No tempo que governava esta ilha o ilustre Capitão Manuel da Câmara, na era de mil e quinhentos e trinta e seis, pouco mais ou menos, Pero Roiz da Câmara e sua mulher, D. Margarida de Betencor, fundaram o mosteiro de Jesus na vila da Ribeira Grande, no assento e casas onde eles mesmos moravam. E o dotaram por uma suplicação que fizeram ao Papa de dezoito moios de trigo e duzentos cruzados em cada um ano, para mulheres honradas e pobres, sem outra obrigação, sem sujeição alguma.
E, para a fundação do edifício espiritual, na mesma era, trouxeram duas religiosas de muita virtude e santidade e de não menos nobreza, filhas de um D. João de Noronha, da ilha da Madeira, professas, do convento da ordem de Santa Clara da mesma ilha e da obediência de S. Francisco, chamadas D. Joana da Cruz e D. Catarina de Jesus, as quais começaram a criação da dita casa em toda observância, como de tais servas de Deus se esperava. Mas, como elas foram principalmente tiradas de seu convento por uma letra do Sumo Pontífice, para a fundação e criação do mosteiro de Jesus da vila da Praia, da ilha Terceira, donde as trouxeram para esta ilha, foi necessário tornarem outra vez para a Praia, por certa razão de que se não puderam escusar, pela obrigação da letra. E por esta causa não estiveram no mosteiro da Ribeira Grande mais de quatro anos, pouco mais ou menos. E, como não se podia compadecer ficar gente tão nova sem quem as regesse, pediu então D. Margarida de Betencor, depois de elas idas, ao custódio frei António Taboado, que então residia com o selo nestas ilhas dos Açores, que por virtude da bula da fundação do dito convento lhe desse a madre Maria de Cristo para abadessa, a qual era filha do mosteiro de Vila Franca, do princípio de Val de Cabaços, natural da ilha da Madeira, filha de ilustres pais, Afonso Correia de Sousa e Helena Gonçalves da Costa. O custódio lha concedeu. E foi trazida para a dita casa com muita gravidade, acompanhada de muita gente honrada, de cavalo, e recebida na mesma vila da Ribeira Grande com repique de sinos e muita alegria do povo, onde sempre serviu de prelada na dita casa até a era de sessenta e três anos com muita paz e quietação e fez a muitas religiosas profissão. E foi em tanto crescimento pela fama de sua muita virtude, que havendo mosteiro na cidade da Ponta Delgada, algumas pessoas nobres levavam ali suas filhas e parentas a serem freiras no dito mosteiro, que, quando se dali foram pelo segundo terramoto, seriam trinta e uma religiosas, vinte e uma professas e dez noviças.
A razão por que as religiosas dali se passaram para a cidade foi a do incêndio e terramoto já dito, que aconteceu nesta ilha na era de sessenta e três, a vinte e oito dias do mês de Junho da dita era, véspera de S. Pedro, havendo já cinco dias que a terra tremia muito; e tanto que véspera de S. João, estando todas as religiosas recolhidas no dormitório, tremeu tão rijo e tantas vezes, que do grande medo que tiveram lhe foi necessário abrir as portas e recolheremse às lógeas, parecendo-lhe que ali menos sentiriam os tremores, mas foi ao contrário, porque muito mais os sentiam que em cima no sobrado; pelo que se saíram das mesmas lógeas e toda a noite nunca se assentaram nem repousaram, mas até ao dia claro andaram em procissão; nem puderam entrar nas casas senão muito de corrida, agasalhando-se estes cinco dias na claustra, por lhe parecer que cada momento todos os edifícios se assolavam com os grandes abalos que por baixo do chão se sentiam, os quais indo em tanto crescimento, foram compelidas por algumas pessoas nobres da vila a se saírem para o seu pomar, por a claustra ser pequena, e caindo as casas corriam grande perigo. Estando dentro neste conflito, com muitas lágrimas e sentimento, algumas delas caíam desmaiadas pela dor que lhe causava apartar-se de sua clausura. Postas no pomar, onde lhe pareceram os tremores muito maiores, como eram, lhe parecia ser aquele o dia de sua particular conta. E não satisfeitas com a comunhão e confissão que no dia antes tinham feita, chamaram o confessor e no campo se tornaram a confessar todas, tendo por certo que aquela era sua fim, no que gastaram muita parte da noite. E por a terra onde estavam estar cavada para horta, houve quem lhe dissesse para que se tirassem dela porque mais depressa se abriria. Com este temor, se passaram para o páteo que está diante da porta da igreja, onde com muitas orações de lágrimas estiveram até depois da meia noite, passando tão temerosos e terríveis tremores, que se não podiam ter de giolhos, mas caíam em terra muitas vezes; até os sinos se tangiam então por si, de que tinham outro temor particular principalmente não se achando com elas, neste conflito, outro parente nem amigo, nem da vila, nem da cidade senão somente António de Sá de Betencor, que não sentindo trabalho nem temor da morte, de que todos fugiam, por amor de suas irmãs, parentas e conhecidas, deixou sua mulher na cidade e as foi acompanhar, de que elas receberam muita consolação. Estando ele com elas a dita noite, véspera de S. Pedro, no páteo da igreja, chamando e pedindo misericórdia ao Senhor, viram ir passeando muito devagar um homem, ao longo da capela, como que se ia a meter na igreja. António de Sá, cuidando ser um servente da casa, se ergueu para o desviar do perigo em que se ia meter e começou a querer ir para onde aquilo se mostrava, chamando muito por ele que não entrasse na igreja; mas, o que quer que era nunca mudou sua tenção, e, vendo que não quis deixar seu caminho, teve temor, parecendo-lhe que daquela maneira o queria levar após si e, em virando as costas, para se tornar aonde estava, veio um tão espantoso tremor que parecia assolar o mundo e abriu a abóbada da capela pelo meio, derribando-a até o chão, com tão grande estrondo e ruído, como semelhante coisa faria. E já a este tempo as casas e dormitório era tudo derribado. Com isto acabariam todas de crer que ali havia de ser sua sepultura. E como quem o sentia de verdade, com muita aflição de alma e copiosas lágrimas, começaram com novos clamores a invocar e pedir socorro e misericórdia a Nossa Senhora com devação estranha que então lhe não faltava.
Estando neste clamor, a maior parte delas afirmaram verem um vulto como de mulher na janela de grades do coro que deixaram fechada, muito claro e resplandescente, que toda a alumiava, como que se botava para fora da dita janela, o que todas entenderam ser sinal que se fossem daquele lugar.
Determinado por todas irem-se, se descalçaram, o que com desacordo até então não tinham feito, como do mais vestido fizeram, que só o hábito traziam. Desta maneira ordenaram sua procissão e foram pelo meio da vila, a qual estava desamparada de toda a gente que se acolhera com temor aquela noite, e encaminharam para uma ermida da Madre de Deus, que está fora da Ribeira Seca. Passando uma grota, que está antes de chegar à ermida, estando elas no mais baixo dela, deu tamanho abalo a terra que pareceu ajuntar-se a grota em cima delas e louvaram muito ao Senhor, quando se viram fora de tão grande perigo, de que lhe pareceu milagrosamente serem livres. Depois de entrarem na igreja e feita sua oração a Nossa Senhora, por ainda não estarem determinadas no que deviam de fazer, tornaram a caminhar para a vila por uns sarrados e silvas que as trataram tão mal que a muitas ia correndo o sangue dos pés. E, em querendo chegar à ponte, onde desceram direitas daqueles sarrados, houve alguns homens que entendiam o em que havia de parar o fogo, que lhe requereram não entrassem na vila, porque haviam de correr ribeiras de fogo, como correram, com o qual conselho tornaram a virar, encaminhando para o lugar de Rabo de Peixe, onde diziam não tremer a terra tanto, todas como mortas, sem poderem dar passada, pelo muito trabalho da noite passada e dos dias atrás.
Nestes dias de antes, foi um servente das ditas religiosas à cidade dar recado ao prelado como aquela noite se saíram do mosteiro e onde as deixava e como, o qual o achou pregando e todos seus parentes, a quem levava o mesmo recado, ouvindo a pregação, os quais entendendo da maneira que elas ficavam, se puseram logo todos a cavalo, sem tomarem refeição alguma, nem se lembrarem senão de quem chegaria primeiro, seguindo-os muitas pessoas nobres da cidade. Deram-se tanta pressa que dentro de uma hora chegaram ao lugar de Rabo de Peixe, onde já algumas religiosas tinham chegado e outras não, por não poderem caminhar de muito fracas e feridas nos pés, que levavam descalços. Como todas foram juntas, caminharam para a cidade, umas em carros e outras em ancas, por serem enjoadas e não poderem ir neles. Houve cavalo naquele dia que levou uma religiosa nas ancas, coisa que nunca consentiu, e era tal que seu dono muitas vezes se não podia sustentar sobre ele por ser muito bravo e malicioso e algumas vezes correu perigo de morte; mas, neste dia, se fez tão manso que até à cidade consentiu ancas, onde todos chegando acima de Santo André, perto do caminho para S. Gonçalo, as foram receber toda a gente da cidade e de outras partes da ilha, que nela estavam recolhidos, em uma muito triste e lastimosa procissão, em que iam todos os padres de S. Francisco com seis cruzes cobertas de negro e com a bandeira da Misericórdia, coisa que a todos acabou de fazer tristes, além da razão que tinham para o ser.
Desta maneira levaram as religiosas para o mosteiro da Esperança, das freiras da mesma ordem de Santa Clara, onde delas foram recebidas com muito amor e sentimento, com aquele psalmo de David: — Ad Dominum cum tribularer clamavi, etc. Depois de todas dentro, se foram em procissão ao coro de cima oferecer ao Santíssimo Sacramento que ainda tinham dentro. Feita sua oração, louvando ao Senhor que de tamanho perigo as tinha guardado, dando cada uma de giolhos obediência à abadessa, as religiosas da casa as agasalharam com muita caridade, consolando-as com grande amor, como de tais pessoas se esperava. No qual mosteiro estiveram três dias em que, nem de dia nem de noite, nem umas nem outras entravam nas casas, por causa dos grandes tremores que ainda faziam, pelo que estiveram em condição umas e outras de saírem do mosteiro. E, como as casas eram pequenas e gente muita, por mandado do prelado, que então era frei António de Alarcão, e com parecer de muitos homens honrados, que nisso o podiam dar, passaram as freiras para umas casas de Margarida Travassos Cabral, dona viúva, mulher que foi de Jorge Nunes Botelho, parenta da maior parte delas, onde estiveram um ano e meio. E, porque estavam ali gastando suas pobres rendas, sem haver ordem de se fazer mosteiro e o da Ribeira Grande não estar ainda para se poder reedificar, pois não estava a terra quieta e segura, dada esta informação ao Cardeal D. Henrique, mandou ao prelado que pusesse as religiosas cada uma em casa de seu pai ou parentes, para se ajuntar renda com que se fizesse mosteiro na mesma cidade. E, porque havia algumas religiosas que não tinham ninguém que as pudesse recolher, Barão Jácome Correia deu trinta moios de trigo para gastarem e comerem em três anos, as quais se passaram para outras casas mais pequenas, onde estiveram dois anos e cinco meses. No qual tempo, ordenavam Barão Jácome, António de Sá, Pero Castanho e outras pessoas nobres a fazer-lhe na cidade mosteiro, começando a ajuntar esmolas dadas e prometidas, com o que bem se pudera fazer a casa, para a qual António de Sá já tinha letras de Roma. E o dito Barão Jácome, afora a esmola que para o mosteiro queria dar, fazia a capela à sua custa. Mas, como Nosso Senhor tinha ordenado tornarem-se para sua casa aonde fizeram profissão, desviou isto de maneira que sem nenhuma ordem se desordenou. Neste tempo começou Diogo Vaz Carreiro o seu mosteiro sem letras nem ordem mais que de sua vontade. E, como ele havia mister mulheres para edificação dele, houve muitos pareceres que melhor se recolheriam as religiosas da Ribeira Grande nele, que haver em uma terra tantos mosteiros. Satisfeito ele desta razão, pediu ao vigairo Pero Gago, que então era da igreja Matriz da cidade, que lhe desse a igreja de Santo André, porque queria fazer o seu mosteiro naquele sítio, para recolher as religiosas da Ribeira Grande e para suas parentas; o qual Pero Gago, por serviço de Deus e por razão de ter quatro sobrinhas, filhas de uma sua irmã e outras parentas suas, lha largou, onde o dito Diogo Vaz fez o seu mosteiro e depois de feito recolheu nele a maior parte delas, com condição que se haviam de transferir à obediência do ordinário, por essa ser sua vontade, o que para elas foi muita desconsolação por não quererem senão a obediência em que professaram e muito contra sua vontade consentiram nisso pela necessidade em que se viam, havendo quatro anos que andavam por casas de seculares com muita desconsolação sua.
Recolhidas no mosteiro um dia de Nossa Senhora da Encarnação, não deixaram todavia de se sacramentarem com os religiosos de S. Francisco e ser visitadas pelos mesmos prelados. Mas contudo foi-lhe forçado dar a obediência ao ordinário. Depois, determinaram algumas tornar-se para o mosteiro da Ribeira Grande, onde professaram, se em algum tempo se tornasse a reedificar, como reedificou. E, como elas disso foram certificadas, fizeram petição ao Cardeal para se tornarem para sua casa, pois se recolheram também na de Diogo Vaz por uma provisão sua. Ele mandou ao inquisidor Marcos Teixeira se informasse se estava o recolhimento decente para se poderem agasalhar as ditas religiosas e, sabido dele estar para isso, lhes deu licença se tornassem as que quisessem. Com a licença se foram a nove dias de Maio da era de mil e quinhentos e setenta e seis , sendo do povo e cleresia da Ribeira Grande recebidas com procissão e muita devação. Daí a dois meses e vinte dias, foram seis religiosas das que ficaram na cidade e da mesma maneira as recebeu o dito povo. De modo que de vinte e uma professas, que do seu mosteiro foram, e dez noviças, não tornaram mais que treze freiras. No convento de Santo André da cidade, ficaram quatro professas da dita companhia e as mais levou o Senhor para si, que foram de sua casa por causa do incêndio na era de sessenta e três. E tornaram na de setenta e sete. Estiveram quatro anos por fora e os mais no mosteiro de Santo André da cidade, o qual deixaram já com quinze freiras, oito professas e sete noviças.
As religiosas que foram primeiro, a nove de Maio de mil e quinhentos e setenta e sete anos, são: Guiomar de Jesus, que foi muitos anos abadessa, Francisca dos Anjos, Beatriz da Madre de Deus, Maria de Santa Clara, todas quatro irmãs de António de Sá e filhas de Simão de Betancor; Ana da Concepção, filha de Pero Martins, da Ribeira Grande; e Isabel dos Santos, filha de Diogo Salgueiro; as quais, com Beatriz da Anunciação, que ficou sempre na vila da Ribeira Grande, em casa de seu pai, Henrique de Betencour de Sá, que depois foi abadessa, são sete.
As seis que foram a segunda vez, a vinte e nove de Julho da mesma era, são Isabel da Madre de Deus, filha de João de Betencor; Inês do Espírito Santo, sobrinha de frei Manuel Pereira; Isabel da Trindade; Isabel dos Arcanjos, filha de Fernão Tavares; Vitória da Cruz, filha de Fernão Corrêa; e Bartolesa dos Anjos, filha de Rui da Costa.
Depois destas, a dezassete de Abril da era de mil e quinhentos e oitenta e três, tornou para o dito mosteiro de Jesus, da vila da Ribeira Grande, a madre Maria da Trindade, que ficara no mosteiro de Santo André, da cidade de Ponta Delgada, alguns anos por abadessa.
Estão agora no dito mosteiro vinte e quatro religiosas professas e doze noviças.
No tempo que governava esta ilha o ilustre Capitão Manuel da Câmara, na era de mil e quinhentos e trinta e seis, pouco mais ou menos, Pero Roiz da Câmara e sua mulher, D. Margarida de Betencor, fundaram o mosteiro de Jesus na vila da Ribeira Grande, no assento e casas onde eles mesmos moravam. E o dotaram por uma suplicação que fizeram ao Papa de dezoito moios de trigo e duzentos cruzados em cada um ano, para mulheres honradas e pobres, sem outra obrigação, sem sujeição alguma.
E, para a fundação do edifício espiritual, na mesma era, trouxeram duas religiosas de muita virtude e santidade e de não menos nobreza, filhas de um D. João de Noronha, da ilha da Madeira, professas, do convento da ordem de Santa Clara da mesma ilha e da obediência de S. Francisco, chamadas D. Joana da Cruz e D. Catarina de Jesus, as quais começaram a criação da dita casa em toda observância, como de tais servas de Deus se esperava. Mas, como elas foram principalmente tiradas de seu convento por uma letra do Sumo Pontífice, para a fundação e criação do mosteiro de Jesus da vila da Praia, da ilha Terceira, donde as trouxeram para esta ilha, foi necessário tornarem outra vez para a Praia, por certa razão de que se não puderam escusar, pela obrigação da letra. E por esta causa não estiveram no mosteiro da Ribeira Grande mais de quatro anos, pouco mais ou menos. E, como não se podia compadecer ficar gente tão nova sem quem as regesse, pediu então D. Margarida de Betencor, depois de elas idas, ao custódio frei António Taboado, que então residia com o selo nestas ilhas dos Açores, que por virtude da bula da fundação do dito convento lhe desse a madre Maria de Cristo para abadessa, a qual era filha do mosteiro de Vila Franca, do princípio de Val de Cabaços, natural da ilha da Madeira, filha de ilustres pais, Afonso Correia de Sousa e Helena Gonçalves da Costa. O custódio lha concedeu. E foi trazida para a dita casa com muita gravidade, acompanhada de muita gente honrada, de cavalo, e recebida na mesma vila da Ribeira Grande com repique de sinos e muita alegria do povo, onde sempre serviu de prelada na dita casa até a era de sessenta e três anos com muita paz e quietação e fez a muitas religiosas profissão. E foi em tanto crescimento pela fama de sua muita virtude, que havendo mosteiro na cidade da Ponta Delgada, algumas pessoas nobres levavam ali suas filhas e parentas a serem freiras no dito mosteiro, que, quando se dali foram pelo segundo terramoto, seriam trinta e uma religiosas, vinte e uma professas e dez noviças.
A razão por que as religiosas dali se passaram para a cidade foi a do incêndio e terramoto já dito, que aconteceu nesta ilha na era de sessenta e três, a vinte e oito dias do mês de Junho da dita era, véspera de S. Pedro, havendo já cinco dias que a terra tremia muito; e tanto que véspera de S. João, estando todas as religiosas recolhidas no dormitório, tremeu tão rijo e tantas vezes, que do grande medo que tiveram lhe foi necessário abrir as portas e recolheremse às lógeas, parecendo-lhe que ali menos sentiriam os tremores, mas foi ao contrário, porque muito mais os sentiam que em cima no sobrado; pelo que se saíram das mesmas lógeas e toda a noite nunca se assentaram nem repousaram, mas até ao dia claro andaram em procissão; nem puderam entrar nas casas senão muito de corrida, agasalhando-se estes cinco dias na claustra, por lhe parecer que cada momento todos os edifícios se assolavam com os grandes abalos que por baixo do chão se sentiam, os quais indo em tanto crescimento, foram compelidas por algumas pessoas nobres da vila a se saírem para o seu pomar, por a claustra ser pequena, e caindo as casas corriam grande perigo. Estando dentro neste conflito, com muitas lágrimas e sentimento, algumas delas caíam desmaiadas pela dor que lhe causava apartar-se de sua clausura. Postas no pomar, onde lhe pareceram os tremores muito maiores, como eram, lhe parecia ser aquele o dia de sua particular conta. E não satisfeitas com a comunhão e confissão que no dia antes tinham feita, chamaram o confessor e no campo se tornaram a confessar todas, tendo por certo que aquela era sua fim, no que gastaram muita parte da noite. E por a terra onde estavam estar cavada para horta, houve quem lhe dissesse para que se tirassem dela porque mais depressa se abriria. Com este temor, se passaram para o páteo que está diante da porta da igreja, onde com muitas orações de lágrimas estiveram até depois da meia noite, passando tão temerosos e terríveis tremores, que se não podiam ter de giolhos, mas caíam em terra muitas vezes; até os sinos se tangiam então por si, de que tinham outro temor particular principalmente não se achando com elas, neste conflito, outro parente nem amigo, nem da vila, nem da cidade senão somente António de Sá de Betencor, que não sentindo trabalho nem temor da morte, de que todos fugiam, por amor de suas irmãs, parentas e conhecidas, deixou sua mulher na cidade e as foi acompanhar, de que elas receberam muita consolação. Estando ele com elas a dita noite, véspera de S. Pedro, no páteo da igreja, chamando e pedindo misericórdia ao Senhor, viram ir passeando muito devagar um homem, ao longo da capela, como que se ia a meter na igreja. António de Sá, cuidando ser um servente da casa, se ergueu para o desviar do perigo em que se ia meter e começou a querer ir para onde aquilo se mostrava, chamando muito por ele que não entrasse na igreja; mas, o que quer que era nunca mudou sua tenção, e, vendo que não quis deixar seu caminho, teve temor, parecendo-lhe que daquela maneira o queria levar após si e, em virando as costas, para se tornar aonde estava, veio um tão espantoso tremor que parecia assolar o mundo e abriu a abóbada da capela pelo meio, derribando-a até o chão, com tão grande estrondo e ruído, como semelhante coisa faria. E já a este tempo as casas e dormitório era tudo derribado. Com isto acabariam todas de crer que ali havia de ser sua sepultura. E como quem o sentia de verdade, com muita aflição de alma e copiosas lágrimas, começaram com novos clamores a invocar e pedir socorro e misericórdia a Nossa Senhora com devação estranha que então lhe não faltava.
Estando neste clamor, a maior parte delas afirmaram verem um vulto como de mulher na janela de grades do coro que deixaram fechada, muito claro e resplandescente, que toda a alumiava, como que se botava para fora da dita janela, o que todas entenderam ser sinal que se fossem daquele lugar.
Determinado por todas irem-se, se descalçaram, o que com desacordo até então não tinham feito, como do mais vestido fizeram, que só o hábito traziam. Desta maneira ordenaram sua procissão e foram pelo meio da vila, a qual estava desamparada de toda a gente que se acolhera com temor aquela noite, e encaminharam para uma ermida da Madre de Deus, que está fora da Ribeira Seca. Passando uma grota, que está antes de chegar à ermida, estando elas no mais baixo dela, deu tamanho abalo a terra que pareceu ajuntar-se a grota em cima delas e louvaram muito ao Senhor, quando se viram fora de tão grande perigo, de que lhe pareceu milagrosamente serem livres. Depois de entrarem na igreja e feita sua oração a Nossa Senhora, por ainda não estarem determinadas no que deviam de fazer, tornaram a caminhar para a vila por uns sarrados e silvas que as trataram tão mal que a muitas ia correndo o sangue dos pés. E, em querendo chegar à ponte, onde desceram direitas daqueles sarrados, houve alguns homens que entendiam o em que havia de parar o fogo, que lhe requereram não entrassem na vila, porque haviam de correr ribeiras de fogo, como correram, com o qual conselho tornaram a virar, encaminhando para o lugar de Rabo de Peixe, onde diziam não tremer a terra tanto, todas como mortas, sem poderem dar passada, pelo muito trabalho da noite passada e dos dias atrás.
Nestes dias de antes, foi um servente das ditas religiosas à cidade dar recado ao prelado como aquela noite se saíram do mosteiro e onde as deixava e como, o qual o achou pregando e todos seus parentes, a quem levava o mesmo recado, ouvindo a pregação, os quais entendendo da maneira que elas ficavam, se puseram logo todos a cavalo, sem tomarem refeição alguma, nem se lembrarem senão de quem chegaria primeiro, seguindo-os muitas pessoas nobres da cidade. Deram-se tanta pressa que dentro de uma hora chegaram ao lugar de Rabo de Peixe, onde já algumas religiosas tinham chegado e outras não, por não poderem caminhar de muito fracas e feridas nos pés, que levavam descalços. Como todas foram juntas, caminharam para a cidade, umas em carros e outras em ancas, por serem enjoadas e não poderem ir neles. Houve cavalo naquele dia que levou uma religiosa nas ancas, coisa que nunca consentiu, e era tal que seu dono muitas vezes se não podia sustentar sobre ele por ser muito bravo e malicioso e algumas vezes correu perigo de morte; mas, neste dia, se fez tão manso que até à cidade consentiu ancas, onde todos chegando acima de Santo André, perto do caminho para S. Gonçalo, as foram receber toda a gente da cidade e de outras partes da ilha, que nela estavam recolhidos, em uma muito triste e lastimosa procissão, em que iam todos os padres de S. Francisco com seis cruzes cobertas de negro e com a bandeira da Misericórdia, coisa que a todos acabou de fazer tristes, além da razão que tinham para o ser.
Desta maneira levaram as religiosas para o mosteiro da Esperança, das freiras da mesma ordem de Santa Clara, onde delas foram recebidas com muito amor e sentimento, com aquele psalmo de David: — Ad Dominum cum tribularer clamavi, etc. Depois de todas dentro, se foram em procissão ao coro de cima oferecer ao Santíssimo Sacramento que ainda tinham dentro. Feita sua oração, louvando ao Senhor que de tamanho perigo as tinha guardado, dando cada uma de giolhos obediência à abadessa, as religiosas da casa as agasalharam com muita caridade, consolando-as com grande amor, como de tais pessoas se esperava. No qual mosteiro estiveram três dias em que, nem de dia nem de noite, nem umas nem outras entravam nas casas, por causa dos grandes tremores que ainda faziam, pelo que estiveram em condição umas e outras de saírem do mosteiro. E, como as casas eram pequenas e gente muita, por mandado do prelado, que então era frei António de Alarcão, e com parecer de muitos homens honrados, que nisso o podiam dar, passaram as freiras para umas casas de Margarida Travassos Cabral, dona viúva, mulher que foi de Jorge Nunes Botelho, parenta da maior parte delas, onde estiveram um ano e meio. E, porque estavam ali gastando suas pobres rendas, sem haver ordem de se fazer mosteiro e o da Ribeira Grande não estar ainda para se poder reedificar, pois não estava a terra quieta e segura, dada esta informação ao Cardeal D. Henrique, mandou ao prelado que pusesse as religiosas cada uma em casa de seu pai ou parentes, para se ajuntar renda com que se fizesse mosteiro na mesma cidade. E, porque havia algumas religiosas que não tinham ninguém que as pudesse recolher, Barão Jácome Correia deu trinta moios de trigo para gastarem e comerem em três anos, as quais se passaram para outras casas mais pequenas, onde estiveram dois anos e cinco meses. No qual tempo, ordenavam Barão Jácome, António de Sá, Pero Castanho e outras pessoas nobres a fazer-lhe na cidade mosteiro, começando a ajuntar esmolas dadas e prometidas, com o que bem se pudera fazer a casa, para a qual António de Sá já tinha letras de Roma. E o dito Barão Jácome, afora a esmola que para o mosteiro queria dar, fazia a capela à sua custa. Mas, como Nosso Senhor tinha ordenado tornarem-se para sua casa aonde fizeram profissão, desviou isto de maneira que sem nenhuma ordem se desordenou. Neste tempo começou Diogo Vaz Carreiro o seu mosteiro sem letras nem ordem mais que de sua vontade. E, como ele havia mister mulheres para edificação dele, houve muitos pareceres que melhor se recolheriam as religiosas da Ribeira Grande nele, que haver em uma terra tantos mosteiros. Satisfeito ele desta razão, pediu ao vigairo Pero Gago, que então era da igreja Matriz da cidade, que lhe desse a igreja de Santo André, porque queria fazer o seu mosteiro naquele sítio, para recolher as religiosas da Ribeira Grande e para suas parentas; o qual Pero Gago, por serviço de Deus e por razão de ter quatro sobrinhas, filhas de uma sua irmã e outras parentas suas, lha largou, onde o dito Diogo Vaz fez o seu mosteiro e depois de feito recolheu nele a maior parte delas, com condição que se haviam de transferir à obediência do ordinário, por essa ser sua vontade, o que para elas foi muita desconsolação por não quererem senão a obediência em que professaram e muito contra sua vontade consentiram nisso pela necessidade em que se viam, havendo quatro anos que andavam por casas de seculares com muita desconsolação sua.
Recolhidas no mosteiro um dia de Nossa Senhora da Encarnação, não deixaram todavia de se sacramentarem com os religiosos de S. Francisco e ser visitadas pelos mesmos prelados. Mas contudo foi-lhe forçado dar a obediência ao ordinário. Depois, determinaram algumas tornar-se para o mosteiro da Ribeira Grande, onde professaram, se em algum tempo se tornasse a reedificar, como reedificou. E, como elas disso foram certificadas, fizeram petição ao Cardeal para se tornarem para sua casa, pois se recolheram também na de Diogo Vaz por uma provisão sua. Ele mandou ao inquisidor Marcos Teixeira se informasse se estava o recolhimento decente para se poderem agasalhar as ditas religiosas e, sabido dele estar para isso, lhes deu licença se tornassem as que quisessem. Com a licença se foram a nove dias de Maio da era de mil e quinhentos e setenta e seis , sendo do povo e cleresia da Ribeira Grande recebidas com procissão e muita devação. Daí a dois meses e vinte dias, foram seis religiosas das que ficaram na cidade e da mesma maneira as recebeu o dito povo. De modo que de vinte e uma professas, que do seu mosteiro foram, e dez noviças, não tornaram mais que treze freiras. No convento de Santo André da cidade, ficaram quatro professas da dita companhia e as mais levou o Senhor para si, que foram de sua casa por causa do incêndio na era de sessenta e três. E tornaram na de setenta e sete. Estiveram quatro anos por fora e os mais no mosteiro de Santo André da cidade, o qual deixaram já com quinze freiras, oito professas e sete noviças.
As religiosas que foram primeiro, a nove de Maio de mil e quinhentos e setenta e sete anos, são: Guiomar de Jesus, que foi muitos anos abadessa, Francisca dos Anjos, Beatriz da Madre de Deus, Maria de Santa Clara, todas quatro irmãs de António de Sá e filhas de Simão de Betancor; Ana da Concepção, filha de Pero Martins, da Ribeira Grande; e Isabel dos Santos, filha de Diogo Salgueiro; as quais, com Beatriz da Anunciação, que ficou sempre na vila da Ribeira Grande, em casa de seu pai, Henrique de Betencour de Sá, que depois foi abadessa, são sete.
As seis que foram a segunda vez, a vinte e nove de Julho da mesma era, são Isabel da Madre de Deus, filha de João de Betencor; Inês do Espírito Santo, sobrinha de frei Manuel Pereira; Isabel da Trindade; Isabel dos Arcanjos, filha de Fernão Tavares; Vitória da Cruz, filha de Fernão Corrêa; e Bartolesa dos Anjos, filha de Rui da Costa.
Depois destas, a dezassete de Abril da era de mil e quinhentos e oitenta e três, tornou para o dito mosteiro de Jesus, da vila da Ribeira Grande, a madre Maria da Trindade, que ficara no mosteiro de Santo André, da cidade de Ponta Delgada, alguns anos por abadessa.
Estão agora no dito mosteiro vinte e quatro religiosas professas e doze noviças.