No mês de Abril de mil e quinhentos e oitenta e dois anos, mandou Sua Majestade uma armada ligeira de cinco velas, que era o galeão S. Cristóvão, uma nau almiranta, três caravelas e uma mexeriqueira, cujo capitão mor era Pero Peixoto da Silva, homem bem apessoado, de bom corpo, louro da barba e quase meio branco; a qual armada vinha aguardar as naus da Índia invernadas e recolher-se por diferente altura. Trazia por regimento que, achando alguns inimigos, podendo, se recolheria a esta ilha de S. Miguel e, não podendo a salvo pelejar com eles, deitaria a armada à costa. Chegou a esta ilha no mês de Maio da dita era. Foi o dito capitão mor recebido do governador Ambrósio de Aguiar com muita festa, porque, além da sua obrigação, eram também parentes. Dali a oito ou dez dias, que foi no mês de Maio da dita era de oitenta e dois, depois de estar ancorado no porto da cidade da Ponta Delgada, da banda dos Mosteiros apareceram nove velas, as quais iam na volta do mar. Sendo dado este recado na fortaleza, mandou-o o governador ao capitão mor da armada Pero Peixoto, o qual, não fazendo por isso muito alvoroço, não deixou todavia de estar alerta. Ao outro dia apareceu perto da ponta de Santa Clara uma caravela e uma nau a descobrir a armada; e, descobrindo o porto, logo viraram por onde vieram, podendo-o muito bem fazer, porque o vento era terreal, e para entrar e sair o tinham próspero. Visto pelo dito Pero Peixoto, dissimulou e bem conheceu o que era; mas o alvoroço do povo, que causa muitas vezes grandes danos, por não ponderar as cousas mais que a seu parecer, houvera de causar um grande revés, dizendo que para que era armada ancorada, vindo ladrões a reconhecer o porto, e que eram judeus e não prestavam para nada. Ao que respondia Pero Peixoto, com muita prudência e paciência, que não se agastassem, que mais velas haviam de vir do que cuidavam, as quais viriam amanhã, de muita avantagem da sua armada; e assim foi, que ao dia seguinte, véspera da Ascensão, vinte e três de Maio da dita era, veio recado que apareciam nove velas e vinham cosidas com a terra, as quais já a este tempo Pero Peixoto tinha descoberto e estava fornecendo a armada do que era necessário para o efeito da peleja, por ser geral da dita armada e, capitão do galeão S. Cristóvão, Cosme Nabo, onde o dito capitão mor estava. Da nau almiranta, chamada Bom Jesus, de Vila do Conde, era capitão Sebastião Gonçalves d’Alvelos; da caravela Vitória, chamada S. João de el-Rei, Manuel Simões, cavaleiro de África; da caravela Espírito Santo, Pero Mexia; da caravela chamada S. João, fretada , João Roiz Carreiro; e da mexeriqueira, Manuel Jácome. Estavam no porto então duas naus ingresas. Pediu Pero Peixoto ao governador as armasse de gente, que o mais tinham em si, e foi logo pelo governador posto por obra; nas quais naus declarou por capitão de uma a Manuel Cordeiro de Sampaio, juiz do mar, com quem teve muitas palavras de cumprimento, e da outra a Rui Vaz Medeiros, capitão da infantaria, com a gente da sua companhia. Com o juiz da alfândega, Manuel Cordeiro de Sampaio, se embarcaram seus irmãos e parentes, António Cordeiro de Benevides, mancebo, letrado de grandes esperanças, André Cordeiro, Mateus Cordeiro, seus irmãos, parentes Manuel Cabral Botelho, Pero Roiz de Sousa, António de Benevides, e outros parentes e criados. Quando se embarcaram, já vinha a armada dos contrários espaço de meia légua. E o dito Manuel Cordeiro se foi a Pero Peixoto, dizendo-lhe que o governador Ambrósio de Aguiar o declarara por capitão daquela nau e gente; que ele ia à ordem que Sua Mercê determinasse. Foi dele bem recebido e com muito alvoroço lhe disse que já a guerra não temia; respondeu Manuel Cordeiro que, tendo tal general como Sua Mercê, se não podia temer. Pero Peixoto estava mui enfadado desta ocasião, porque a gente como portuguesa tinha ainda fresco o agravo que dos castelhanos recebera, roubos de suas fazendas e injúrias de suas pessoas, como em tamanho saco como o de Lisboa havia acontecido, que, posto que dos muros afora, é quase igual com a cidade; por este respeito, como também por a falsidade de D. António ter irmanados aos do comum, a quem era muito aceito este nome. Sentindo isto, sobejando-lhe razão, pelas melhores palavras que pôde, oferecendo promessas aos soldados, que el-Rei lhe faria mercês, os convocou a si , ainda que pesados. A armada do imigo tinha já deitado a lancha fora, e Pero Peixoto sabia ser a armada a que D. António tinha escrito à Terceira que mandaria em Março, de nove ou dez velas, e geralmente o serviria de tomar todos os navios que viessem de ponente e o galeão da Mina. Os da Terceira, com aquela esperança, diziam que não somente haviam de aproveitar-se dela para o efeito que lhe escrevera seu Rei, senão para virem tomar esta ilha de S. Miguel, e já jogavam muito de siso as fazendas dos ricos dela. Vinha por geral da armada francesa monsior de Landroi, e por seu sota-capitão monsior de Lacre , seu sobrinho, com pressuposto, induzido do governador Ciprião de Figueiredo, que nesta ilha havia servidores de D. António e estavam forçados nela os que publicavam outro nome, e não desejavam outra ocasião, e que em breve tempo poderia fazer esta viagem honrosa e de grande serviço de seu Rei, para que viriam com ele muitos soldados da Terceira e o padre frei Simão de Bairos; e que, não tendo efeito ser isto assim, havia muitos navios, que se recolhiam a esta ilha, em que faria grande presa. Pretendendo primeiro mandar o dito padre Frei Simão a pregar que se dessem ao serviço de D. António, para o qual efeito vinha, mas não houve tanto tempo, porque quando tornou a lancha, que reconheceu ser armada e navio grande, chamaram os franceses a conselho, onde houve diversos pareceres, e o do sobrinho do monsior de Landroi foi que não pelejassem e se retirassem. A razão que dava era ser o perigo muito e o proveito nenhum, porque a armada não tinha mais que pelouros, e que aquilo dizia não por escusar a peleja, mas que era bom poupar-se para outra melhor ocasião. Foi-lhe respondido pelo geral que era aquilo medo, do que o monsior de Lacre, ou de Tui, se sentiu muito, e logo se despediu e foi para a sua nau, respondendo ao senhor de Landroi: — a me dizer isso outrem que não fôreis vós, a quem eu por tio sofro, satisfizera-me muito bem; bem sabeis que em França não há melhor soldado que eu; no que me satisfaço é que não tornarei a França, e vós sim. Assim se despediu e foi à sua nau monsior de Lacre, e disse a seus soldados: — filhos, acendei vossos morrões e lograi-vos este dia de vosso capitão, porque amanhã não o tereis, à fé de gentilhomem; que é jura, como se dissera, à fé de fidalgo. A seus soldados pesou muito de sua pena e quase todos o seguiram, como logo direi.
A ordem de repartir a peleja foi que três naus, em que entraria a capitaina e sota-capitaina, abalroariam o nosso galeão e com muita força investiriam; que, destroçado ele, não custaria nada tomar o acessório. Como disseram e determinaram, o fizeram, investindo a capitaina o galeão pelo convés, e as duas passaram uma por popa, e outra por proa. A ordem que Pero Peixoto teve foi mui ardilosa: tratou de não dispender tiro que não fosse executado, e assim foi que, estando muito perto, disse ao condestable que, posto que não se perderia tiro, deixasse vir mais perto o imigo; e veio tanto, que com toda a artilharia lhe deu, fazendo-os apartar. Foi isto tanta parte da vitória que segundo vinha duvidosa fora certa, se como vinham determinados abalroaram. Monsior de Lacre levava seu pressuposto na nau nossa sotacapitaina, e investindo com ela a meia nau, pondo-lhe o gurúpes, começou a escaramuça de muita artilharia, arcabuzaria, panelas de pólvora, que ardiam ambas em fogo, por não achar menos resistência em nossa nau, pela valia de seu capitão, que era a muitos encontros destes mui acostumado, em que pelejou com muito esforço, e aqui com não menos o fez. Deste primeiro encontro, como os pelouros eram muitos, a mor parte dos homens de honra dos nossos foi deles morta. Manuel Cordeiro de Sampaio, querendo ir a investir outra nau, que também era ingresa, conhecendo-se uns a outros se desviaram, e vendo Manuel Cordeiro a ribaldaria de seu patrão, levou um montante para lhe cortar a cabeça, se se lhe não desculpara, com dizer que ia a nau mal alastrada.
Vendo o dito Manuel Cordeiro que sua tenção não tinha efeito e cuidando perder reputação, se arriscou a maior perigo, dizendo a seus soldados: — senhores, a honra, se a viemos ganhar, naquela nau de el-Rei nos está mais aparelhada, pois os imigos a têm rendida. Eles lhe responderam como tão principais que eram e, tomando o barco de seu navio, se embarcaram, ele primeiro, e eles logo. Por serem pessoas tão particulares, particularmente direi seus nomes: Manuel Cabral Botelho, António de Benevides de Sousa, o Cerne, Pero Roiz de Sousa, um Almeida, do Porto, mercador, que por amisidade de Manuel Cordeiro se embarcou com ele, os irmãos do dito Manuel Cordeiro, António Cordeiro de Benevides, André Cordeiro de Sampaio, Mateus Cordeiro de Sampaio e Rodrigo Álvares Castanho, criado do dito Manuel Cordeiro. Chegando à nau, que de todo estava rendida, se a tal tempo tal socorro se lhe não dera, com tanto brio e ânimo arremeteram, que mal se pudera julgar qual subiria primeiro, dizendo Manuel Cordeiro: — senhores, não diga o governador Ambrósio de Aguiar que homens das ilhas não têm merecimento, como quem mais o tem; e outras palavras que lhe soube bem dizer. Ficou tal o capitão da nau, que cobrando novo ânimo se começou com o novo socorro atear a batalha, com que logo os imigos sentiram seu dano com muitas arcabuzadas, pedindo o dito capitão Manuel Cordeiro o lugar mais perigoso, onde se arriscasse ele e sua gente. Daquele encontro, havendo meia hora que pelejavam, lhe mataram seu irmão, António Cordeiro de Benevides, e lhe caiu a seus pés morto, sendo cousa rara o que ali aconteceu! Caindo o irmão a que tanto queria, com um sembrante alegre disse: — cobri-o com um bérneo; sem por isso mostrar sentimento, passando adiante, como se lhe não fora nada. Foi grande a perda deste nobre mancebo, por concorrerem nele todas as partes que um homem da sua qualidade havia de ter; letrado de muitas esperanças, morreu por sua Pátria e serviço de seu Rei. Estavam já dantes embarcados mais de oitenta homens da terra, nobres e plebeus, com Martim Afonso de Sousa e seu irmão Pedro Afonso de Aguiar, filho morgado do governador Ambrósio de Aguiar, e outras pessoas nobres, Simão do Quental, Fernão do Quental e Diogo Machado, filho de António Machado, que por ser bom arcabuzeiro e de grande ânimo, matou cinco ou seis dos imigos e feriu outros, enquanto durou esta batalha das duas naus abalroadas, véspera da Ascensão, do meio-dia até às seis horas da tarde, pouco mais ou menos; tendo sempre no sentido, com grande devação, a sua tia Margarida de Chaves, que tem por santa e faz milagres, e diz que ela o livrou de tal perigo, porque passando por ele os pelouros, matavam detrás a outros da mesma nau; pelo que o governador lhe deu logo uma praça na fortaleza e depois, andando em requerimentos na corte, alegando a Sua Majestade seus serviços, foi bem despachado para a Índia. E outras muitas pessoas da terra se acharam então na nau de Sebastião Gonçalves d’Alvelos, onde foi a maior força da peleja e mais perigo.
Rui Vaz Medeiros, capitão da infantaria, que estava na outra nau inglesa, a fez alevantar à vela e, perpassando algumas vezes da banda do mar pela nau almirante dos franceses, lhe dava suas surriadas, assim de bombardas, como de arcabuzaria. O mesmo faziam todas as caravelas da armada, principalmente S. João, fretada, cujo capitão era grande amigo do capitão da almiranta portuguesa. E sempre tomaram a almiranta francesa e abalroaram com ela, se não entenderam que estavam apostados os franceses a matar com fogo a si e aos que entrassem com eles.
Imputavam a culpa os da terra, quando viam que as naus ingresas tinham voltado sobre a costa, cuidando que todos os capitães estavam dentro; mas quando souberam que Manuel Cordeiro era passado da nau ingresa, acudindo à nossa capitaina, se embarcavam tantos até a nado, que não os queriam receber dentro nela, pola não empacharem.
Antes disso, aparecendo a armada francesa, um Bartolomeu Cabral, natural da terra, nobre cidadão da cidade da Ponta Delgada que sempre sustentou a voz de Sua Majestade e lhe foi tão leal vassalo que nunca estimou pelo servir os perigos da vida, se embarcou só a socorrer a dita nau de que era capitão Sebastião Gonçalves d’Alvelos; e foi o primeiro que nela entrou, dizendo em voz alta: — já foi tempo em que os homens costumavam ir a África a ganhar comendas; agora me fez Deus mercê que a venha ganhar nesta nau, em serviço de Sua Majestade. Recebendo-o o capitão com muito alvoroço, por o conhecer por muito bom cavaleiro, o encarregou da gente de tolda, lugar muito arriscado, donde pelejou mui valorosamente por sua pessoa, com panelas e alcanzias de pólvora e com uma bomba de fogo, com que queimou a vela e enxárcia do traquete de proa da almiranta francesa; e não contente com isto se subiu à xareta de cima de popa, lugar de mais perigo, com uma lança de fogo, para lhe fazer o mesmo dano na vela grande, donde o derribaram abaixo com um pelouro de uma bombarda, com que lhe deram por um quadril, e foi levado a terra por morto, havendo quatro horas que pelejava; da qual ferida esteve três meses e meio em cama, desconfiado da vida, e ficou aleijado e manco. Ainda com as feridas abertas, vindo depois D. António sobre esta ilha com sua grossa armada acometer a terra, se alevantou da cama e foi a cavalo, com suas armas, ajudar a defender a desembarcação, animando a todos que pelejassem. E no ano de setenta e oito, estando na cidade de Lisboa, foi de armada a sua custa esperar as naus da Índia, em companhia do mesmo capitão Sebastião d’Alvelos, por haver novas de cossairos que as vinham buscar; pelos quais e outros mais serviços, o filhou Sua Majestade por cavaleiro fidalgo de sua Casa e lhe fez mercê do hábito de Cristo, com vinte mil réis de tença, e que pudesse renunciar ao ofício que tinha de escrivão do lealdamento dos pastéis da dita ilha em quem quisesse, e de cinquenta cruzados para ajuda do custo. Como também, pelos serviços que fez seu irmão Diogo de Oliveira de Vasconcelos, e por na entrada da ilha Terceira, no ano de oitenta e três, morrer de duas arcabuzadas que lhe deram, fez mercê a Ana Cabral, sua mãe, de cem cruzados de ajuda para meter freira uma e duas netas que tem, e a ela três moios de trigo de tença em cada ano em sua vida, pagos na feitoria desta ilha de S. Miguel.
Como tenho dito, a capitaina francesa, com outra nau, vieram direitas ao galeão S.
Cristóvão, o que vendo o capitão Pero Peixoto, com grande ânimo esforçava a gente, dizendo que não temessem, que toda aquela armada francesa não bastava para render aquele galeão que era uma fortaleza e não galeão. E mandou com muita pressa serrar muitas pipas pelo meio e encher umas de água, para que se caísse algum fogo que os franceses deitassem dentro, emborcassem as tinas de água com que logo o apagassem, outras cheias de pão, outras de vinho com suas taças de pau dentro, outras com azeitonas, no convés; assim trabalhava a gente e mais comia. Mandou também pôr nas gáveas muitos calhaus de mão e maiores, e algumas alcanzias de fogo, com certos homens em cada uma, que também tinham seus arcabuzes consigo e soma de dardos, e as gáveas muito bem forradas de couros e colchões para guarda da gente. E mandou pôr em baixo cada um em sua estância, donde pelejasse com seu arcabuz e espada e um pique ao longo de si, e os bombardeiros em suas estâncias, onde estavam capitães postos pelo capitão-mor.
Antes da armada francesa chegar à nossa, se embarcaram no galeão algumas pessoas da terra, que foram Manuel Serrão, João de Robles, Gaspar Camelo e outros, a que o capitão fez muita festa e lhes deu de estância a do prepao.
Chegados os franceses a tiro de barreira de arcabuz, ou pouco mais, do galeão português, largaram uma âncora pola mão, com tenção de abalroarem, começando logo a disparar sua muita artilharia grossa, que traziam, e após ela muita arcabuzaria, assim da capitaina, como da outra nau sua companheira. E tão bastos davam os pelouros no galeão português, que pareciam trovões amiudados, cujo capitão Pero Peixoto, com grande ânimo, correndo pelo dito galeão, de uma estância na outra, esforçava a gente, mandando que estivessem prestes e ninguém atirasse sem seu mandado. Em acabando os franceses de disparar sua artilharia e arcabuzaria, ficaram a par com o galeão português; então disse o capitão Pero Peixoto com alta voz: — pôr fogo, pôr fogo, duas vezes, e logo foi posto e ouvidos tão bravos estouros e estrondos da muita e muito grossa artilharia, que o galeão trazia, e após ela a arcabuzaria, que podiam ensurdecer os presentes, como as cataratas do rio Nilo. Também das gáveas lhe deitaram algumas alcanzias de fogo, de que não caíram na capitaina francesa mais que uma só, que logo foi apagada. Mas os pelouros da artilharia francesa, que davam no galeão português tão bastos como tenho dito, caíam no mar, sem entrar nenhum dentro senão polas obras mortas, com que feriram cinco homens, um dos quais foi o mestre, mas nenhum morreu disso. A gente do galeão português via passar os seus pelouros pelas naus francesas de uma parte a outra, e no mar o mantimento deles, que levou um pelouro diante de si, passando pelo paiol. Vendo-se os franceses tão mal tratados, largaram a amarra pela mão, deixando-se ir naquele bordo até defronte da vila da Alagoa. E ali viraram na volta do mar e andaram bordo ao mar, e bordo à terra, sem mais cometerem nada, até que a almiranta francesa se desembaraçou e espediu da almiranta portuguesa. E então se foram os franceses todos na volta do mar, sem aparecerem mais, indo-se à Terceira a consertar dos muitos buracos que levavam e sanear suas quebras e curar a gente ferida.
Vendo o capitão mor Pero Peixoto acolher-se a almiranta francesa, a altas vozes dizia, no seu galeão: — ah! que farei, que se há-de ir aquele ladrão! Eu, se me desamarro e lhe dou caça, tomo-o, mas fico fora da companhia e entre os franceses, onde me poderão tomar, e, tomando-me a mim, tomarão toda a armada e a terra; ora mais vale que se vá um ladrão, que não que me perca eu e toda esta armada. A qual razão pareceu bem a todos os homens honrados que no galeão estavam. E com isto se foi a almiranta francesa, sem a tomarem, ainda que muito mal tratada. E, se o galeão tivera seu batel fora, nunca a francesa se fora, porque pudera levar algumas peças de artilharia, com que acudira à sua almiranta; do que o dito Pero Peixoto se mostrava mui magoado, sem ousar mandar atirar do seu galeão à almiranta francesa, com receio de a errarem e darem na portuguesa ou passarem os pelouros ambas juntamente, a francesa e a portuguesa. As outras caravelas portuguesas e nau ingresa de Rui Vaz Medeiros, como tenho dito, ainda que perpassando à vela dessem bataria à almiranta francesa uma vez ou duas, não puderam tornar a perpassar, porque, quando bem se tiveram que não descaíssem entre as francesas e tornaram a tomar suas amarras, que tinham largadas pela mão, não fizeram tão pouco. Da almiranta portuguesa matavam às arcabuzadas os franceses que viam ir cortar o gurupés, que é o masto em que anda a cevadeira, por onde a sua nau francesa estava embaraçada de maneira que nunca a puderam cortar; e assim durou a guerra as seis horas que tenho dito, até que se quebraram as enxárcias da almiranta portuguesa e se espediu a francesa, em que já não havia mais que cinco ou seis pessoas que ficaram cortando as arrataduras do seu gurupés. E é certo que lhe mataram cento e cinquenta homens, um dos quais foi o seu capitão e almirante monsior de Lacre ou de Tui, que levaram os seus, que escaparam, salgado à Terceira, onde foi enterrado com grande pompa no mosteiro de S. Francisco da cidade de Angra, por lhe acharem em sua caixa um testamento feito como bom cristão e católico. Dos portugueses, morreram nesta batalha catorze ou quinze pessoas, entre os quais foi aquele generoso e delicado mancebo António Cordeiro de Benevides, irmão de Manuel Cordeiro de Sampaio, juiz do mar, na nau Bom Jesus, de que era capitão Sebastião Gonçalves d’Alvelos, onde ficaram mortos nove homens e dezassete feridos.
E depois, dali a alguns dias, faleceu o mestre e senhorio da caravela S. João, fretada, por sair da guerra ferido de um tiro que os nossos atiraram. E saíram da mesma batalha mais de trinta portugueses feridos. Dois franceses fugiram no barco da nau e outro se desceu por um cabo para se ir com eles, e, não o querendo recolher, o foi tomar um esquife do nosso galeão, o qual descobriu muitas cousas dos seus.
O mesmo dia da peleja, mandou o governador Ambrósio de Aguiar recado a Rui Gago da Câmara, capitão mor da gente de milícia da vila da Ribeira Grande, para que lhe mandasse socorro à cidade e à vila da Água do Pau, onde se suspeitava que sairia a gente da armada francesa que andava à vela. E no mesmo dia partiu o capitão Nuno de Sousa, sem licença do capitão mor, com seiscentos homens para a cidade, durando ainda a peleja no mar. Foram bem recebidos do governador e fizeram corpo de guarda aquela noite ao redor da fortaleza, até que ao outro dia se tornaram. Rui Gago, capitão mor, foi com duzentos homens à vila da Água do Pau, com muita diligência, como outra vez teve, acudindo a Vila Franca com quinhentos homens, quando dantes queria desembarcar na praia dela um capitão que alguns diziam ser Jaques Soria, com três naus mui grossas, a que defendeu a desembarcação e entrada; o qual capitão, qualquer que fosse, se alevantou e afastou da terra. Ficou também então na vila da Ribeira Grande o capitão Pero de Paiva com duzentos homens para guarda dela, ou para acudir com eles onde mais necessário fosse, quando e como o dito governador Ambrósio de Aguiar ordenasse.