hoje em dia debaixo dela, sem a tirarem por não saberem lugar certo onde estará.
Chegando os castelhanos ao porto de Angra, desembarcaram nele e roubaram a vila que a este tempo era povoação mui pequena e não estava tão forte e guarnecida, como agora está, com muita artilharia e fortalezas que tem. Depois que os castelhanos se foram com as naus carregadas de presas que nesta ilha e outras fizeram, edificaram os moradores da vila de Angra um castelo, que agora está situado em um outeiro que cai sobre a cidade, que para o tempo em que se fez era assás forte, movidos a fazê-lo por arrecearem a tornada dos castelhanos.
Por esta causa também se edificou a vila de S. Sebastião em um grande vale, junto de uma serra mui alta, afastada de um bom porto que tem, tendo-se os moradores dela por mais seguros, vivendo afastados da costa do mar.
O castelo da cidade de Angra, com novas de cossairos e guerras que recresceram, foi depois bem fortalecido para se recolherem as mulheres nele, quando houver algum acometimento de contrairos; pois veio tempo que os moradores destas ilhas, dantes tão seguros e quietos, tenham muitas vezes sobressaltos e rebates de piratas, com que vivem como em fronteira de imigos, como fronteiros de África.
Um João Dorta, das partes de Besteiros, por ser homem de respeito, o fizeram ouvidor no concelho daquele lugar, o qual ofício servindo ele contra sua vontade, ouvindo dizer da fertilidade desta ilha, se foi à cadeia e fez pergunta a cada um dos presos da causa de sua prisão, a qual sabida soltou a todos, ainda que alguns tivessem graves crimes. Feito isto, se veio para esta ilha, onde teve na Ribeirinha, da vila da Ribeira Grande, algumas terras, e na dita vila parte da rua, que se chama de João Dorta. E desbaratou depois tudo para se tornar, como tornou, estando já esquecido o que fez. Depois de ser lá, se tornou a vir e morrer nesta ilha, onde tinha um filho honrado e cavaleiro, feito em África, chamado Álvaro Dorta.
No tempo que se foi desta ilha, havia nela alvará de el-Rei D. Manuel que toda pessoa, que desse fazenda ou mercadoria fiada, ficasse em vontade e querer do devedor pagar-lhe a dívida ou não. Sendo o alvará apregoado e vindo a notícia de todos, querendo-se embarcar o dito João Dorta, mandou um porteiro apregoar que toda pessoa, a que ele devesse, viesse aquele dia à tarde à praça e ali Ihe faria pagamento do que Ihe devia. E vindo ele com um gaiteiro de gaita de fole, como então se costumava, mandou pôr mesa e cadeiras na praça e assentar e tanger o gaiteiro, onde vieram os accredores , um dos quais era Pantaleão Fogaça, mercador portalês e rico, e o dito João D’Orta disse a todos que estava ali com sua pessoa e dinheiro para Ihes pagar, com tal condição que cada um havia de bailar ao som da gaita.
Aceitaram todos a condição, senão Pantaleão Fogaça, dizendo que pela vida o não faria, quanto mais por dinheiro. Mas, vendo a João Dorta fazer pagamento aos mais e não a ele, botou a capa fora dos ombros e pôs-se no terreiro a saltar e balhar, ainda que o sabia mal fazer, e com isto foi satisfeito e pago da dívida.
É esta ilha de São Miguel de tão bons ares e sadia, que vivem os moradores muito tempo nela, e muitos, assi homens, como mulheres, chegaram a cem anos e passaram, que por serem muitos não nomeio todos, por escusar prolixidade. Somente direi alguns, antre os quais foi uma Maria Anes, mulher de um João Moreno, bisavô do chançarel Belchior Gonçalves, que viveu cento e oito anos e tinha muitos filhos, netos, bisnetos e tresnetos . Quando faleceu, se acharam à sua cabeceira trinta pessoas que procederam dela, a cada um dos quais deitou sua bênção, estando em todo seu siso, aconselhando-os a todos que fossem bons e acabando de deitar a benção ao derradeiro tresneto , alevantou as mãos ao Céu e deu alma a Deus.
Era velha muito virtuosa e devota, de muitas esmolas; nunca foi doente, mas de velhice morreu.
Também houve na vila da Ribeira Grande uma mulher que veio viúva do Algarve, chamada Inês Gonçalves, a qual trazia uma filha, por nome Catarina Gonçalves, que casou aqui com um Fernão d’Álvares, o Pequeno, medidor de terras, com o qual esteve sempre a velha Inês Gonçalves até falecer seu genro, e depois se passou a casa de Salvador Fernandes, seu neto.
Quando morreu, era de cento e cinco anos; depois que entrou nos cento, tudo fazia como menina, chamando à filha mãe, e, não tendo dentes, não podia comer senão papas, dizendo: mãe, papa, papa, e engatinhava pela casa como uma criança, nem fazia mais soma que ela.
Vê-la era ver uma coisa sem figura; tinha os olhos e boca metidos na caveira, que parecia a mesma morte. E Catarina Gonçalves, filha desta velha, também era perto de cem anos quando faleceu, estando ambas as velhas, mãe e filha, em casa do neto de uma e filho da outra, que era coisa de espanto vê-las ambas.
Na mesma vila, houve uma mulher, filha de um João Franco, chamada Bartoleza Franca, que viveu cento e dez anos na Ribeira Seca, a qual casou com João Gomes, de que ficou viúva com uma filha, por nome Constança Franca, que casou com Mem Lobo, da qual houve uma filha, chamada Hierónima de Matos, que casou com Jorge Nunes, das ilhas de baixo; do qual Ihe ficou outra filha, a que não sei o nome, que houve, sendo moça, um filho e uma filha de um homem estranho. E todas cinco viúvas, mãe, filha, neta, bisneta e tresneta, andavam em demandas com pessoas poderosas sobre terras que João Franco, pai de Bartoleza Franca tinha vendidas baratas, andando quatro por seu pé e a tresneta de Bartoleza Franca no colo e pela mão, pedindo pelas portas para sustentarem as demandas. E Bartoleza Franca era muito rija e brava, de grandes spritos , sem trazer bordão, sendo de cento e dez anos, com seu juízo inteiro, vista e dentes. A filha, Constança Franca, andava detrás de sua mãe, com bordão, parecendo mais velha. E porque saíram algumas sentenças contra elas, se foram todas cinco com apelação para Lisboa, onde acabaram seus dias. Andavam todas em corpo, e a mãe e a filha, que eram mais velhas, traziam sempre os braços encruzados um sobre o outro; vê-las todas juntas, da maneira que andavam, era coisa poucas vezes vista, como esta, ou nenhuma.
Uma Catarina Pires, mulher de Pero Dias Solteiro, morador na Ribeira Seca, termo da vila da Ribeira Grande, faleceu de cento e nove anos, de velhice, assentada em uma baixa cadeira de pau, sem dentes, com os olhos muito sumidos e encovados, parecendo um bugio ou monstro; chorava como menina, chamava à nora mãe e não comia senão papas.
Houve também na vila da Ribeira Grande um António Martins, chamado Malaca, por ter ido a esta cidade, que faleceu de mais de cem anos e era tão disforme e desfigurado, que por nova invenção o puseram à janela, passando a procissão, um dia de Corpus Christi.
Uma Catarina Lopes, mulher de Diogo Afonso, das Grotas Fundas, faleceu de cento e cinco anos, com todo seu siso.
Rui Tavares viveu na vila da Ribeira Grande, casado, com sua mulher, Leonor Afonso, sessenta e seis anos e faleceu muito velho. Outros tantos viveu casado João Tavares, seu filho, com sua mulher Luzia Gonçalves, e faleceram, sendo ele de oitenta e oito anos e ela de noventa e dois, em uma mesma semana. Um preto, Adão Matoso, faleceu de cem anos. E um velho pombeiro, sendo de cem anos, ia da Grota de João Bom a Vila Franca em um dia, que pode ser caminho de oito léguas.
João Álvares, da vila da Lagoa, faleceu de noventa anos; sua mulher, Inês Anes, de cento e dez; e sua sogra, Beatriz Fernandes, de cento e vinte e dois.
Um Pedro Afonso, da Barba, porque a tinha muito comprida, faleceu de cento e vinte anos; e um chamado Lopo, de cem anos, segava ainda no verão; e um Fernão Roiz Culão, serrador, passava de cem anos e serrou o dia que faleceu, sendo tão velho; e um Gonçalo Afonso, Corpo-chão, porque ninguém o viu dormir em cama, serrador e morador em Porto Formoso, viveu perto de cem anos, o qual, serrando, fazia a cama nos farelos e ali dormia e pousava, porque não tinha outra casa. E uma Branca Roiz faleceu de mais de cem anos, na vila da Ribeira Grande.
Uma Maria Gonçalves, mulher que foi de Diogo Pires, o Feste, chamado assim porque quando veio de Portugal e queria matar porco em sua casa, chamava ao debulho feste, dizendo que havia de fazer um feste, teve do dito seu marido quatro filhas e um filho, das quais veio a tanta multiplicação que, quando faleceu, tinha de netos, bisnetos e trisnetos noventa e sete, todos vivos ao tempo de seu falecimento, e além destes eram já falecidos cinco ou seis; e depois dela falecida, a dois dias, Ihe nasceu um trisneto. E faziam por todos, mortos e vivos, cento e dois; e era, quando faleceu, de noventa anos.
Maria Gonçalves, mulher de Fernão Gonçalves, o amo do Capitão Rui Gonçalves, pai de Manuel da Câmara, sogro de Sebastião Velho Cabral, que morava na cidade da Ponta Delgada, sendo ainda vila, tendo um filho seu, que se chamava Luís Galvão, em uma dúvida que teve, morto a um seu cunhado, o qual Luís Galvão morava um quarto de légua da cidade da Ponta Delgada, em uma quinta que ele tinha, pegada com as casas de Mendo de Vasconcelos, sentindo sua mãe Maria Gonçalves que a justiça o queria ir prender e movendo-se grande parte da vila em sua ajuda, não se fiando de ninguém para mandar aviso a seu filho, nem querendo que alguém se culpasse por ele, selou ela mesmo um cavalo, tomando uma lança e adarga; cavalgando nele, se foi detrás da justiça e com muita pressa, como viu geito para isso, pôs as pernas ao cavalo e chegando a casa do dito filho, deu uma contoada na porta, dizendo: alevantai-vos, filho, que vos vêm prender. O qual se alevantou logo em camisa, e como estava na cama, e cavalgando no cavalo em que a mãe ia, se pôs em salvo, dando-lhe a mãe a lança e adarga nas mãos. E, espantando-se o corregedor de quem Ihe poderia dar aviso, Ihe disse ela que não suspeitasse em ninguém, pois ela Iho dera, porque, quando passou pela justiça, não entenderem que era mulher, cuidando que era algum cavaleiro; a qual faleceu de cem anos, parecendo que não falecia de velhice.
Uma nobre e virtuosa mulher, chamada Constança Barrosa, casada com um Manuel Velho Cabral, parente dos Capitães da ilha de Santa Maria, morador na vila da Alagoa, desta ilha de S. Miguel, e meirinho do eclesiástico nela, prendendo por um grave feito crime, ou dois, Fernão Gomes, vereador na mesma vila aquele ano, em nome do juiz, por ser o juiz absente, em uma noite, a um Marçal Barroso, filho único da dita Constança Barrosa, não estando seu pai Manuel Velho na vila, pediu ela o filho ao vereador por algum tempo, que ela o mandaria à cadeia, e dando-lhe ele, ela o entregou a um homem que o levasse; e levando-o, por conselho que Ihe deram de fora, fugiu ao homem que o levava, cuidando que para isso o pediria sua mãe à justica, e se acolheu à igreja de Santa Cruz, parróquia da mesma vila. Sabendo isto sua mãe, Constança Barrosa, ainda que era longe de sua casa, cobrindo logo seu manto, se foi com dois vizinhos honrados à igreja onde o filho estava e, tomando-o pelo braço, o levou, com o homem a que ele fugiu, à cadeia, dizendo que o prendessem e amarrassem muito bem e que se ele fizera o mal, que ele o pagasse e não outrem por ele. Vindo o marido, vendo o que a mulher fez, disse que por aquilo que fizera Ihe perdoara qualquer feito que ela Ihe pudera fazer.
O mesmo Manuel Velho Cabral, indo da vila da Alagoa, a cavalo, para a cidade da Ponta Delgada, achou sete ou oito homens que levavam preso um Pedro Álvares, que fora carcereiro na mesma cidade, e Ihe haviam fugido perto de cinquenta presos, muitos deles por casos de mortes de homens e feitos graves. Ele pediu o dito preso aos que o levavam; dando- lho, o pôs nas ancas do cavalo e passando por uma freguesia de S. Roque, onde estavam dizendo missa, a foram ambos ouvir. Acabada a missa, tornando a cavalgar, disse Pedro Álvares ao dito Manuel Velho: pôsto o cepo de uma banda do pescoço e o cutelo da outra, corte por onde quiser e cumpra-se a palavra; e deixou-se levar à cadeia da Ponta Delgada, onde esteve preso por vinte e três meses, ao cabo dos quais se acabou de livrar. Não sei se foi maior o benefício e liberalidade de Manuel Velho, arriscando-se pelo preso, se o agradecimento do preso, cumprindo sua palavra.
Assim, em Lisboa, andando um tangendo a campainha pela cidade, se chegou um homem a ele e Ihe perguntou quem era o que havia de padecer aquele dia; o que tangia a campainha Ihe disse que um Fuão, que era o mesmo que perguntava, sem o outro o conhecer, porque andava solto com licença do carcereiro. Ouvindo isto, se foi logo meter na cadeia ou no Limoeiro. Parece que por esta fidelidade que guardou ao carcereiro o livrou Nosso Senhor, que lá teve modo com que, ainda que o levaram a enforcar, não morreu, porque não faltou quem Ihe desse remédio de Ihe pôrem o laço da corda por debaixo dos braços, com que ainda que parecia ficar enforcado, o não era pelo pescoço, senão pelos braços, e dali escapou com vida, por ser amigo de guardar sua palavra e verdade. Tanta força tem a verdade e a fidelidade, que pode livrar aos amigos dela de muitos e graves perigos, até da morte, como livrou a este.
Eram os homens tão ricos nesta terra, que não estimavam dar grossas esmolas do que Deus Ihe dava. Na era de mil e quinhentos e quarenta, sendo elegido na Casa da Misericórdia da vila da Ponta Delgada um Gaspar Homem da Costa para tirar esmola de gado vacaril para a mesma Casa, tirou por rol cento e quinze reses em toda esta ilha. E dali a um ano as tornava arrecadar, ajuntar e ferrar; e achando mortas doze, trouxe para a casa cento e três, sc., cento e duas fêmeas e um macho. Buscando-lhe pastor vaqueiro que as guardasse, vieram aquele primeiro ano sessenta vacas paridas; depois, tendo os irmãos da Casa por melhor conselho ser mais proveito vendê-las e comprar renda para o Sprital, compraram com o dinheiro delas seis ou sete moios de renda.
Na era de mil e quinhentos e quarenta, ou no mês de Março de quarenta e um, vindo o corregedor Francisco Toscano da ilha de Santa Maria com toda sua alçada para esta ilha de S.
Miguel, em uma barca de um João Bravo, veio ter às Prainhas, que estão no Morro desta ilha, da vila do Nordeste, por não poderem tomar porto em outra parte. E ali saiu em terra o dito corregedor, com toda a mais gente. E não ficando na barca mais que João Bravo, deu-lhe tanto vento oeste e es-noroeste, que se desamarrou, esgarrando tanto, que foi ter em onze dias a Safim, não levando dentro mais que o dito João Bravo, o qual comia abóboras e bebia água rosada, que traziam os que na dita barca vinham. E afirmava que, quando dormia, Ihe navegavam e governavam a barca; a qual mandou o capitão de Safim, com aviso, ao feitor de el- Rei, que estava em Andaluzia. E depois foram desta ilha a Safim buscar o fato e dinheiro do corregedor e dos mais letrados e escrivães da sua correição.
Vindo do Reino António Juzarte de Melo, com sua mulher, D. Guiomar de Sá, em uma nau, com tormenta caiu um homem ao mar, o qual não puderam tomar, e vindo ter dali a certos dias a esta ilha, acharam já o dito homem vivo e descansado, porque, passando outro navio pela mesma esteira, o tomou e trouxe primeiro a terra.
Uma terça-feira, dezassete dias de Fevereiro do ano de mil e quinhentos e sessenta e oito, estando sobre amarra, no porto dos Carneiros, da vila da Alagoa desta ilha, uma caravela de um Brás Gonçalves, morador na Vila Franca do Campo, carregando de trigo para a ilha da Madeira, Ihe deu um furacão de vento nor-nordeste tão grande, sendo três ou quatro horas de noite e tendo já dentro trinta moios de trigo, quatro homens e três moços, que quebrou as amarras e atravessou, ao qual tempo os homens e moços andavam debaixo da coberta arrumando caixas e fato para Ihe o trigo não correr; e, como atravessou, sossobrou logo e o mar lançou debaixo fora, pelas escotilhas, os quatro homens e três moços, os que se acolheram sobre o costado da dita caravela, que o muito e tempestuoso vento que fazia ia levando para o pego; e, vindo um mar grande, levou de cima do costado um dos homens, sem os outros o verem mais, os quais ficaram assim até pela manhã, que Ihes deu outro mar tamanho que os levou ao mar, onde se afogaram dois homens e os três moços, e o navio se virou sem os mastros, somente o grande ficou fora e atravessado sobre o convés, ficando só um homem vivo, que se acolheu a nado ao chapitéu do navio e nele se amarrou com uma das cordas da enxárcia da mezena e andou assim no dito navio oito dias, até dia de S. Matias, sem comer, nem beber, nem dormir, vindo nele alagado ter sobre o lugar da Relva, termo da cidade da Ponta Delgada, mais de duas léguas do porto onde sossobrou, e dali o foram dizer à cidade, dizendo alguns que era baleia e outros, por causa do mastro que aparecia, afirmando ser navio. Foram lá apenados três batéis e dali o desamarraram e levaram consigo em um dos batéis; os quais apartados pouco espaço do navio, deu logo à costa, onde com grande estrondo se quebrou. O qual homem se chamava Gaspar Afonso, natural de Vila Franca do Campo desta ilha, e saiu tão esforçado em terra que a pé foi em romaria à ermida da Madre de Deus, onde deixou um pedaço de corda, com que vinha atado no dito navio.
Na era de mil e quinhentos e setenta e sete anos, em um domingo à tarde, um Jorge Luís e sua mulher Águeda Nunes, moradores na vila da Ribeira Grande, ambos faleceram em um mesmo dia e hora, de uma mesma doença de câmaras, e no mesmo dia que faleceram, foram ungidos e a ambos fizeram o ofício da agonia. E foram juntamente levados a enterrar no adro da igreja de Nossa Senhora da Estrela, onde eram fregueses, ele na tumba, diante, escudeirando morto a mulher morta, que ia detrás em um leito; e foram enterrados em duas covas, um junto do outro.
Uma mulher, criada de Constança Fernandes, parteira da cidade da Ponta Delgada, pariu de um ventre três filhos machos, que se baptizaram todos e viveram alguns meses.
Outra mulher honrada, de um móvito, moveu sete crianças, que todas se enxergavam de machos e fêmeas.
Outra mulher nobre moveu sete postas de carne, divididas, que eram ou houveram de ser sete crianças. Outras pariram, cada uma, três crianças vivas, que foram baptizadas.