Depois da morte do Capitão Manuel da Câmara e de D. Joana de Mendonça, sua mulher, Ihe não ficou filha solteira por dar estado de vida, senão D. Hierónyma de Mendonça, que era a segunda filha que tiveram, porque a primeira foi D. Filipa de Mendonça, que foi mulher de D. Fernando de Castro, capitão e alcaide-mor de Évora e conde que ora é de Basto; e logo atrás de D. Hierónyma de Mendonça, que foi a segunda filha, nasceu D. Rui Gonçalves da Câmara, morgado desta ilha, a quem el-Rei D. Filipe, nosso Senhor, fez conde de Vila Franca, o qual casou com a senhora D. Joana de Gusmão, filha do conde do Redondo, de que se atrás faz menção; depois do qual nasceu D. Margarida, que depois foi freira da Madre de Deus; e logo nasceu D. Joana de Mendonça, que foi a quinta filha, que depois foi freira no mosteiro de Santa Clara, de Coimbra; depois da qual nasceu D. Isabel, que foi a quinta filha, que depois foi freira no mosteiro de Jesus de Setúvel, a quem por outro nome chamaram soror Isabel do Espírito Santo; de cuja vida e costumes fica já dito atrás, de todas as religiosas.
Somente fica por dizer de D. Hierónyma de Mendonça, ou, por melhor dizer, das Chagas, que assim se mandava assentar pelos livros das confrarias de que era confrade ou irmã, fazendo que a escrevessem por Hierónyma das Chagas.
Esta senhora, sendo a segunda filha, ficou por cabeça de casal no falecimento de Manuel da Câmara, seu pai, por estar presente a seu falecimento, em absência do Conde, seu irmão, que ao tal tempo residia nesta sua Capitania, em lugar do dito seu pai, por mandado de el-Rei D. Sebastião que está em glória. A qual senhora, vendo primeiro a morte de sua mãe, viu daí a pouco mais de dois anos a de seu pai, e ela solteira, que não devia ser pequena dor; mas, como era em extremo religiosa e o fora sempre na vida e costumes, não aceitou casá-la seu pai e mãe, em sua vida, deles, por entender ser já um pouco fora de tempo de que seu pai ficou muito desgostoso , quando ela se desenganou, havendo muitos senhores, assim de título, como morgados, que desejavam casar com ela. Entre muitas razões mui urgentes que, para desenganar ao Capitão Manuel da Câmara, seu pai, houve a que Ihe não falasse em casar, foi dizer-lhe que já que suas irmãs eram todas freiras pobres, que queria ser freira rica para Ihe acudir a suas necessidades. E na verdade tinha muita razão, porque quanto ao ser freira não há dúvida que em nenhuma coisa Ihe podiam fazer diferença as religiosas professas, senão em não trazer véu preto, porque em todo o mais, jejuns, abstinências, disciplina, cilício, oração, confissões, comunhões, caridade e trajo, sempre mostrou perfeitamente cumprir com a obrigação de religiosa, rezando todos os dias o ofício divino; e todo o tempo que viveu depois da morte de sua mãe, como de seu pai, teve sempre muito particular cuidado de todas suas irmãs freiras, provendo-as do necessário.
Falecendo seu pai , ficou esta senhora em cabeça de casal até a chegada do Conde seu irmão, ao Reino, porque estava nesta ilha ao tempo que seu pai faleceu. Feitas as partilhas, ficou a dita senhora com quarenta mil cruzados de legítima, entrando outras coisas que ajudaram a fazer esta cópia, porque de tantos testou, como se poderá ver de seu testamento; e, estando de posse de sua legítima, viveu três anos e meio, pouco mais ou menos, depois da morte de seu pai, sendo nosso Senhor servido de a levar para si, como ela fosse muito enferma do fígado, que Ihe causava muitas quenturas, por cujo respeito era costumada a ser sangrada muitas vezes. Estando uma vez muito doente, fez testamento com um frade de Nossa Senhora do Monte do Carmo, e demais de ser devota desta ordem, porque assim o era de todas as ordens. Foi este frade causa para naquele testamento deixar tudo o que tinha ao convento da dita ordem, com condição de a enterrarem na capela-mor do dito mosteiro, com uma obrigação pequena, sem se lembrar das obrigações que tinha particulares a criadas suas e de seu pai e mãe. Mas, como Nosso Senhor seja verdadeiro juiz, lembrado de sua muita virtude, Ihe deu saúde daquela doença e viveu depois disso pouco mais de um ano, no fim do qual tornou a adoecer e sendo necessário tomar uma sangria, foram chamar o barbeiro que havia em costume sangrá-la; mas, como os segredos de Deus sejam incógnitos aos homens, não bastou a este oficial ser único em seu ofício, e assim se deve entender que havia de ser, porque qualquer pessoa, de bem e honrada trabalha, quando tem necessidade para bem de sua saúde buscar o melhor médico, e daí para baixo todos os melhores mestres que para remédio de suas necessidades há. Pois, se isto é assim, claro fica qual este barbeiro podia ser e mais sendo o que sempre a costumava sangrar.
Finalmente que este próprio, no pique que Ihe deu, Ihe cortou a artéria e de improviso Ihe inchou o braço em demasia, sem Ihe poder tomar o sangue, fazendo-lhe muitos remédios, sendo para isso juntos todos os médicos da cidade de Lisboa. Vendo quão pouco Ihe aproveitavam os remédios humanos e desenganada deles, como pessoa prudente e amiga de seu Deus, acudiu ao mais necessário, que era a sua alma, como jóia mais principal, mandando logo chamar um frade de S. Francisco para a confessar. Sendo dado o recado, veio um teólogo, por nome frei Anjo, certo que tanto caso se pode fazer da vinda deste frade como do seu nome, porque na real verdade se pode afirmar por muito maior mercê de Deus a vinda deste, ornado de um tão formoso nome, em tal tempo, que não de Nosso Senhor livrar esta senhora de outro repique da morte, de que esteve tão abarbada dantes, como atrás fiz menção; porque sem nenhuma falta, se naquele tempo falecera, morria como mulher da sua qualidade, vida e costumes, por deixar o seu a carrega sarrada , com um fumo de vaidade, ao mosteiro do Carmo de Lisboa, porque a enterrassem na capela-mor, coisa que não podia ser, por ser a dita capela do grande D. Nunalvres Pereira, deixando a capela de seu pai e mãe e sua sepultura, que está em a Igreja de S. Francisco em Lisboa, onde já estavam enterrados, sendo a capela de tanta estima e valor que do seu tamanho é uma das notáveis coisas de Portugal e Castela; demais, de se não lembrar em seu testamento das muitas obrigações de criados e criadas que serviram a ela e a seu pai e mãe; afora ter sobrinhos e sobrinhas, que como nem todos podem ser morgados, segundo quem são, por muito que tenham, não pode ser tanto que se possam sustentar conforme a qualidade de suas pessoas, por onde se podem ter por pobres. Demais, de haver outras muitas coisas desta sorte que afeiavam o outro primeiro testamento, não se esperando dela isso por sua muita virtude.
Mas, como Nosso Senhor se lembra dos seus servos, movido de sua divina misericórdia, guardou esta senhora para esta hora, donde guiada por este Frei Anjo, da ordem do Seráfico Padre São Francisco, de quem ela sempre fora muito devota, foi confessada e Ihe fez outro novo testamento, em que houve por quebrado o outro. E, fora ela de todo o primeiro proposto, ordenou que seu corpo fosse enterrado na capela de seu pai que estava no mosteiro de S.
Francisco, de Lisboa, junta à capela-mor, à parte direita, e onde já seu pai e mãe estavam, e ela no hábito da dita ordem, como se costuma enterrar os religiosos dela. E que na dita capela de seu pai se dissessem cinco missas cada dia, enquanto o mundo durasse. E mandou que haveria cinco merceeiras que logo nomeou criadas suas, mulheres muito honradas, entre as quais meteu uma mulher fidalga, pobre, sua amiga, que fossem estar presentes às cinco missas que naquela capela se haviam de dizer cada dia e da mesma maneira iriam outra vez às horas de véspera e rezar pelas almas de seu pai e mãe e sua, de maneira que haviam de ir duas vezes cada dia, para o qual Ihe deixava de ordenado a cada uma vinte e cinco mil réis, além de pagar a cada uma destas seus serviços, conforme a seus merecimentos, sem antrevir avareza nem o descuido que dantes tivera. O mesmo cuidado teve dos homens e moços que a serviram e a cada um mandou pagar seus serviços, com coisa logo limitada, conformando-se com o tempo e o merecimento das pessoas. Deixou a uma criada sua, donzela, filha de sua colaça, mil cruzados em dinheiro para seu casamento, além de muitas coisas do móvel de sua casa que valeriam duzentos cruzados, repartindo o mais como Ihe pareceu por suas criadas. E para cumprimento destas coisas e das esmolas que assinalou para o convento de São Francisco pelos cinco anais que se Ihe haviam de dizer, com os mais encarregos de seu testamento, instituiu por seu testamenteiro a casa da Santa Misericórdia de Lisboa, para a qual aplicou todo o remanescente de sua fazenda cumprindo primeiro os legados, o que ficasse para a dita Casa e que os provedores mandassem cumprir seus legados, e morrendo algumas das merceeiras, eles provessem as pessoas que Ihe bem parecessem, com tal que fossem honradas e virtuosas, e que seus ordenados se Ihe pagassem bem pagos, aos quartéis do ano. Feito isto, com outras contas mais particulares que em seu testamento se contêm, houve Nosso Senhor por seu serviço levá-la desta vida, conforme com a vontade de Deus; que certo foi a morte desta senhora um vivo retrato e espelho para os que cá ficamos, pois tendo ao Conde, seu irmão, e tios, irmãos de sua mãe, e a seu cunhado, o conde de Basto, D. Fernando de Castro, que era muito seu amigo, pessoas cada uma delas para se poderem confiar deles todas as coisas desta qualidade, ela, sabendo bem esta verdade de todos estes senhores, não foi isso parte para deixar o certo pelo duvidoso, tomando a seu Deus por testamenteiro de sua alma, como esposo seu que era, e se não fôra assim não tivéramos que louvar a este Frei Anjo, autor de seu testamento, que bem fez nesta parte o ofício de Anjo, que é a coisa de que se deve fazer mais caso que de todo o mais, por ser obra para isso.