Na cidade da Ponta Delgada, como em algumas partes da ilha, em dia de S. João Baptista do dito ano de mil e quinhentos e sessenta e três, começou a tremer brandamente, duas vezes cada dia, até a segunda feira seguinte, que foram vinte e oito de Junho, véspera dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo, que ao sol posto, na dita cidade, começou a tremer com maiores abalos e causar tanto espanto à gente que se não sabiam dar a conselho; e logo se ordenaram procissões, em que todos com grandes clamores pediam a Nosso Senhor misericórdia.
Andando nas mesmas procissões, apareceu sobre as serras de Bulcão e as outras já ditas, subitamente, um espantoso incêndio de fogo, lançando tão bravas línguas de si para todas as partes, que não houve pessoa nenhuma que com grande desacordo não desamparasse a procissão, fugindo desatinadamente sem saber para onde, por terem por sem dúvida que o dito fogo procedia do céu, porque não aparecia senão mui alto e criam que era a fim do mundo chegada. O qual fogo saía de uma altíssima coluna negra e temerosa, e cada vez se ia tanto mais subindo e alargando que parecia que todo mundo assombrava. Foi tanto o pasmo na gente aquela noite, que nunca cuidaram chegar à manhã, a qual sendo chegada, por verem a coluna, onde o fogo de noite aparecia, saía da terra, ficaram algum tanto mais sossegados e com menos espanto; posto que o ímpeto e fúria com que aquela coisa saía, não era de menor admiração, por ser tão basta e ir fazendo, caminho dos ares, tais ondas e bravuras, enovelando-se o fumo e nuvem com tanta pressa que parecia que por ali toda a ilha se estava vasando, tremendo assim as paredes e telhados com tão furiosos e repentinos abalos, que mui miudamente sobrevinham, que nem das igrejas nem de suas casas se ousavam fiar. Uns andavam pelas ruas sem sentido; outros se deixavam estar parados e pasmados, olhando para a tenebrosa nuvem como vinha crescendo e assombrando o mundo.
Diziam uns que se abria o céu; outros que era fogo da terra; outros que não podia ser senão infernal. Ouviam-se, de quando em quando, tão feros e impetuosos estrondos, que pareciam de muitos e diversíssimos tiros de artilharia.
Passada aquela espaçosa noite de tantos medos, de espantos, e chegada a manhã, que mui poucos esperavam ver, bem se viu nos rostos de todos o que em seus desmaiados corações haviam sentido e sentiam, porque ninguém amanheceu que não tivesse cor de finado; todos mais amarelos que cera, representando bem o cumprimento da profecia do Evangelho, que diz: — Andarão os homens secos e mirrados, com o temor dos grandes sinais que verão antes do dia do Juízo. Baltazar Álvares, escrivão do Eclesiástico, que tinha visto dantes, da ilha Terceira, onde estivera, o incêndio da ilha do Pico, esforçava a sua gente e outras pessoas, dizendo que não tivessem medo, que aquele fogo que viam era como o que se abrira na ilha do Pico; mas, era tanto o espanto e temor de todos, que ninguém se aquietava com isso, nem caíam na conta.
Com a claridade do dia, deixou de aparecer o bravíssimo fusilar do fogo e em seu lugar se viu aquilo, que de noite parecia nuvem, ser uma cousa tão basta, negra e medonha, que subia com tanta fúria e violência da terra, ondeando e dando voltas com tal ímpeto que parecia que por aquela, como infernal, boca se estava evacuando em pó e cinza toda a ilha até os abismos; e, depois de ser no ar altíssimo, aquela matéria queimada se encapelava e encorporava, em maneira que figurava uma formosa árvore e, daquela grandura e com o resplandor do sol que lhe dava, parecia toda de volumes de branquíssima lã cardada, mui aprazível à vista, se não fora tão danoso o efeito; e, como se punha o sol, tornavam a aparecer as espantosas línguas de fogo, que rompiam por mil partes daquela polvorosa matéria que subia. O dia dos Apóstolos, chegou nova à cidade como o mosteiro das religiosas da vila da Ribeira Grande era caído com a maior parte da casaria da vila, pelo que logo partiram muitas pessoas principais, com licença do custódio, para as levarem à cidade, onde no mesmo dia chegaram a horas de véspera, e saíram as cruzes das freguesias com a bandeira da Misericórdia, e toda a cleresia e frades de S. Francisco, a recebê-las, acima da ermida de Santo André, e com procissão ordenada de muita gente as levaram ao mosteiro da Esperança, onde já estava ordenado de as recolherem. Neste mesmo dia, pela manhã, pregou o padre custódio, frei António Alarcão, no adro da igreja de S. Sebastião, e não dentro dela, com arreceios dos grandes terramotos que não cessavam. Tratou mui substancialmente a matéria que em tal tempo convinha. Donde se seguiu haver muito perdão de ofensas, muita reconciliação de ódios e algumas restituições de encargos, e daí em diante muitas confissões, preparando-se todos para receber a morte, que viam mui presente ante seus olhos. Em maneira que, se Nosso Senhor se servira , segundo a gente no tempo daquela tribulação andava religiosa e convertida, se pudera crer que os tomava em bom estado.
Toda a noite da segunda feira ventou o vento oeste e oeste-sudoeste, que lançava todo aquele rescaldo para a banda do levante e do nordeste da ilha. E a noite da terça feira se mudou o vento ao nordeste e se começou o céu a toldar sobre a cidade, e se ordenou outra mui grande procissão de toda a cleresia e de muita gente, com grande cópia de foroes da Misericórdia e cera das confrarias e muitos penitentes, a qual foi à ermida de Nossa Senhora da Piedade, que está arriba da cidade menos espaço de meia légua. Quando veio a quarta feira, apareceu a terra sobresemeada de cinza muito miúda e de enxofre, com o cheiro tamanho que bem a pesar das pessoas se sofria. E, como Nosso Senhor em todas suas obras usa connosco de muita misericórdia, teve por bem de mudar outra vez o tempo ao ponente, porque se o contrário perseverara, ou o que ventou fora mais teso, não há dúvida senão que a perdição que aconteceu nas outras partes da ilha, acontecera também da banda da cidade e seu termo, por onde tudo se perdera de remate e fora forçado despejarem toda a ilha.
Em todo este meio tempo, continuaram os terramotos mui bravos e, quando vinha a noite, toda a gente se alojava pelos campos. E a furiosa boca, acrescentando cada vez mais em sua primeira fúria, não cessou de lançar e dispender sua pólvora até quinta feira, primeiro de Julho, até as nove horas do dia, pouco mais ou menos, que foi visto arrancar de raiz com terríveis e espantosos redemoinhos, fazendo pelos ares tantas e tais diabruras, que parecia que todas as quadrilhas infernais ali iam juntas, e se lançou para a banda norte da ilha, movendo pela terra e mar tão feras tempestades, que não há quem as saiba dizer, nem possa crer.
Em todos estes três dias, choveu infinita cópia de cinza na vila da Ribeira Grande, onde os terramotos foram tão excessivos, como tenho dito, que quase não ficou casa que não caísse, em parte ou em todo, porque, como a terra que se abriu estava muito a pique sobre a vila, participavam mais os moradores dela das terribilidades do fogo que pelos ares a todas as partes se estendiam, e dos grandes abalos da terra e dos medonhos estrondos que se sentiam, como de furiosos trovões, correr de cima da serra, por baixo da vila, até o mar.
Da Ribeira Grande até o lugar de Porto Formoso e Maia, caiu muita quantidade de cinza, em tanto que acravou todas as novidades e as cobriu em maneira que se perderam, sem delas se aproveitar senão mui poucas espigas. Da Maia para além, convém a saber, nas freguesias dos Reis Magos e em ambas Achadas, e na de S. Pedro da Lomba, e na vila do Nordeste até a Povoação e Furnas, além da muita cinza que também choveu, caiu tanta pedra pomes, misturada com algumas rachas de pedra brava, que não ficou coisa que não cobrisse, nem grota que não arrasasse, nem árvore que aparecesse, nem pessoa que não cuidasse senão que o mundo se acabava. Donde por toda aquela costa ficou tudo tão raso e desabafado, que não há lugar por onde mui à vontade carros não possam andar.
As pedras que caíam a lugares eram algumas delas de grandor de potes, e outras maiores e mais pequenas. E, quando davam no chão, nos telhados ou árvores, todas se esboroavam com muita facilidade. Mas deixaram a terra tão bravia, áspera e estéril, que não havia boi que a dois passos não se despeasse, nem erva que arrebentasse, nem esperança que jamais frutificasse. Foi nestes dias tanta a obscuridão daquelas bandas, que quase não se viam as pessoas umas às outras. E de quando em quando se sarrava tanto, que de nenhuma qualidade se podiam ver, senão às palpadelas.
Afirmam alguns que foram vistos os demónios alardear e soar espantosos estromentos, o que não se pode crer, posto que as bravuras foram em tanto excesso que parece não ser erro de fé crer que traziam eles muitos ministros nisso ocupados. Mas, o certo é serem estas coisas e suas causas naturais. De Vila Franca do Campo se pode dizer que padeceu segundo dilúvio, na qual também choveu tanto cinzeiro, do mesmo que ia daquela furna semelhante a infernal, que cuidaram os moradores haverem de ser submergidos com ele, como seus antepassados foram com a rotura do monte que sobre eles correu. E desacoroçoados com medo do fogo que viam sobre si e a estranha chuva, e dos terramotos que os desatinavam e obscuridão que os assombrava, desampararam muitos a vila e procissões em que andavam e se acolheram a maior parte ao ilhéu, que está apartado da ilha dois tiros de besta, parecendo-lhe lugar mais seguro para poderem escapar de tanta tribulação. E, por verem serem ali combatidos de maiores tremores e de mais basto cinzeiro, desampararam a estância dele com mui atribulados sucessos, e tornaram a embarcar em alguns navios que aí se acharam ancorados. Alguns dos quais foram ter à ilha da Madeira, outros se tornaram para a terra e se acolheram em companhia das freiras, que também desampararam seu mosteiro, para a Ponta da Garça, uma légua da vila para o levante, onde acharam algum tanto mais refúgio. Porém, a maior parte da gente se acolheu para a cidade, como fizeram todos os moradores das vilas de Água de Pau e Alagoa, onde também aconteceram os mesmos espantos e caíram muitas casas, mas não tanta cinza que fizesse dano às novidades.
Era coisa muito para ter grande mágoa ver os caminhos cheios de gente, homens, mulheres, mininos, fugindo com tanta pressa e desacordo, e as famílias tão espalhadas e divisas, que uns não sabiam parte dos outros, e, se é lícito, pudera-se bem dizer por esta pressa: — vae pregnantibus et nutrientibus in illis diebus, porque foi tanta a calamidade e trespassamento da gente, que se pode ter por mostra muito natural pintada daquele espantoso dia que esperamos.
Houve de toda aquela banda grande destruição de gados que se acravaram na terra e outros que, cegos e desatinados com a obscuridão da cinza e pedra pomes que caía, se lançaram pelas rochas ao mar; outros se crê que levaram os grandes redemoinhos pelos ares, como fizeram a árvores de mui grossos troncos, que foram depois achados por navios que vinham de fora, mui longe da ilha. Perderam-se todas as criações e pastos daquelas partes, que eram os mais e os melhores da ilha, onde apascentavam e criavam a maior parte dos gados dela; e depois não havia onde se pudesse repairar um coelho, de maneira que todos os moradores daquelas freguesias, em que havia homens de grossas fazendas, eles e os pobres trabalhadores ficaram iguais e todos se foram recolhendo para a cidade da Ponta Delgada e seus termos, perdendo a saudade a quanto dantes tinham e possuíam, por lá não terem que comer, nem que fazer. Padeceram todos naqueles dias comum miséria, porque, além dos trabalhos contados, tomaram a gente no fim dum ano mui apertado e entre foice e vencelho , por não haver ainda trigo segado nem debulhado, nem o tempo dava para isso lugar.
Sumiram-se as duas ribeiras maiores e mais necessárias da ilha, que eram a da Ribeira Grande, onde o povo da cidade ia moer, e a da Praia, onde se puderam remediar em falta da outra, ambas as quais nasciam na dita serra que se abriu; uma delas corria para a banda do norte; outra para a do sul. E, por a cidade estar desapercebida de atafonas, pelo Capitão Manuel da Câmara alcançar sentença que se quebrassem e o povo fosse moer à Ribeira Grande, foi tanta a necessidade que causou a falta das ribeiras, que, se não fora por andar a gente tão fora de si como andava, não pudera menos ser senão morrerem muitas pessoas.
A sexta feira logo seguinte, dois de Julho se abriu o outro fogo junto do caminho que vai da cidade para a vila da Ribeira Grande, na coroa do pico que chamam do Sapateiro, distante da dita vila para o sudoeste obra de um terço de légua, no qual se abriram duas temerosas bocas e delas saía mui bravo fogo, lançando para o ar muitas pedras, algumas de grandura de bois, que, tornando a cair, se desfaziam em peças miúdas, de modo que cobriram grande parte do pico, e algumas terras derredor, de mui áspero e negro cascalho, as quais pedras saíam ardendo como derretidas e, tanto que endureciam com o ar que lhes dava, se esmoucavam ao cair.
Da quinta feira, às horas que arrancou e despediu de raiz a fúria do primeiro fogo, não tremeu mais a terra, até o domingo à tarde, que foram quatro do mês de Julho, que tornou a dar dois mui grandes abalos, de que ainda caíram muitas casas na vila da Ribeira Grande, e algumas nas vilas de Água do Pau e Alagoa; de que a gente toda da ilha, que estava já algum tanto quieta e sossegada, se começou a alvoroçar e a perder a esperança de tão cedo se assegurarem. E logo se fez na cidade outra mui devota procissão na qual se tirou a imagem de Nossa Senhora da Concepção. Dali por diante, quis Nosso Senhor que cessaram os tremores. Mas sucedeu outra coisa de maior admiração, por nunca ser vista alguma semelhante nesta ilha, posto que, segundo agora mui claro parece, já nela por muitas vezes aconteceu o mesmo antes de ser descoberta; a qual é que de cada uma das bocas que se abriram no pico do Sapateiro, manou uma ribeira de fogo, correndo por tão estranho modo, que não havia pessoa que o pudesse compreender. Uma delas desceu pela Ribeira Seca até o mar, com um licor como de escumalho de ferro ardendo.
E o de baixo ia entufando o de cima e espraiando pela terra em largura de oiro, dez e, a lugares, doze braças, e depois de resfriar ficava bravo biscoutal de uma pedra bravia e escabrosa, assim como outros muitos que há pela ilha que, antes dela ser descoberta, correram da mesma maneira, donde se verifica que a mais dela ardeu com fogo que se acendeu do modo deste, quando arrebentaram as montanhas que chamam das Sete Cidades, ou as das Furnas, e outros muitos picos que não há dúvida senão que com outra tal violência romperam e encheram a terra de biscoutal e da pedra pomes que por ela dantes estava espalhada. A outra ribeira, das duas do fogo, encaminhou mais para o noroeste, desviada da primeira contra o lugar que chamam de Rabo de Peixe, fazendo grandes e temerosas aperturas pela terra ao redor, donde corria, convertendo em si quanto diante achava, queimando e abrasando arvoredo, silvas e vinhas por junto donde corria, ocupando a mesma largura da outra, e sumindo-se a lugares por debaixo da terra, não fazendo mais dano nas novidades por onde passava senão somente o que delas ocupava, cousa milagrosa de ver e difícil de crer, que, sendo fogo tão furioso que a nenhuma cousa perdoava, se houvesse tão benignamente com os pães, que não fazia mais que chamuscar-lhe tamalavez a palha seca pendurada da pargana da espiga, resguardando o grão, e sem mais dano ia correndo sua via.
Outras muitas particularidades aconteceram neste incêndio, que querê-las contar todas seria largo e infinito processo, porque não se pode dizer tanto, que muito mais não seja verdade. Afirma-se que se perdeu, além das terras de comedia dos gados, a terça parte das terras de pão, que ao que então parecia não dariam novidade tão cedo. E se perdeu da novidade, que aquele ano se houvera de recolher, perto de três mil moios de pão. E o Capitão Manuel da Câmara perderia de renda perto de trezentos moios de pão, em cada um ano.
A água da Ribeira Grande, depois de quinze dias que a dita serra se rompeu, tornou a correr tão basta de cinzeiro e pedra pomes, que tudo ia atupindo e por fim levava a maior parte das casas.
Depois disto acontecer, passaram trinta dias que o sol não deu sua claridade perfeita; e sempre a ilha andou toldada e coberta de grandes, obscuras e temerosas nuvens.