Depois de passada esta peleja e vitória, não tardou muito que chegaram a esta ilha de S.
Miguel quatro naus armadas de Guipuscoa com quatro companhias de soldados lhespanhóis, cujo cabo era D. Lourenço Cenoguera, que sua Majestade mandava para defenderem a terra em companhia de Pero Peixoto, as quais se vieram antes da dita batalha, sem falta fora o monsior de Landroi destruído com toda sua armada. Chegado D. Lourenço, consertou-se com Pero Peixoto que um defendesse o mar e outro a terra. E assim ficou Pero Peixoto na armada e D. Lourenço na fortaleza, debaixo da ordem do geral e governador Ambrósio de Aguiar Coutinho, que daí a poucos dias faleceu de sua enfermidade aos cinco de Julho de mil quinhentos e oitenta e dois anos entre as sete e oito horas depois do meio-dia, e logo ao outro dia foi sepultado com muito aparato e cleresia e gente de armas com elas às avessas, como é costume enterrar os Capitães, na capela mor do mosteiro de S. Francisco, da cidade da Ponta Delgada, em um ataúde, para depois poderem levar seus ossos ao Regno; o qual governou esta ilha um ano e pouco mais de um mês, porque chegou aqui no mês de Maio de oitenta e um e faleceu a cinco de Julho de oitenta e dois. Ficaram nesta ilha um seu enteado Martim Afonso de Melo, e dois filhos, o morgado, chamado como seu avô Pedro Afonso de Aguiar, e outro de pouca idade, por nome Rui Dias de Aguiar, que depois o dito Martim Afonso de Melo levou ou mandou para o Regno com os ossos de seu pai, que era homem grave, discreto, grande de corpo, gentil homem e tão colérico que se fazia temer.
Por falecimento do dito Ambrósio de Aguiar Coutinho ficava por governador o Capitão Alexandre, ou um de outros dois que Sua Majestade em uma sua patente nomeava. Mas, juntos os oficiais das câmaras de toda a ilha na cidade da Ponta Delgada, com o bispo D. Pedro de Castilho e o geral Pero Peixoto, e outros capitães e gente nobre, se determinou que fosse capitão geral e governador Martim Afonso de Melo, filho de Jorge de Melo Coutinho e de D. Joana da Silva, por não parecer que a gente desta ilha o enjeitava, por seu padrasto Ambrósio de Aguiar lhe não estar tão aceito em sua vida a todos eles e também por ele o merecer por sua pessoa e condição, que tinha muito mais macia que seu padrasto. O pai deste governador Martim Afonso de Melo, chamado Jorge de Melo Coutinho, foi camareiro mor do Infante D. Duarte, irmão de el-Rei D. João, terceiro do nome. E seu avô, do dito Martim Afonso de Melo, era muito privado de el-Rei D. Manuel, e foi à China por capitão mor de uma armada.
E procedem direitamente da casa do conde de Marialva. O qual governador Martim Afonso de Melo teve o governo desta ilha de S. Miguel, de então até à vinda de D. Rui Gonçalves da Câmara, conde de Vila Franca do Campo e sétimo Capitão da mesma ilha, terceiro do nome, pelo que continuarei com ele até à vinda do dito Conde.
Sendo assim capitão geral e governador Martim Afonso de Melo, assistindo na fortaleza ele e o capitão D. Lourenço Cenoguera, apareceu aos catorze e aos quinze de Julho de mil e quinhentos e oitenta e dois anos, domingo do Anjo, pela banda do sul, D. António com uma grossa armada de sessenta velas, entre grandes e pequenas, em que vinham oito mil soldados bem luzidos e armados, e por geral dela o capitão Filipe Strosse, filho de Pero Strosse, que foi geral do campo de el-Rei de França, e seu marichal , e o conde de Vimioso, Condestable de Dom António e geral do mar, e outros muitos senhores e fidalgos franceses e portugueses, e alguns frades e letrados. Vendo Pero Peixoto que não lhe podia resistir , chegando as cinco velas de sua armada à fortaleza, lhe mandou dar furo e arrombá-las, para que os imigos se não pudessem aproveitar delas, ficando inteiras e quase despejadas as quatro naus biscainhas, que os franceses de noite levaram atoadas com os esquifes. E das cinco velas alagadas se tiraram depois quase todas as peças de artilharia, que nelas ficaram, e hoje estão na fortaleza e junto dela, onde se retirou e recolheu a gente da dita armada.
O bispo D. Pedro de Castilho e Martim Afonso de Melo, Pero Peixoto e o Capitão Alexandre, com todos os mais capitães, entrando em conselho do modo que teria para defensão da terra, acordaram pôr toda a gente em estâncias donde nenhum se movesse sem seu mandado, o que assim se fez, determinando todos no conselho que nisso tiveram, que pois a armada que ali estava se não podia defender da de D. António, abordassem os navios ao pé da fortaleza, e lhe tirassem a munição ficando neles alguns bombardeiros que atirassem alguns tiros para serem defendidos da fortaleza, e havendo pressa dessem com todos eles à costa, abrindo-lhe alguns buracos, por não fazer o imigo muito mais poderoso se tomasse o nosso galeão e navios, como está dito. Ao domingo pela manhã, que era dia do Anjo, já estava toda a gente em suas estâncias, por esta ordem: D. Lourenço, capitão de uma companhia de castelhanos, na ponta de Santa Clara; D. João de Castilho, junto da ermida do Corpo Santo; no cais, com muita gente da cidade e outra dos lugares de fora, o capitão João de Melo; no areal do Rosto de Cão estava também muita gente com seus capitães da cidade, e bombardas, por ser passo mais fácil para entrar a terra. E daí até a vila da Alagoa, estavam nos passos perigosos bandeiras da Ribeira Grande e da Alagoa, que seriam mais de mil e quinhentos homens. E o capitão mor corria as estâncias animando a todos. O mesmo fazia o bispo D. Pedro de Castilho, com muito calor. Pero Peixoto estava no areal de Rosto de Cão com os capitães e muita gente de guarnição do mar. Aparecendo ao domingo pela manhã, à ponta da Galé, a armada de D. António, mandou diante em um barcote um embaixador com bandeira branca e cartas para Pero Peixoto e outros, o qual Pero Peixoto avisou aos mais capitães que não dissessem estar ele ali. Desembarcando o embaixador junto da fortaleza, foi levado dentro, diante do capitão mor Martim Afonso de Melo e o bispo e corregedor e mais capitães, que lhe perguntaram que queria. Ele disse que trazia uma carta para Pero Peixoto e a ele havia primeiro de dar o recado e depois daria os que trazia para outros. E, dizendo-lhe que Pero Peixoto não estava ali, senão na armada, pelo que desse a carta para lha mandarem, nunca a quis dar, dizendo que se tornaria assim, já que não lhe queriam dar cópia dele, e protestando que, se se não rendessem, haviam de ser entrados; e respondendo-lhe que a terra se havia de defender, se tornou sem mais resposta. Sendo levado pelo meio da cidade para ver a muita gente de guarnição que nela havia, foi embarcar no cais, dizendo e mostrando ser nada a resistência que tinham os da terra, para poder defender a entrada aos do mar que eram muito mais. E a horas de meio-dia se tornou na sua armada.
Com o correr, voltar e acometer das naus a uma parte e a outra do areal de Rosto de Cão até à Alagoa, corriam também os soldados hespanhóis a diversas partes, e Martim Afonso, Pero Peixoto, e o bispo com eles, animando-os, fazendo pela costa e areais fazer trincheiras e covas na areia, que servissem de repairo aos soldados, porque nenhum repairo estava feito pelo governador passado, ainda que tinha recado de Sua Majestade que havia de vir sobre esta ilha aquela armada, o que foi causa de se cansar e desvelar muito a gente, acudindo a tantas partes por quantas eram cometidos, posto que fossem bem providos de mantimentos, pão, biscoito e vinho, que algumas pessoas da terra mandavam levar onde eles andavam. Contudo não sei se desembarcaram, se não foram os acenos que da terra lhe faziam para desembarcar em lugar de penedia não esperado, como ao dia seguinte, segunda-feira ao meio-dia, dezasseis de Julho, deitaram gente armada fora, tirando primeiro muita artilharia e pelouros contra a terra, com que mataram no areal de Rosto de Cão três ou quatro biscainhos e castelhanos, desembarcando entre a ponta Longa e o Calhau onde entesta a terra de Cristóvão Soares , em dez lanchas ou barcos grandes, a gente de um dos quais se afogou ali, sem nenhum escapar, tomando água pela popa com o peso das armas. Sete deles enxoraram em terra, onde ficaram e os desfez depois a gente da ilha, aproveitando-se de sua madeira. De dois que foram mais para loeste, saíram os soldados sem nenhum perigo, alargando-se logo ao mar, sem serem vistos os que desembarcaram dos da terra que estavam guardando o porto dos Carneiros, na vila da Alagoa, e passos em outras partes. Depois desta, saiu outra muita gente, que por todos seriam três mil homens. O primeiro que pôs o pé em terra foi um sobrinho de Filipe Strosse, que quis esta honra, e com ele o conde de Vimioso. Depois, ao dia seguinte, terça-feira, com D. António e Filipe Strosse e outros senhores, saíram dois mil soldados, como adiante direi. Ao tempo que os três mil desembarcaram, andavam as naus dos franceses tão juntas e espessas e seus navios pequenos, patachos e lanchas com espessos tiros, que matavam a alguns biscainhos que não podiam ver de terra, nem divisar quando deitaram a gente fora, nem se suspeitava que em tal lugar pudesse desembarcar, por ser muito perigoso.
Saídos os franceses em terra e ouvida esta nova por D. Lourenço que estava então em guarda do areal de Rosto de Cão, onde algumas naus acometiam, por ser lugar de mais fácil desembarcação, acudiu acorrendo lá com seus soldados e muita gente da terra, de pé e de cavalo. E vendo tanta gente, com que tinham já em terra seu esquadrão formado e fechado, e não ser lugar para dar batalha, disse: — bueltas las caras para el castillo. E assim se recolheram para a fortaleza. O governador Martim Afonso de Melo, que estava na vila da Alagoa, onde suspeitava que saíssem os franceses em terra, com o capitão dos Fenais, Diogo Lopes de Espinhosa, Bartolomeu Nogueira e outros capitães e nobres da terra, por não poderem já passar pelo caminho onde os imigos estavam, se foram pelo pico de João Ramos à cidade, indo primeiro Diogo Lopes dar recado a sua mulher e aos seus que se saíssem do lugar dos Fenais, suspeitando o que foi, porque os franceses depois de desembarcados, roubadas as vinhas e saqueada a vila da Alagoa, foram marchando com o conde do Vimioso caminho do dito lugar dos Fenais, onde houveram de matar o capitão Diogo Lopes e todos os seus, se já não estiveram postos em cobro. Assim foram por cima do lugar de Rabo de Peixe ter a casa de Adão Lopes, marido de Maria Moniz, onde roubaram muito fato que de diversas partes lá estava posto em guarda, cuidando tão longe estar seguro. E foram ter junto do Cascalho, ao pé de uma serra, onde aconteceu o que agora direi.
Porque em semelhantes revoltas e ocasiões nunca faltam tredores e treições, de Vila Franca do Campo houve algum que a fez entregar a D. António, sem quererem ajudar nem seguir ao Capitão Alexandre para defender a entrada e ir ajudar aos que estavam na vila da Alagoa, antes o quiseram prender se ele se não soubera acolher ao monte, nem os da vila da Água do Pau acudiram, havendo dois dias que D. Lourenço Cenoguera lhe tinha defendido a entrada, sem suspeita que seria tanta gente desembarcada. Houve outros tredores andaluzes, naturais de Sevilha, um dos quais, fazendo-se do número e companhia dos soldados da fortaleza, determinava pôr fogo à pólvora que nela estava, ou dá-la a D. António, o qual, por mandado de D. João foi dependurado por um pé de um pau lançado por cima fora da fortaleza, onde esteve assim três dias e morreu infamemente para exemplo e terror a outros semelhantes tredores. E outro mulato, ordenando um falso aviso e emboscada para que os nossos fossem tomados e mortos no meio, dizendo ser tão poucos os franceses que estavam ao pé da encumeada do Cascalho, que não passariam de quinhentos, amotinou o povo todo da cidade da Ponta Delgada, que murmurava de D. Lourenço, dizendo que era covarde, pois não ia cometer os franceses desembarcados. O qual tredor foi depois posto em um pau alto, onde às arcabuzadas o fizeram em pedaços, e sendo primeiro posto a tormento, confessou que, querendo-se embarcar e recolher na armada com D. António, quando sentiram vir a de Hespanha, o não consentiu, dizendo-lhe que em ficar na ilha lhe faria mais serviço, e tanto que depois o faria conde dela.
Vendo D. Lourenço Cenoguera o aviso do tredor, que cuidou ser fiel dos seus soldados, e a murmuração do povo inconsiderado, partiu da fortaleza em busca dos imigos com quatro companhias de infantaria, que seriam até quinhentos homens, e outra companhia, tirada das naus de Guipuscoa, de cento e cinquenta arcabuzeiros, com alguns capitães e gente da terra, onde ia Manuel Cordeiro de Sampaio, juiz do mar, e Diogo Lopes de Espinhosa, João de Arruda da Costa e Bento Dias, filho de Jorge Dias, feitor, e outros muitos que seria largo de contar. Marchando meia légua costa arriba, chegaram mui cansados e suados com o peso das armas e longo caminho ao cume da serra , ainda que D. Lourenço viu os imigos serem tantos e postos em muita ordem, com seus esquadrões formados, animando os seus e indo na dianteira, os foi cometer com grande ânimo, como fortíssimo guerreiro de claro sangue, onde se travou uma tão furiosa escaramuça que cuidaram os franceses ir ali muito mais número de gente da que viam, não podendo crer terem atrevimento tão poucos contra tantos; mas, vendo que não aparecia mais, mandaram uma manga de gente por detrás de um pico para tomar os nossos pelas costas, indo-se os mais retirando para melhor os colherem no meio. Os biscainhos e castelhanos tiraram quatro rociadas, com que fizeram nos franceses grande dano. O capitão D. Lourenço Cenoguera, que ia diante, se encontrou com outro capitão francês, chamado Roque Morea, pelejando meia hora ambos sem se apartarem um do outro, até que o francês caiu morto em terra. E saindo outro em seu lugar, por nome monsior Ferreira, deu uma grande ferida a D. Lourenço, de que logo caiu e, sendo alevantado pelos seus, sabendo da manga da gente que o ia cercando, mandou a grande pressa retirar os seus, e a pé, ferido, subiu até a encumeada da serra, o que dizem ser grande causa de sua morte. Chegando então a ele Pero Peixoto, fez com que tornassem para a cidade, indo D. Lourenço com três feridas, e outros soldados sem pernas e braços, e os mais marchando a grande pressa, por que os franceses que atravessavam os não acolhessem no meio do caminho. E, se não saíra D. Lourenço ferido, fora causa de se não recolher tão presto, com que ele e todos os seus ficaram mortos e perdidos naquela emboscada. E assim ficaram somente mortos, dos hespanhóis vinte e cinco, e dos franceses cinquenta, e com os que morreram em toda a ilha perto de duzentos. E se não mandara Deus a este tempo uma borriscada de chuva e vento, que encobriu uns e outros, nenhum hespanhol escapara com vida, porque já os franceses entendiam não haver mais gente que a que aparecia ao redor daquele pico do Cascalho e eles eram muitos. Chegando à cidade com tenção de a entrincheirar pelas bocas das principais ruas, vendo a gente desmaiar e fugir, se recolheram à fortaleza D. Lourenço com os seus biscainhos, o governador Martim Afonso de Melo, o bispo D. Pedro de Castilho, Pero Peixoto, o corregedor Cristóvão Soares de Albergaria, Diogo Lopes de Espinhosa e alguns nobres da terra. Mas, posto D. Lourenço com as mortais feridas em agonia da morte, deu ao outro dia a alma a Deus que a criou. E foi muito sentida de todos a morte de tão generoso fidalgo e valoroso capitão; por cujo falecimento se ajuntaram em conselho todas as principais pessoas que ali se acharam, sobre a quem se havia de dar aquele ofício, e por fim o entregaram a Pero Peixoto, o qual determinando de ir avisar a el-Rei como a terra era entrada dos franceses, se embarcou de noite com outros capitães, em um patacho, caminho de Lisboa, ficando em seu lugar D. João de Castilho.
Andando D. António com parte de sua armada junto da costa da vila da Alagoa, o foram ver algumas pessoas de Vila Franca com o vigairo dela, e lha entregaram, por não serem saqueados. E depois se lhe renderam outras vilas, como foi Água do Pau e Ribeira Grande, com o mesmo receio.
A terça-feira, dezassete de Julho, desembarcou o dito D. António e Filipe Strosse, geral de toda a armada, e outros senhores e fidalgos de França, com dois mil homens, e foi pousar nas casas de Jorge Nunes Botelho, no lugar de S. Roque, donde se passou depois para as de Amador da Costa. Dali começaram os franceses a saquear os arrabaldes da cidade, uns pelas vinhas, outras pela Calheta de Pero de Teve, e os que ficaram no Cascalho, levando consigo o capitão morto por mãos de D. Lourenço Cenoguera, foram descendo até o lugar dos Fenais, termo da cidade da banda do norte, em cuja igreja paroquial de Nossa Senhora da Luz o enterraram. E, saqueando o dito lugar, não somente acharam e tomaram nele a riqueza de seus moradores, mas também de muitos da cidade e de outras partes da ilha que lá mandaram levar, cuidando estar ali tudo muito mais seguro, pelo que se disse que iam buscar ao capitão Diogo Lopes de Espinhosa, que ali residia e morava, para defender as entradas que os da Terceira acometeram fazer naquele lugar os dias antes. Estava no dito lugar D. Jorge Pereira, irmão do conde da Feira, recolhido com sua mulher e filha e quanto tinha, que da cidade levara, cuidando estar ali seguro; e tudo lhe roubaram os franceses. E, não contentes com isto, o traziam com um carro para lhe acarretar o fato roubado. E sabendo ele que ali estava o conde, se foi a sua pousada terça-feira à noite, dizendo-lhe: — Senhor, se eu falando com Vossa Senhoria falo com o conde de Vimioso, lembro a V. S. que sou irmão do conde da Feira, e porque me pareceu que neste lugar escapasse com minha mulher e uma filha donzela que tenho aqui, caí nas mãos de vossos soldados que não me hão deixado cousa alguma, e além disto me querem trazer a acarretar fato com um carro e, porque não quis isto fazer, hão usado de rigor comigo, querendo pôr as mãos em mim, e outras cruezas e desaforos que, onde está pessoa tão ilustre e clara como Vossa Senhoria, não se esperam. A que o conde de Vimioso respondeu: — não sei que vos faça a isto; sem lhe fazer nenhum gasalhado, nem mandar tornar cousa alguma, ainda que era muito seu parente.
Depois de saqueado o povo dos Fenais, se foram os franceses saqueando e roubando as quintas e vinhas, pomares da Fajã que diante achavam e muita riqueza nelas escondida, até chegar onde D. António estava, sem ousar entrar na cidade, até que por suas espias souberam estar despejada de toda a gente. Com o qual tratou o conde de Vimioso de como a gente da cidade e da vila da Ribeira Grande e outros lugares, ricos e pobres, estavam quase todos emboscados e escondidos na serra, em lugares ásperos onde não podiam ser tomados, levando freiras e mulheres casadas e moças de má vida, pelo que devia mandar lançar pregão que todos os moradores da cidade e das outras vilas e lugares se reduzissem e tornassem a seus domicílios com suas mulheres e filhos, com todo o seu dinheiro e mais fato, sem nenhum receio de haver algum dado, porque tinha posto pena de morte a qualquer soldado de seu exército que tocasse em alguma cousa dos vizinhos de toda a ilha, pois já era o tempo do saquo acabado e ele não vinha senão a fazer-lhe mercês e morrer pelos libertar. E assim foi apregoado no seu arraial e em todos os lugares que na cidade possuíam, o que se cumpria somente onde o dito D. António estava; mas, nas outras partes, ditoso era o porco ou gado que não aparecia, e mais dita tinha o dono do dinheiro e fato que os soldados franceses não achavam. E, porque a igreja matriz do mártir S. Sebastião, da cidade da Ponta Delgada, ficara armada com muitos e ricos panos de armar, cartas de Frandes e outras cousas ricas, da festa que se tinha celebrado do Santíssimo Sacramento e do Anjo Custódio, os dias atrás, acordado disso o cura Gaspar Manuel, que então era, foi pedir a D. António que mandasse pôr guardas na dita igreja, para não ser saqueada nem roubada, o que ele mandou fazer. E depois, quando com muita pressa se embarcaram os franceses, ficou nela tudo mais seguro que o que tinham escondido pelos campos. Mandou também o dito D. António logo cartas e recados para o licenciado António Camelo, António de Brum, Marcos Lopes Henriques e outras pessoas ricas e poderosas, e para o licenciado frei António de Hlarcão, custódio, e para o guardião frei Pero Mestre, que com as freiras do mosteiro da Esperança estavam junto da serra das Sete Cidades, e para as religiosas de Santo André que estavam na cafua do licenciado António Camelo, o que foi divulgado a quinta-feira pela manhã em toda aquela serra de cima dos lugares de Santo António e Bretanha até sobre as Sete Cidades, onde também foram cartas do conde de Vimioso, com que muitas mulheres diziam a seus maridos que se tornassem aos povoados, pois não podiam andar pelas serras e traziam os pés correndo sangue, levando muito má vida de frio, calma, fome e sede, onde nalgumas partes não bebiam senão água encharcada. E algumas pejadas pariram e baptisaram seus filhos entre o mato. Mas, nenhuns dos homens honrados e discretos se quiseram tornar logo, senão alguns poucos que não tinham cabedal que perder, nem que comer no ermo, onde os poderosos se deixaram ficar até chegar o marquês de Santa Cruz, que por horas e momentos se esperava. Também alguns vigairos e beneficiados se foram de suas igrejas para lugares remotos, sem quererem tornar até os franceses serem embarcados, posto que D. António tinha mandado que todos assistissem em suas igrejas, e aos que o não fizessem e andassem absentados, lhas tiraria e daria a outros. Somente, como tenho dito, o vigairo de Vila Franca, por rogo dos vereadores, foi com eles dar-lhe a obediência ao mar onde andavam defronte da vila da Alagoa, a terça-feira antes dele desembarcar, depois do seu exército estar em terra, o que depois lhe foi dado em culpa, de que dali a muitos dias se livrou.
Neste tempo, havia por muitas partes da ilha muitos recados e feitores de D. António que, com grande pressa, faziam levar à cidade muitos carros carregados de trigo e pão e pipas para água e muito gado de toda sorte, pelo que alguns iam do mato para as vilas e lugares, outros tornavam para a serra e ainda não acabavam de estar seguros, por andarem alguns soldados franceses derramados pela ilha e matarem alguns portugueses; ficando também alguns deles prantados por ela, que, como tenho dito, entre eles e os que morreram no Cascalho, seriam até duzentos, afora outros que prenderam, principalmente na vila da Ribeira Grande e mandaram presos à fortaleza.
Estando D. António no lugar de S. Roque, mandou uma carta a D. João de Castilho, capitão da fortaleza, escrita sexta-feira, vinte de Julho, em que lhe dizia que lha entregasse, pois sabia que era sua e via seu grande poder, e que lhe daria passagem para ele e sua gente e perdoaria aos portugueses; e, não o fazendo, mandaria tirar em terra das naus sete peças de bater, com que a bateria, e lhe fazia a saber que não vinha armada de Hespanha aquele ano, e para mais certeza disso mandassem lá uma pessoa que se informasse de um Carrião, alferes, que partira de Lisboa a sete de Julho, e ele havia tomado, o qual afirmava que nenhum socorro mandava el-Rei aquele ano a esta ilha. Ao qual o dito D. João de Castilho, e o governador Martim Afonso de Melo, e o bispo D. Pedro de Castilho, e o corregedor Cristóvão Soares de Albergaria, que dentro na fortaleza estavam, responderam que aquela fortaleza era de el-Rei de Hespanha e não se lhe entregaria.
Antes dos franceses chegarem, a saquear a cidade, os biscainhos recolheram dela muito fato e mantimento para dentro da fortaleza. E fizeram trincheiras nas bocas das ruas que iam ter à dita fortaleza, donde davam muitas surriadas de mosquetaria e arcabuzaria, para que os franceses não chegassem. E assestaram na mesma fortaleza a artilharia, como convinha; com o que derribaram e queimaram muitas casas, que estavam ao redor dela, para melhor se defender do combate que lhe dessem, e estando todos mui determinados e apostados a morrer por seu Rei, e D. António a combater a fortaleza, tendo já feitas muitas trincheiras na praça e ruas da cidade, com pipas e caixas, cheias de pedra e terra.
Mandou também D. António ajuntar muitos sacos por toda a ilha, de que na Casa da Misericórdia da cidade da Ponta Delgada estavam já juntos mais de mil. E mandava ir à dita cidade todos os carreiros e carros que se pudessem achar pelas vilas e lugares
para carregar o pastel que na cidade estava granado, de muitos mercadores, para com ele pagar muito dinheiro que, para fazer aquela sua armada em França, lhe tinham emprestado.
Em Vila Franca do Campo, pôs D. António, como em cabeça, por governador de toda a ilha, a um Diogo Botelho, com tenção de ficar nela com este cargo, indo-se ele; o qual mandou que todos os homens de cavalo e alguns de pé fossem ter à dita Vila Franca o domingo seguinte, para se fazer alevantar e jurar por Rei, com as solenidades e cerimónias costumadas. Ao sábado d’antes, pela manhã, se viu que vinha a armada de el-Rei Filipe, aparecendo ao nordeste, e correram estas novas pela vila. Foi grande a alteração que todos traziam com os pregões que se davam, que acudisse cada um a seus capitães e estâncias, sob pena de morte.
E, antes de chegar esta nova, chegaram dois patachos com armas e cavalos, que vinham diante da armada , aos quais foram logo soldados por mandado do capitão António do Porto, que andava defronte da vila com treze naus armadas de que era capitão, em um dos quais vinha o alferes Carrião, que D. António escreveu aos da fortaleza que daria testemunho como não vinha armada de Filipe aquele ano; mas, sabendo D. António a certeza daquele alferes do grande poder com que a armada vinha, e tendo novas ao sábado à tarde como já chegava a dita armada, se embarcou aquela noite até o domingo pela manhã, vinte e dois de Julho, com todos os senhores e soldados franceses, embarcando também da Vila Franca o governador Diogo Botelho, deixando por seu logo-tenente a Lopo Anes Furtado com o qual indo depois ter a gente de cavalo, que era chamada, os tornou a enviar para suas casas.
E para elas se recolheram, não somente os de cavalo, mas também os de pé, que andavam pelos matos, depois souberam estar a terra despejada dos franceses já embarcados, sabendo da vinda da armada de el-Rei Filipe, com que ficaram desafrontados dos contrairos que na terra estavam, por ter segura a vitória contra eles.