Em Vila Franca do Campo, que de nobre precedia Na ilha de S.Miguel a quantas Vilas havia, Era de mil e quinhentos e vinte e dois que corria, Vinte e dois dias de Octubro, quatro de lua seria; Era uma quarta-feira, quarta-feira, triste dia, Em a noite mais serena que o céu fazer podia, Inda que corre levante, nada dele se sentia; Não corre bafo de vento, nem folha de árvore bulia; Estrelado estava o céu, nuve não o escurecia, Ante manhã duas horas, inda não amanhecia, Começou tremer a terra mais que outras vezes tremia, E a dar fortes balanços, parecendo maresia; Não treme de baixo a cima, mas para os lados tremia; Nem abre boca nenhuma o esprito que isto fazia; Sacudiu somente a terra dos lados em que feria; Sacode a terra dos ombros, com o peso que sentia, O grão gigante Almourol que deitado ali jazia.
Movem-se todas as coisas, quando seu corpo movia, Estrondos que faz a terra, roncos são do que dormia; Que de ser velho cansado ronca, quando adormecia.
Correu a terra de um monte que da alta serra pendia, E com ímpeto furioso sobre a vila se estendia.
Ali começa dar gritos a gente que se afligia, Deles chamavam por Deus, deles por Santa Maria; Quando chegou a manhã, nenhum deles parecia, Todos cobertos de terra e de grande penedia, Que correu daquela serra que sobre a vila jazia.
Essa gente que escapara, como pasmada morria, Outra que viva ficava, vivendo assim não vivia.
Aqui chega Frei Afonso, e com a tocha que trazia, Da ordem de S. Domingos de Toledo, reluzia, Esse padre glorioso que da glória parecia; Para consolar o povo, assim falava e dizia: Confessai-vos, irmãos meus, enquanto nos dura o dia; Rezai todos o rosairo da Virgem Santa Maria; Edificai-lhe uma casa, indo a ela em romaria; Tomai-a por valedora que ela por vós rogaria; Tende nela confiança, que certo vos valeria.
Não acaba de falar, quando a casa se fazia; Uns acarretavam pedra, outros madeira, a porfia; Trabalham moços e velhos, pessoas de grã valia; Até as nobres mulheres serviam sem fantesia ; Trazem telha dos telhados que no arrabalde havia; Como formigas ligeiras, andam a quem mais faria, Tanto que em poucos dias a ermida já servia; Já celebram missas nela, já lá vão em romaria.
O Capitão Rui Gonçalves, que da Câmara se dizia, Como soube em sua quinta desta terra que corria, Manda selar seu cavalo, a espora fita corria, Por socorrer a seu povo que estava nesta agonia.
E, chegando a Vila Franca do Campo, campo só via, Campo em que esteve Troia, que soberba ser soía.
De mui populosas casas nem uma só parecia; Seus paços postos por terra, terra que neles cobria Um seu filho e duas filhas a que ele muito queria; Também um filho bastardo, que não tinha bastardia, E uma sua irmã, chamada D. Melícia.
Dissimula sua dor, inda que muito a sentia, Seus olhos se arrasam de água, por mais que ele se encobria; Com coração esforçado de senhor de grã valia, Esforça todo seu povo que de pasmo falecia.
Manda logo cavar gente onde antes estar soía O Santíssimo Sacramento, cuidando que se acharia; Vendo quanto Deus nos ama, quão grande bem nos queria, Que, querendo dar castigo, sobre si o tomaria, Em todos nossos trabalhos companhia nos faria, Dos açoites que nos dava também participaria, Sendo uma vez sepultado, outra se sepultaria, Por estranhar nossas culpas a si mesmo enterraria.
Mas, tão mal cheiravam elas que Deus dali se desvia, Pois que, cavando a grã pressa, ali já não aparecia.
A arca acham no altar, mas sem ele está vasia.
Não sabem se foi ao céu, se na terra ficaria, Nalgum sacrário metido, para o qual se mudaria.
Alguns sinais viram disto a gente que ali acudia, Vendo daquele lugar uma nuve que subia, Ouvindo muitos cantares de suave melodia, Suspeitando ser dos Anjos alguma grã companhia, Que da terra para os céus a Deus acompanharia, Ou por mãos angelicais noutra vila se poria.
Mas, quando não foi achado, um grande grito se erguia, Daquela grande companha que misericórdia pedia; Vendo uma tal maravilha, com gritos ninguém se ouvia; Daquele povo tão triste, quem então não gritaria? Batendo todos nos peitos, quem peitos não quebraria, Em tempo de tanta angústia, pois deles seu Deus fugia, Para Ihe pedir remédio naquela triste agonia; Já não sentem perder nada, só não ver Deus se sentia; Este castigo mais choram, este só mais Ihe doía.
Vendo apartar-se Deus deles quem não esmoreceria? Depois cavam em outras partes por ver se alguém viveria.
Acham mortos pelas ruas, que a terra afogado havia.
Outros acham em seus leitos sem temor do que viria, Cuidando dormir de noite, mas também dormem de dia Sono de uma noite só para sempre duraria.
Alguns vivos se acharam, pouco número seria; Mas quem quer que os vira vivos por mortos os julgaria; Tinham todos cor de terra, que toda a vila cobria Mas não cobre uma criança que sós três anos havia, A qual acharam folgando sobre a tábua em que jazia.
Nove dias são passados depois de morta a alegria Quando com grã diligência a gente cavando ia; Coisa de grande temor quem contar a ousaria? Indo o povo em procissão que com choro se fazia, Ouvida foi uma voz do outro mundo parecia; Mui fraco vem o tom dela, porque do centro saía; Muitos ouvem o som confuso mas ninguém o entendia; Ali vem o Capitão que a tudo sempre acudia; Manda cavar a grã pressa onde aquele tom se ouvia, Entendendo que era gente que soterrada gemia; Depois de muito cavarem uma trave descobria, Com uma ponta para o chão, que encostada assim jazia.
Fazem logo uma abertura em um vão que ali havia, Vão era, que fora lógea onde sobrado caía; Saem por ela três vivos, mortos cada um parecia, Com as mãos alevantadas, como cada um saía, Geolhos postos no chão, a seu Deus graças rendia, Pelo livrar de tal morte, que vivendo ali sofria, Onde estavam mais confusos não sabendo o que seria, Se era toda a gente morta ou se o mundo se fundia; Não sabem quando amanhece, se um galo Iho não dizia, Que cantava às horas certas que sempre cantar soía; Mantinham-se com biscoito que para a viagem havia, Que queriam navegar, para onde o sol saía, Onde tinham sua terra, mas a terra Iho impedia, Que, correndo aquela noite, ali todos os prendia.
Bebem água que do lodo gota e gota Ihe caía, E também de uma fundagem que vinagre se fazia; Assaz de morte passava quem escuro ali vivia.
Contavam isto chorando, com choro o povo os ouvia; Tantas lágrimas choravam que a terra se humedecia.
Já não choram seus parentes mortos, que a terra cobria; Muito mais choram os vivos, que mais morre o que vivia.
Não choram amigos mortos, nada disto Ihe doía, Pois sabem que tarde ou cedo qualquer dos vivos morria; Choram não saber da morte em que estado os tomaria, E mais choram a si mesmos pelo que inda se temia.
Choram seus próprios pecados de que o castigo nascia, Que quem pranta culpas graves graves castigos colhia.
Era tudo ali um grito que ao céu Empyrio subia, Pedem misericórdia a Deus, cada um assim dizia: Senhor Deus, misericórdia, que eu, meu Deus, não merecia.
Também tiraram um morto que entre eles ali jazia, Que faleceu às escuras, entre a viva companhia, A quem dava grão trabalho pelo muito que fedia; O qual depois de enterrado, como a outros se fazia, Vão todos em procissão a uma ermida que havia, Da Virgem Santa Catarina, que de parróquia servia.
Dão todos graças a Deus, como cada um podia, Pelos livrar da prisão da terra que os cobria.
Cinco mil foram os mortos que em toda a ilha haveria, Porque afirmam antigos tantos morreram tal dia.
Outros contam nesta conta os que a peste feria, Logo nos anos seguintes em que entre os vivos ardia; O que parece mais certo que então tantos não havia.
Alguns morrem nos lugares debaixo de casaria, Que com o tremor da terra em todas partes caía.
Morreram religiosos, morreu muita cleresia, Morre muita gente nobre, que em toda a ilha vivia.
Qualquer rico e poderoso sem a riqueza partia, Que por ventura ficava a quem não Iha agradecia.
Cuidando gozá-la muito, no melhor se despedia; Não a logrou muitos anos nem jamais a lograria; Se fez alguns bens com ela, isto só Ihe valeria.
Morreram altos e baixos, sem Ihe valer fidalguia; Morrem grandes e pequenos, todos a morte ofendia; Mas, mais morrem em Vila Franca, onde mais povo havia, quase todos ali morrem, senão algum que fugia; Mas são poucos os que fogem porque cada um dormia; Poucos são os que escaparam debaixo da terra fria; E alguns no arrabalde, além da água que corria; Outros escapam nas quintas porque Deus assim queria.
Cuidando ser acabado o mal, que mais não seria, As nove horas são passadas, depois que já o sol saía, Eis torna a tremer a terra mais que dantes parecia; Corre na Ponta da Garça, e na Maia o mesmo dia, Terra que matou a muitos deste número e contia , Contando moços pequenos de que contar não sabia.
Lembra-me das dores grandes, das pequenas me esquecia. Onde houve máguas sem conto, quem contar as poderia?