As cousas da guerra, posto que dantes tenham mui ordenados preparatórios, erigidas companhias e ordenanças, muitos e rigorosos preceptos e gravíssimas penas, e com passos contados vão marchando os capitães, alferes, sargentos, cabos de esquadra, soldados velhos e bisonhos com armas diversas, postos e arrumados em diversos lugares determinados, os arcabuzeiros e mosqueteiros na dianteira e logo após eles os piqueiros, lanceiros, alabardeiros e seus esquadrões formados com sua vanguarda e rectaguarda, sua artilharia assestada, trincheiras feitas, repairos, sentinelas, espias, corredores de campo e muitos outros oficiais de milícia que nela têm diversos nomes e cargos, subalternados todos com infalível e inviolável obediência uns a outros, dos soldados aos cabos, dos cabos aos sargentos, dos sargentos aos alferes, dos alferes aos capitães, dos capitães a seu mestre de campo, do mestre de campo a seu general, sem discrepar da ordem determinada o menor ponto do mundo, e toda esta ordem se guarda sem quebra, antes de entrar na batalha; todavia, depois de entrar nela, toda a ordem se desordena e todo o conserto se desconserta, porque então não há aí senão dares e tomares, ferir, acometer, retirar, amparar, ofender e ser ofendido, tendo mais lugar a boa fortuna e ventura, que Deus dá, que o bom conselho que os homens tomam, que vem depois a ter má saída, onde às vezes o fraco vence o forte, o pusilânime é mais valente, o ignorante tem mais prudência, o temerário melhor juízo, o desacordado muito melhor acordo, e o covarde pior sucesso, pois indo fugindo o pesca ao longe o pelouro perdido, e o ousado mais triunfante coroa, pois, posto na boca da fronteira das bombardas assestadas contra si, escapa de tão evidente e presente perigo e alcança gloriosa vitória. Vimos alguns que nunca cingiram nem tiveram espada, nem aprenderam a jogar dela, saírem no tempo da briga melhores mestres de esgrima que os cursados nas armas, porque a cólera lhe fica por mestre para as manear mais ligeiras, e como a mesma cólera não espera nem guarda talho ou revés, desordena todas as ordens usadas e por usar, e a aprender e aprendidas. Na guerra, finalmente já travada, é a ocasião então ordem, e a ordem faz muitas vezes perder a boa ocasião da vitória. E ainda que pela mor parte os muitos façam perder a virtude aos poucos, muitas vezes os poucos vencem os muitos; como aconteceu na cruel batalha naval que houve entre as duas armadas de Hespanha e de França, defronte desta ilha de S. Miguel, cinco léguas ao mar da parte do sul, que agora contar quero, onde tão poucos hespanhóis venceram quase dobrado número de franceses. E pois que a batalha, depois de travada não tem ordem, posto que dantes a tenha, nem eu a posso guardar no contar dela. E, como a guerra às vezes parece que se acaba e então outra vez começa e se ateia, assim contando-a eu, seguindo seu baralhado estilo, a tornarei algumas vezes começar a contar de novo, quando parecer que estou já no cabo dela; pelo que perdoareis, Senhora, meus desconsertos, como cuido que tendes perdoado os das cousas atrás, que contadas tenho, e haveis de perdoar os que tiver nas cousas que mais adiante contar pretendo, pois as desordens não se podem bem contar com ordem.
Estando o grande Rei Filipe coroado no Reino de Portugal e de posse dele, como sucessor por morte de el-Rei D. Henrique, e a ilha Terceira rebelada com a voz de D. António, que tinha jurado por seu Rei, e esta ilha de S. Miguel de contrairo parecer, obedecendo ao dito Rei Filipe, mandou ele ordenar uma grossa armada em duas diversas partes, convém a saber, em Lisboa e Sevilha, para ambas se ajuntarem a um mesmo tempo no mar do ponente, em favor da dita ilha de S. Miguel, sobre que sabia por suas inteligências
que se ordenava outra armada em França, e para guardar as frotas das Índias oriental e ocidental, que esperava. E, tendo aviso que era já partida de França a dita armada francesa que D. António, filho do Infante D. Luís, lá fizera com favor e ajuda da Rainha mãe e Filipe Strosse, marichal de França e geral da dita armada, e de outros senhores de França e de alguns portugueses de seu bando, mandando o dito Rei Filipe recado à armada de Sevilha, que no rio surta estava, detida com a peste, para que logo partisse, fez partir a outra que estava em Lisboa, em que vinha por geral D. Álvaro de Bazam, marquês de Santa Cruz, senhor das vilas de Viso e Val de Penhas, comendador mor de Leão, do conselho de Sua Majestade, e seu capitão geral do mar Oceano e da gente de guerra do Reino de Portugal, e por mestre de campo geral D. Lopo de Figueiroa, vitorioso em Lepanto, Granada, Navarra, Tunis, Querquenez e Frandes, acompanhado com mil e trezentos soldados velhos, do forte terço da Liga, e de D. Pedro de Toledo, marquês de Vila Franca, de grande esforço e experiência na guerra, e D. Francisco de Bovadilha por mestre de campo da dita armada, com dois mil soldados manchegos e luzidos toledanos, e D. Cristóvão de Erasso, nomeado nas batalhas, com mil soldados, sinalado por geral da armada das Índias, e o esforçado marquês de Favara, e o valoroso D. Pedro de Tharsis, e outros muitos cavaleiros de memória. E com quinhentos tudescos, em três urcas framengas, se ajuntaram quatro mil e oitocentos infantes, afora os entretidos e aventureiros, fidalgos e cavaleiros de grande esforço, andaluzes, manchegos, castelhanos, galegos e portugueses.
Com toda esta gente, saiu o marquês de Santa Cruz do rio de Lisboa a dez de Julho de mil e quinhentos e oitenta e dois anos, com vinte e oito naus e com cinco patachos pequenos, por ter ordem de Sua Majestade de partir com esta armada sem esperar as dezanove naus, dois galeões, doze galés e dois patachos que estavam aparelhados em Andaluzia; e fazendo-se ao mar, navegou com ruim tempo três dias, de maneira que ao cabo deles se achou cinquenta e cinco léguas de Lisboa, na paragem do cabo de S. Vicente, cinquenta léguas dele, tendo-lhe feito o mau tempo descair tanto da altura e da rota que trazia. Daqui, uma nau aragonesa em que iam três companhias das velhas de Frandes, e as mezinhas e oficiais do hospital e médicos e sururgiões , se tornou sem ordem, dizendo que fazia água. E aos treze dias do dito mês foi Deus servido dar ao marquês tempo favorável, com o qual ao outro dia e noite cobrou a altura que havia perdido, e posto nela, continuando-lhe o bom tempo, seguiu sua viagem até aos vinte e um dias do dito mês de Julho, que houve vista desta ilha de S. Miguel. E o domingo, vinte e dois do dito, chegou sobre Vila Franca do Campo, tendo o dia de antes despachado dois patachos a cargo do capitão Aguirre, que vinha por cabo dos cinco, dando-lhe seis mosqueteiros em cada um, e advertindo-o fosse com resguardo e se topasse a armada inimiga não chegasse a bordo de nenhum navio, nem deixasse chegar nenhuma barca aos patachos; escrevendo com ele o dito marquês ao governador desta ilha Ambrósio de Aguiar como a parte da armada de Sua Majestade, com que vinha, se achava mui pujante com cinco mil e quinhentos soldados embarcados nela, incluso o terço de D. Lopo de Figueiroa com mil e oitocentos dos de Frandes, afora mais de duzentos fidalgos e pessoas particulares, entretidos e aventureiros, que vinham a servir a Sua Majestade; e que a armada que vinha de Cadiz era de outro tanto número e qualidade, com outros cinco mil infantes, inclusas cinco bandeiras do terço velho de Frandes; pedindo-lhe lhe mandasse as novas que tivesse da armada de França, se havia passado e com que naus, porque, com a armada com que se achava esperava ir combatê-la, e que dissesse a Pero Peixoto que se pusesse em ordem para o seguir com a armada de seu cargo.
Ao tempo de querer surgir o marquês em Vila Franca, foi à nau capitaina uma caravela das três que ficaram em Lisboa, para trazer os cavalos, e deu aviso como o dia antes tinham chegado sobre a dita vila as três naus da armada, que ficaram em Lisboa e saíram o dia seguinte à partida do marquês, e as caravelas com elas; as quais três naus se foram na volta do mar, e as duas caravelas foram tomadas sobre a dita vila, uma com cavalos do mestre de campo geral e de outros, e que esta caravela que dava as novas, se saíra na volta do mar, fugindo duma nau que lhe dera caça. Sabendo isto o marquês, mandou logo algumas pessoas particulares a tomar língua nesta ilha, entre os quais foi um Fernão de Medinilha, valoroso soldado velho e exercitado em muitas notáveis batalhas. E, acometendo desembarcar junto da Ponta da Garça e perto da Ribeira das Tainhas, não os deixaram chegar a terra com arcabuzadas os que estavam pela costa dela, em suas estâncias; os quais perguntados por quem estava a terra e que naus eram aquelas que junto do porto de Vila Franca andavam, e que novas tinham da armada de França, responderam que estava esta ilha por el-Rei Filipe, e que aquelas naus deviam ser da frota das Índias, e que não sabiam parte da armada de França. Outros disseram que fosse à cidade, porque ali ninguém podia desembarcar. Fernão de Medinilha lhes disse que o deixassem sair em terra, pois estavam por Sua Majestade, para saber o que passava, ou que algum deles entrasse no seu barco e fosse com ele ao marquês, que lhe faria grandes mercês, dizendo-lhe a verdade. Ao que replicaram que fosse ao porto da vila, junto do baluarte e ali o deixariam sair, e dizendo isto lhe atiraram com alguns arcabuzes, pelo que Fernão de Medinilha e os outros entenderam estar a terra fora do serviço de el-Rei D. Filipe. E tornados à armada deram relação ao marquês do que passava.
Vendo isto o marquês e o aviso do patacho, como o capitão Aguirre ficava preso com outro patacho em poder de um navio francês e barcos que saíram de terra, entendeu que a ilha estava rebelada, pelo que mandou logo chamar a D. Lopo de Figueiroa, mestre de campo geral, para tratar de botar um golpe de gente em terra a tomar língua em Vila Franca e fazer aguada, mandando os capitães Miguel de Oquendo e Rodrigo de Vargas a reconhecer a parte onde se poderia surgir; no qual tempo os da gávea do galeão capitaina começaram a descobrir navios à parte da cidade da Ponta Delgada, onde está a fortaleza. E parecendo-lhe ao marquês que seria a armada inimiga, deixou o desígno , que levava e foi na volta da Ponta Delgada. E logo se descobriram mais navios e se entendeu ser a armada de D. António.
Indo-se chegando a nossa armada à inimiga e tendo-a já reconhecido, porque se saía ao mar, visto que eram mais de sessenta velas, entre grandes e pequenas, ajuntou o marquês de Santa Cruz a conselho os principais dela: D. Pedro de Toledo, D. Lopo de Figueiroa, mestre de campo geral, o marquês de Favara , D. Pedro de Tharsis, vedor geral, e o mestre de campo D. Francisco de Bovadilha, e outros fidalgos e capitães castelhanos e portugueses, que foram chamados, dizendo-lhes com risonho e alegre rosto: — bem vemos a inimiga armada com grã soma de velas, mais que a nossa, mas não tão boa e com tão honrada gente; eu, com a ajuda de Deus, se o vento me for favorável, lhe darei batalha, e se não, quando o seja ao inimigo, o aguardarei e pelejarei com ele até o desbaratar, se assim vos parece. E, todos muito contentes com a ousada determinação do marquês, concluiu que se representasse a batalha e fosse pelejar com a armada inimiga; a qual fez o mesmo, pondo-se em ordem e disparando uma peça de artilharia, por sinal de batalha. Logo o marquês mandou arvorar o estandarte de guerra e tirou uma peça, mandando aos capitães Marolim e Rodrigo de Vargas, para que discorressem por toda a armada com ordem de batalha, que foi uma fronteira das naus e galeões aos lados do galeão S. Martinho, que era capitaina, ao direito o galeão S. Mateus em que iam D. Lopo, mestre de campo geral, e o vedor geral, e ao esquerdo a nau em que ia o mestre de campo D. Francisco de Bovadilha, e quatro de socorro, repartidas as dez guipuscoanas com as outras naus, com os capitães Miguel de Oquendo e Vila Viçosa, sem que pudesse tomar seu lugar este dia na batalha D. Cristóvão de Erasso, por ter ficado sua nau muito atrás, por trazer sentido o calcês do masto maior, e assim não poder fazer força de vela na gávea, de que pesou muito ao marquês, por lhe faltar em tal ocasião a pessoa de D. Cristóvão. E, todos alegres e esforçados com o esforço e grande ânimo do marquês, com suas armas nas mãos, estiveram aguardando a hora da honrada batalha, com a ordem seguinte.
No galeão S. Martinho, que ia por capitaina da armada, deu o marquês para a batalha esta ordem: que na alcáçova alta de popa estivessem vinte fidalgos e arcabuzeiros e vinte mosqueteiros; e na alcáçova mais baixa os fidalgos portugueses, afora D. Diogo de Castro, que esteve na alta, e vinte arcabuzeiros e seis mosqueteiros; e debaixo da alcáçova alta estivessem de socorro D. António Pessoa, D. Luís Osório, D. Gonçalo Ronquilho e o coronel Mendinara, o capitão Quesada e outros quatro arcabuzeiros; e, na praça do galeão, quarenta arcabuzeiros por banda, a cargo do capitão Gamboa; junto à câmara de popa, estivessem em corpo de guarda quarenta soldados, os mais homens particulares e que haviam sido oficiais, a cargo do capitão Agostinho de Ferreira, para acudir às partes onde houvesse mais necessidade; no castelo de proa, João Baptista Sanzoni, fidalgo milanês, com os sargentos dos capitães Agostinho de Ferreira e Gamboa, com quinze arcabuzeiros e dez mosqueteiros; na gávea maior, o alferes D. Francisco Galo com oito mosqueteiros, e na do traquete, seis, afora os gajeiros; na coberta baixa, onde está a artilharia grossa, os capitães D. Cristóvão da Cunha Escobedo e João de Alier, e os alferes Fauste e Esquivel; e com cada peça um bombardeiro e seis ajudantes, cada um com seu espeque; com a artilharia da coberta alta, Marcelo Caraciolo, e o serviço como na de baixo; e, à guarda da pólvora, o capitão Grimaldo com quatro marinheiros. Além disso, mandou estar por popa do galeão uma falua e quatro patachos, para levar recados e ordens, e encher de água o esquife que ia dentro e pôr tinas de água e pipas por diversas partes do galeão, repartir em seus postos todos os lanceiros, piqueiros e alabardeiros, e estar os marinheiros sobre os aparelhos; e que os capitães Marolim e Rodrigo de Vargas, como homens de mar e muita experiência, acudissem à artilharia e ao mais que cumprisse. Todo o qual se pôs em execução com grande pressa e vontade, por estar prevenido dantes que chegasse a reconhecer esta ilha. Feito isto, como se ordenou, com muito estrondo de pífaros e tambores e bandeiras estendidas, amarelas, azuis e brancas, foi a nossa armada investir a inimiga, a qual ia a fazer o mesmo em boa ordem, com bandeiras amarelas, laranjadas e negras; e os navios pequenos em sua rectaguarda. Mas, por acalmar o vento, não puderam combater este dia, e saíram na volta do mar, sem haver tomado o marquês língua do que na ilha havia. Depois, às quatro horas da noite, chegou ao galeão capitaina Domingos de Aduriaga, mestre da nau Catarina, em uma pinaça, com outros cinco marinheiros biscainhos, e levou um bilhete de D. João de Castilho que estava na fortaleza, que dizia: — Essa armada de D. António que aí vai tem cinquenta e oito velas, as vinte e oito grossas e as outras pequenas; tem seis mil franceses; se a nossa não é poderosa para pelejar com ela, se poderá arrimar a esta fortaleza, por estar por el-Rei Nosso Senhor e veja Vossa Senhoria que se aventura muito, se se perde. Deste mestre e seus companheiros, soube o marquês de Santa Cruz como D. António chegara com sua armada a esta ilha de S. Miguel a quinze de Julho, e que aos dezasseis deitara em terra até três mil homens, a que saíra D. Lourenço com alguma gente, e o estado em que estava a ilha, e o que nela até então passara, como tendo contado, e como, com a nova da chegada da armada de Hespanha, se embarcaram os inimigos a grande pressa. Depois de informado o marquês de tudo, escreveu com os mesmos ao capitão e governador e os mais da fortaleza, animando-os e fazendo-lhes saber como a armada de Sua Majestade, com que vinha, se achava mui poderosa, com muita e mui boa gente embarcada nela, que esperava em Deus que o dia seguinte havia de dar batalha e ter vitória, e que assim estivessem contentes, como ele o estava, do serviço que tinha feito a Sua Majestade que ele lhe representaria para que lho gratificasse. E com isto tornou despachada a pinaça à ilha.
O dia seguinte, que foi segunda-feira, vinte e três de Julho, se tornaram representar a batalha as duas armadas, tendo a francesa o vento e o sol em seu favor, e foi a investir a hespanhola, repartida em três esquadrões, o qual acometimento fizeram três vezes aquele dia, sem o executar; e, à tarde, indo a armada de Hespanha na volta do mar, a francesa deitou dez naus ao longo da terra da ilha para tomar aquela noite as costas, mas, por acalmar o vento, não puderam ir por diante.
Terça-feira, vinte e quatro do dito mês, se tornaram a juntar e, tendo a armada inimiga o vento em seu favor, acometeu a investir a nossa outras duas vezes, indo na volta da terra da ilha, sem o pôr em execução. E, parecendo-lhe ao marquês que não lhe convinha ir mais naquela volta de terra, mandou marear as velas e sair ao mar, ainda que sempre entendeu que então o havia de investir a armada inimiga, enquanto a nossa se punha à vela e virava, por terem eles o vento em seu favor. E foi assim porque aquela noite d’antes entraram em conselho D. António, Filipe Strosse, o conde de Brissac e o conde de Vimioso, na capitaina de França, e depois de tratar da escaramuça e que naus haviam saído a ela, acharam que, se rompiam seis naus da Hespanha, que tinham atirado, facilmente as demais seriam suas, para o que acordaram que ao outro dia dessem a batalha, antes que viesse a armada de Andaluzia, e, rota esta, seria possível ser também vencida a outra. E para o outro dia ordenaram que a capitaina de França, em que vinha Filipe Strosse, e um galeão novo, em que estava seu sobrinho, abalroassem a nossa capitaina e em seu socorro fossem duas urcas, em que vinham muitos soldados velhos de Piamonte; e a almiranta de França, em que vinha o conde Brissac, e outro galeão francês, em que vinha o coronel dos franceses, abalroassem o galeão S. Mateus, e em sua ajuda uma urca, sendo necessário; e outras duas urcas, mui bem armadas, abalroassem a nau do mestre de campo D. Francisco Bovadilha; e a capitaina de Biscaia, abalroassem outro galeão e duas urcas de muitos particulares, soldados velhos de monsior Charles; e a nau de D. Cristóvão de Erasso, abalroassem duas naus biscainhas que haviam tomado vazias da armada de Pero Peixoto, e já tinham mui bem artilhadas; e que as demais aferrassem uma com outra, pois assás eram superiores em navios, e a que não achasse onde aferrar socorresse a parte onde necessário fosse. Concluindo neste conselho, D. António, que vinha na nau real, se foi para uma fragata em que trazia o estandarte real por popa, e não lhe parecendo a todos que se devia achar na batalha, se foi aquela noite para a Terceira.
Amanhecendo, pois, véspera de Santiago, que era a mesma terça-feira dita, vinte e quatro de Julho, a capitaina francesa com sete galeões foi investir o galeão S. Martinho, capitaina da armada de Hespanha, e o galeão S. Mateus; mas, chegando mui perto, não o fizeram, disparando somente muita artilharia à nossa capitaina e a S. Mateus, e outra de seus navios aos nossos, de quem foram recebidos com semelhante rociada de artilharia da capitaina de Hespanha, de quatro peças, e outras muitas do galeão S. Mateus e também da nau de D. Cristóvão de Erasso, que já se tinha ajuntado com a armada; e da de D. Francisco de Bovadilha e Miguel de Oquendo e outras, que foi uma gentil vista. As peças que se atiraram deram quatro na nossa capitaina, uma na vela do traquete, outra na enxárcia, outra em uma âncora, e a quarta no costado, sem que nenhum pelouro fizesse mal; em S. Mateus, acertaram três, também sem fazerem dano, e também o não fizeram algumas peças que acertaram a outras naus de Hespanha. Nos galeões inimigos, se viram dar alguns pelouros, especialmente quatro do galeão S. Martinho, e pela retirada que fizeram se entendeu que recebiam dano.
Vinham na armada francesa duas capitainas e duas almirantas, e até quarenta navios grandes e entre eles alguns galeões, mui gentis navios; os outros eram pequenos, mas a propósito para armada por sua ligeireza, e trazia outros muitos patachos menores ao redor da armada, a duas e três léguas dela, a tomar língua e descobrir, afora duas setias das marselhesas, mui bons navios de vela, e muitas chalupetas de remos, com que rebocavam a armada e a punham em batalha, quando fazia bonança. Este dia, à tarde, se apartaram as armadas, e o marquês ordenou à sua que ao pôr da lua virassem outra volta, para procurar de ganhar o vento à inimiga, virando pela manhã sobre ela. E assim se fez, achando-se o marquês, dia de Santiago, vinte e cinco dias de Julho, a balravento do inimigo, foi em seu seguimento para investir e por serem os navios que levava pesados da vela, não puderam fazer efeito, antes D. Cristóvão de Erasso, seguindo os inimigos e rendendo-lhe o mastro maior, tirou um tiro, pelo que foi forçado ao marquês tornar a socorrê-lo e dar-lhe cabo com sua capitaina. Viu-se este dia um navio grosso dos imigos que lhe faltava o traquete, e duas naus que o ajudavam, e, não o podendo socorrer, se foi ao fundo. Dizem ser uma nau, chamada a Rosa da Rochela, entendendo-se que seria arrombada de algum tiro do dia passado.
Amanhecendo esta dia de Santiago, quando a armada do imigo, desejosa de efectuar seu conselho, apareceu perto dos hespanhóis, era o vento tão escasso e tão pouco, que se não pôde pôr nenhuma das armadas em ordem de guerra, e, se houvera galés, este dia se ganhara a mor parte da armada francesa; assim passou todo o dia sem tirar tiro. E os da nossa armada se forneceram e trincheiraram muito mais, e puseram todas suas estâncias em muita ordem, estando todos armados com muitas armas douradas e penachos e bandas de seda de diversas cores, que ao imigo punham espanto. Era também muito para ver a soberba, galhardia e formosura da armada francesa, com suas ricas armas e formosas bandeiras e estandartes, e suas trombetas e tambores, que, por ser superior de muito mais velas e gente, quisera o marquês entreter a batalha até que chegara a outra armada de Andaluzia que esperava, porque das dez urcas de sua armada faltavam duas, que levavam alemães, e as três naus que partiram de Lisboa depois de saída a dita armada, que tampouco se ajuntaram com ela. E assim não ficou o marquês de Santa Cruz, a este tempo, senão com sós vinte e cinco naus, inclusos os dois galeões.
Aos vinte e seis de Julho, que foi dia de Santa Ana, pela manhã, tornou a armada imiga a ir em busca da de Hespanha com boa ordem e o vento em seu favor, seguindo o conselho que dantes tiveram com novo ardil de guerra, fundando-se em guarnecer, como guarneceram, os mais fortes galeões de sua armada, dos mais valorosos soldados e capitães que traziam, e assim em dez ou doze dos ditos galeões puseram a maior força de toda a sua armada, com desígnio e intento que cada seis ou sete destes acometessem os dois grandes galeões S.
Martinho e S. Mateus, em que a força de toda a armada de Hespanha consistia, e que com grande ímpeto e esforço os investissem, sem os deixar, até serem de todo ponto rendidos; para o qual outras naus que para isso também aparelharam, servissem de lhe lançar gente de refresco, afim de não desfalecerem de seu furioso ímpeto. O marquês de Santa Cruz fez por ajuntar as naus de sua armada, ainda que o galeão S. Mateus ficava atrás, de que lhe pesou, parecendo-lhe que podiam os imigos abordá-lo, sem que pudesse ser socorrido com a brevidade que convinha, e foi assim porque o foram investir a capitaina e almiranta, que iam dianteiras. O mestre de campo geral D. Lopo de Figueiroa, de quem dependia a maior parte desta batalha, avisado do marquês do que queria fazer, como astuto capitão, tinha já empunhada a mesma determinação, de maneira que com só seu galeão determinava dar batalha ao imigo, e assim alguns dias de antes tinha dado ordem para a dita batalha, na maneira seguinte.
No castelo de proa, ao capitão Rosado e seu alferes e bandeira, e D. Félix de Aragão, Fradique Carneiro e Gaspar de Sousa, sobrinho de D. Cristóvão de Moura, fidalgos portugueses, com trinta arcabuzeiros e dez mosqueteiros.
Na praça de armas do galeão, cinquenta arcabuzeiros e mosqueteiros, com os sargentos de Rosado e do mestre de campo geral, e o alferes Fernão de Medinilha.
Na alcáçova de baixo, de popa, a D. Francisco Ponce, com vinte arcabuzeiros e mosqueteiros.
No alto da popa, a D. Gonçalo de Carvajal, alferes do mestre de campo geral, com sua bandeira e trinta soldados arcabuzeiros e mosqueteiros.
O mestre de campo geral, o vedor geral D. Pedro de Tharsis, o capitão Vila Lobos, português, acudiam a todas as partes.
Nas varandas, oito soldados arcabuzeiros; em cada gávea, quatro arcabuzeiros e dois mosqueteiros; os gajeiros com muita pedra e alcanzias de fogo.
Com a artilharia alta, o alferes Bernabé; com a baixa, o alferes João Franco e o sargento Manuel Correia, valoroso soldado português, natural desta ilha de S. Miguel, que agora é também sargento mor nela; com a gente de socorro, o alferes Çapata e o alferes Luís de Leiva; com a pólvora, o capitão Rodovalho, português, com outros dois homens principais. A cada peça de artilharia, um bombardeiro e seis ajudantes, e a cada portinhola, dois mosqueteiros; todas as armas de haste em seus lugares reconhecidos; por todo o galeão, muitas tinas e quartos cheios de água, baldes e muitas mantas molhadas para o fogo. O piloto no alto de popa, e o mestre sota-piloto com dez marinheiros; na proa, o contra-mestre com quinze marinheiros; no convés do galeão, o guardião e o meirinho com os mais marinheiros e grumetes; ao leme, oito marinheiros, a cada aparelho, dois, e todos com suas armadas sinaladas em seu lugar, para se fosse necessário pelejar com elas. E, antes de chegarem a ele a capitaina e almiranta francesas, o dito D. Lopo de Figueiroa, sabendo que de aquela vez o haviam de investir, por ele estar só, apartado da sua armada, e os imigos já muito perto, tendo tudo posto em ordem e vendo quão necessário era naquele tempo animar sua gente, fez um parlamento, onde não começou, como outros capitães fazem, dizendo : — ó fidalgos e valorosos capitães e soldados, lembro-vos que tendes feito grandes cousas e estranhos feitos de armas, de cuja notícia e certeza o mundo está cheio, para que agora, se então fostes um para mil, vos lembre que hoje sois quase tantos por tantos, e ainda que o imigo exceda em outro tanto número, acordai-vos que é francês e são daqueles de quem em Frandes triunfastes muitas vezes, vencendo e desbaratando seus campos e exércitos, e prendendo seus capitães e os melhores cavaleiros deles, a quem vistes em um dia cortar cinco mil cabeças, e em outro três mil. Destes, pois, ainda que galos, são os que hoje vos representam bataria e vos acometem, a quem fareis, por vossos esforços, de galos, galinhas. Nem lhe quis dizer D. Lopo outras cousas deste género, senão começou dizendo e pelejando: — ó poltrões, e mais glutões que esforçados soldados, tornados hoje galinhas, que cuidais? De que fazeis conta? Hoje é o vosso fim e hoje me hei-de vingar de vós, todos Cuidáveis que vínheis como em Nápoles a gozar das boas pinhatas e panelas de vaca gorda e toucinho cozidas, e de carneiro e galinhas, e daquelas espetadas de vitelas assadas e gordos cabritos, frangãos, e faisões, de que tão usados e costumados fostes? Ou cuidáveis que era vir nesta armada a banquetear-vos por esses países e lugares de toda a Itália? Ou parecia-vos que era ver putanas de Florença ou de Milão, e andar em vossas ramerias e velhaquarias de Apúlia e de Calábria, ou que tudo eram regalos de Sicília? Não vos acontecerá hoje assim, poltrões, senão entre bombardas de cruéis inimigos espero vossa morte e minha vingança.
Mas, já que tanto à porta vo-la vejo, encomendai-vos a Deus, e cada um coma alguma cousa primeiro, e a mim me achareis até à morte convosco. Bem sei que pelo grão número de velas cuidará o inimigo dar-vos batalha a seu salvo, mas para tão principais soldados e esforçados cavaleiros, estou mui satisfeito, que se engana quanto o hei experimentado em outras batalhas, assim no mar, como na terra. Lembro-lhes que depois de haver ganhado e destruído as ásperas serras do alevantado Regno de Granada, com tão felice sucesso, nos embarcámos com o senhor D. João de Áustria, de gloriosa memória, e na batalha naval que se deu à armada do turco, nos levaram vantagem assim em velas com em gente, mas não em bondade nem razão, e em outras que não conto, pelo tempo ser breve. A todos peço muito por mercê olhem a fé nossa de Deus e de el-Rei, por quem nos pomos ao sacrifício das honradas batalhas, e a pouca razão que o inimigo traz, e que sempre foram chorando de nossas mãos.
Agora, que tanta necessidade temos, olhe cada um por si, que no caminho não há taverna onde pousar, e que não é mais homem que outro o que não faz mais que outro. Já a este tempo era hora de armas e cada qual arremetendo ao que pôde haver à mão, se determinou a comer e beber o que mais aparelhado achou. E tal houve que a galinha crua, que o seu moço acabara então de espetar para a assar, lha tirou do espeto e a partiu por outros e por si, e assim a comeram, comendo e armando-se. E, sendo armados, tinham acabado juntamente de comer, e encomendando-se a Deus, e agradecendo a D. Lopo a mercê que lhes fizera em lhes trazer à memória àquela hora suas pouquidades, antes que os heróicos feitos que deles sabia, prometeram todos de fazer todo o possível, com ajuda do Senhor Deus e do Apóstolo Santiago e da bemaventurada Santa Ana, em cujo dia se lhes oferecia tão perigosa empresa, e de fazer pinhatas e panelas dos franceses. Dando então o sinal da peleja do dito galeão S. Mateus, onde D. Lopo estava com estes valorosos soldados, o começaram a cercar e investir, como tenho dito, os dois galeões, capitaina e almiranta francesa, de quem se defendeu valorosamente, havendo carregado sobre ele outras duas naus que, depois de lhe haver atirado alguns tiros e dado surriada de arcabuzaria, passaram adiante. Ao mesmo tempo, foram sobre o galeão S. Martinho, capitaina, outras duas naus francesas e, começando a combater com ele, se lhes deram tais duas surriadas com artilharia e arcabuzaria, que uma delas ficou maltratada, quase para se ir ao fundo; e assim se retiraram, havendo tirado a capitaina muita artilharia e arcabuzaria, e dando-lhe alguns tiros, recebendo também eles outra rociada de tiros e arcabuzadas da nau de D. Francisco de Bovadilha, que estava perto da capitaina. Pelejavam, todavia, a este tempo, a capitaina e a almiranta de França com o galeão S. Mateus, defendendo-se e ofendendo o mestre de campo geral D. Lopo de Figueiroa, com o vedor geral D. Pedro de Tharsis e os mais fidalgos e cavaleiros e a infantaria que trazia, valorosamente atirando aos imigos muitos tiros, arcabuzaria e mosquetaria.
Era temerosa cousa de ver acometer esta batalha, disparando primeiro a artilharia grossa, posta em seu lugar a gente, cheias de tiros as gáveas, estendidas as bandeiras, os galhardetes e flâmalas, ressonando os bélicos estromentos, soando os clarins e trombetas, e reverberando as luzidas, brancas e douradas armas, envoltas nas águas, e tudo revolto, aparecendo as diversas cores das curiosas librés e penachos, disparando as colubrinas e bombardas, esferas, meias esferas, passamuros e pedreiros, basaliscos , peças grossas e tiros de campo, com tanto estrondo que a máquina do céu de riba desencasada parecia vir-se abaixo, como trocando os elementos seus próprios lugares, lidando contra si fogo, ar e água juntamente, e arder tudo em pura chama, e por entre o fumo e fogo as naus já abalroadas, feito seu efeito a pólvora, vir às espadas a fúria francesa e a cólera de Hespanha, travando-se a batalha sanguentada, crua, furiosa, e de ambas as partes porfiada, com estranhos golpes e feridas desaforadas, chovendo das altas gáveas alcanzias, balas, lanças, dardos, armas de peso arremessadas, ardente pês e resina, bombas alcatroadas e fogos artificiais, que o mesmo mar abrasavam; as águas todas cobertas de sangue, de gente e armas, tanto arnês despedaçado e rota tanta celada, tanta voz, tantos gritos e gemidos de tantos feridos, uns meios vivos, outros que no mesmo tempo expiravam. Mas, por fim, a fortuna de Filipe atropelou a de França, como irei dizendo.
Vendo o marquês que toda a armada de França tinha a de Hespanha pelas popas, e o aperto em que se achava o galeão S. Mateus com as duas francesas, fez virar sua capitaina na volta dos imigos, e o mesmo fizeram D. Cristóvão de Erasso e as mais naus da armada. E, acertando achar-se mais atrás a de Miguel de Oquendo, Vila Viçosa, e outra guipuscoana, foram então as mais dianteiras e chegaram mais prestes que outros a investir a almiranta francesa, que pelejava com o galeão S. Mateus. Depois chegou a nau de Miguel de Veneza, que combateu com a capitaina de França, como bom capitão, fazendo o mesmo os soldados que iam com ele. O estar esta nau em meio foi causa que por então o marquês não pôde abordar a capitaina francesa, e assim passou adiante.
Neste tempo, pelejavam com a nau almiranta as três que a tinham investido, estando pelejando com S. Mateus, donde todavia lhe tiravam muitos tiros e arcabuzadas. Era uma de Vila Viçosa, que a tinha investido por proa, onde pelejando com muito ânimo foi morto o dito capitão Vila Viçosa, com outros muitos mortos e feridos que houve em sua nau, como adiante se dirá. A de Oquendo a tinha investida por popa e havia deitado gente nela, começando-a a saquear e tomado quatro pessoas e as bandeiras. A batalha, andando já travada entre as mais naus hespanholas e imigas, foram logo outras duas francesas a socorrer a sua capitaina e, metendo-lhe dentro mais de trezentos homens de refresco, se desviou a de S. Mateus e nau de Miguel de Veneza. Neste tempo, já o marquês tinha dado outra volta sobre os contrários, tirando-lhes muitos tiros, e, proa com proa da capitaina imiga, se investiram e abalroaram capitaina com capitaina. Combateu-se valorosamente de ambas as partes, tirando-se uma à outra grandíssimos tiros, arcabuzaria, mosquetaria e pedradas, por espaço de uma hora, que se tardou em rendê-la; onde se degolaram passados de trezentos franceses, e os cavaleiros, fidalgos e soldados que estavam em suas alcáçovas se assinalaram valorosamente. E o mesmo fizeram os capitães Agostinho de Ferreira e Gamboa, e seus alferes.
O marquês, como geral, andava nas alcáçovas, animando a gente e fazendo dar as cargas aos inimigos, provendo e ordenando o que mais convinha que se fizesse. A artilharia das cobertas alta e baixa fazia muito efeito com a boa diligência dos capitães, a cujo cargo estavam. Marolim e Rodrigo de Vargas andavam com muito ânimo ajudando a umas partes e a outras. E os da gáveas faziam o que lhes tocava. A batalha das outras naus se prosseguia, dando e recebendo grandes cargas umas a outras, e a de D. Cristóvão de Erasso tirava muita artilharia.
Pelejaram assim mesmo mui bem, as naus onde se acharam os capitães D. Miguel de Córdova, Cristóvão da Paz, Pero de Santo Estêvão, Diogo Colona, D. João de Biveiros e Cássio de Hierpa, Diogo Soares de Salazar e João de Bolanhos, tenente de geral da artilharia.
Durou a batalha cinco horas, no fim das quais fugiram os franceses mui desbaratados.
D. António se tinha ido com um patacho e outra nau, a noite antes da batalha, para mandar prover de refresco e de outros mantimentos e munições a sua armada, de lá, da ilha Terceira, para onde foi. Meteram-se no fundo algumas naus francesas e outras ficaram desamparadas, havendo-lhe degolado dentro toda a gente, e indo-se alguns fugindo a outros navios. E, por as naus hespanholas não poderem dar cabo, nem embaraçar-se com elas, mandou o marquês que se queimassem e desfundassem as que pudessem, como se começou a fazer. Cobrou-se a caravela que tinham os imigos tomada, com os cavalos. Faz-se conta que na capitaina francesa se degolaram quatrocentos homens, porque os que ela trazia e os que lhe entraram de socorro, se entende que passaram de setecentos os que pelejaram nela. Na almiranta se sabe que morreram mais de duzentos homens, e de uma das naus que se foram ao fundo, se afogaram trezentos soldados sem escapar mais que seu capitão. Das mais naus se degolaram muitos, especialmente de uma que renderam duas naus das de Guipuscoa, que, porque a uma lhe haviam morto alguns vasconçados, os degolaram eles a todos. E segundo esta conta parece que dos imigos morreriam nesta batalha até mil e duzentos, sem os feridos que foram muitos, afora os que o iriam nas naus que fugiram. Cobraram-se muitas mais naus imigas, se as nossas tiveram mais espaço e marinheiros para lhes poder dar cabo, mas com isto as deixaram ir sem gente e desamparadas. E assim se viu que a almiranta se deixou meia alagada, e outras quatro ou cinco se foram ao fundo defronte desta ilha de S. Miguel, da parte do sul, e o mesmo se tem por certo, que se afundariam outras, em outras partes.
Alguns portugueses pelejaram valorosamente nesta batalha naval contra os franceses no galeão S. Mateus, como foi Diogo Vaz Rodovalho, da ilha Terceira, que tinha vindo dantes em uma armada, por capitão de uma nau, e Francisco de Vila Lobos, que foi mui queimado das alcanzias do fogo. E um fidalgo português chamado Fradique Carneiro, licenciado em artes e teólogo, primo com irmão do conde de Mira, foi o primeiro que saltou na capitaina dos franceses, que estava aferrada com o galeão S. Mateus, e, entrando após ele outros poucos soldados, todos se tornaram a recolher, porque vinha novo socorro à capitaina francesa, e o galeão estava aferrado de quatro. Também, por mandar D. Lopo, com pena de morte, que ninguém entrasse na nau dos imigos, por estar muita gente ferida, e arrecear, andando os soldados ocupados na presa e saco dela, chegassem as outras naus dos contrairos dando sobre eles.
Era tão brava a peleja que chegavam os franceses às portinholas do galeão S. Mateus, e em os nossos tirando um tiro, lhe metiam os franceses pela boca um pelouro, para que tornando os hespanhóis a carregar ficasse a pólvora em vão e não tomasse fogo, até que os nossos caíram na trama, e pelas mesmas portinholas lançavam muitas panelas e alcanzias de pólvora, com que punham ao galeão em grande risco. E uma vez, lançando uma grande panela de pólvora, correndo grande perigo o galeão, um marinheiro português se abraçou com o fogo e o abafou e apagou, e ali deu a vida pela vida de muitos. O capitão tomou seu nome e de sua pátria, mulher e filhos, para serem providos de Sua Majestade.
Como tenho dito, o dia de Santa Ana amanhecendo a armada de França a balravento da nossa, se cumpriu o desejo de ambas e cometeram os franceses com grande fúria e terror.
Tinha ordenado D. Lopo de Figueiroa, mestre de campo geral, que todos os coceletes de seu terço tomassem arcabuzes, considerando o que poderia suceder, e foi de tanta importância que foi grande parte para a nossa vitória, porque se pode dizer que fez de cada soldado dois, pois com o arcabuz ofendia, e com o cocelete e piques, que junto de si tinha, defendia. Iam na dianteira da armada francesa a sua capitaina e almiranta que com grande grita e som de trombetas aferraram o galeão S. Mateus e lhe deram tamanha carga de artilharia, mosquetaria, arcabuzaria e bombas de fogo, que parecia que o metiam no fundo. Mas D. Lopo tinha mandado que toda a sua arcabuzaria estivesse baixa a receber a primeira carga, sabendo que os franceses costumavam dar esta primeira fúria mui furiosa; e, recebendo-a com pouco dano, mandou à sua que lhe tornasse com o retorno. Estavam os franceses carregando seus arcabuzes, descobertos, e com tanta fúria e presteza jogou nossa artilharia e arcabuzaria, que a maior parte que sobre a coberta estavam morreram, e aos de baixo atemorizaram.
E assim das onze horas escontra o meio dia, se começou esta espantosa e cruel batalha naval, que foi uma das mais notáveis e insignes que houve neste mar, onde havia todo género de armas, artilharia, mosquetaria, arcabuzaria, piques, alabardas, chuças, dardos, coceletes, celadas, rodelas, espadas, adagas, pedras, fachas, lanças de fogo e bombas de fogo.
Neste tempo, tinha aferrado parte da sua armada com a nossa e de ambas as partes pelejava valorosamente cada um pela glória de seu Rei, sem se poder conhecer vantagem. Já a capitaina do marquês tinha tirado muitos tiros e, buscando a capitaina francesa por entre as duas armadas, ia sem que nenhuma nau imiga a ousasse esperar. Permitiu Deus que nenhuma cousa das que os imigos ordenaram se fizesse, e assim como a capitaina errou, assim todas desatinaram no aferrar.
Esteve o galeão S. Mateus aferrado de cinco naus poderosas em que entrava a capitaina e a almiranta, e pelejaram por espaço de quatro ou cinco horas, matando-lhe muita gente aos franceses, que nunca em todo este tempo ousaram entrar no galeão, porque aí tinham os nossos mais certa a vitória. Mas, era tal a bataria, que os mosquetes dos franceses passavam o tabuado e obras mortas do galeão e matavam alguma gente, e com a artilharia lhe mataram muitos bombardeiros, e foi roto o galeão, por só um costado em muitas partes, pela força da artilharia francesa. Sendo morta muita gente na capitaina, veio sobre ela o galeão S. Martinho.
Neste comenos, de uma nau de socorro recolheu a capitaina francesa trezentos soldados de refresco com que ficou reforçada e se meteu a pelejar capitaina com capitaina, entre as quais houve cruel batalha com muitas mortes de franceses, até que foi entrada dos nossos e tomada e saqueada, e só nela se acharam cem corpos mortos, de armas douradas. Neste encontro, mais que em todos os outros, se assinalou o marquês de Santa Cruz, que todos governava, com grande ânimo e acordo, e um D. Pedro de Toledo, digno de eterna glória, por se arriscar onde via faltar algum, animando a todos.
Era espanto ver a bataria de S. Mateus como se fora uma fortaleza, porque a almiranta francesa o tinha aferrado, na qual ia o conde de Brissac, acompanhado com trezentos valentes soldados e sessenta fidalgos, com peitos e fortes rodelas, juramentados de entrar no dito galeão ou morrer na contenda. Mas, S. Mateus ficou com milagrosa vitória de todos os imigos, que o tinham cercado e aferrado como lebréus a um touro. Basta que durou tanto a briga que veio a não ter mais que um barril de pólvora, e duas horas foi combatido antes de ser socorrido. Estava tão coberto de fumo que quase nenhuma cousa dele parecia e quando se mostrava descoberto parecia arder em vivo fogo e, matando um, outra maior chama se acendia, com que o ar estava ora abrasado, ora escuro, e o mar tinto de roxo, sangue de muitos mortos e feridos, e juncado de corpos, braços, pernas e outros membros que os tiros dividiam. E quase ambas as armadas se encobriram com o muito fumo das bombardas e arcabuzaria, ouvindo-se somente um horrendo e temeroso clamor. E, quando o vento às vezes descobria o lustro das armas, era pior para quem as tinha vestidas, pois faziam nele pontaria.
Neste recontro, se assinalaram muitos soldados hespanhóis, afora os que tenho dito, e alguns portugueses que direi adiante. Os hespanhóis e biscainhos que mais se assinalaram nesta batalha foram D. Pedro de Tarsis, vedor geral da armada, e o capitão Rosado com sua gente. D. Hugo de Moncada, que também foi vitorioso em Frandes e outras partes, D. Félix de Aragão, D. Godofre Bargadil, D. Afonso Pacheco, D. Francisco Bovadilha, que vinha na urca chamada S. Pedro, a qual, no segundo encontro foi investida de uma nau francesa bem artilhada, e matando-lhe os hespanhóis da urca muita gente, brevemente procurou de escapar de tal perigo e, vendo-a apartar outras duas naus francesas, que a iam também investir, deram volta sem acometer, pelo temor que cobraram. Estas foram as primeiras naus dos imigos que naquele dia se retiraram da batalha. Na mesma urca vinha Sancho Solis, capitão da Liga, mui nomeado, que pelejou nela com sua infantaria, e um seu irmão a quem na peleja com um mosquete atravessaram um braço. Na nau biscainha, chamada Maria, o capitão Vila Viçosa, tão esforçado que ousou amainar no meio dos imigos onde o aferraram com grande fúria três naus de muito maior porte e mais alterosas, com que foi sua nau entrada três vezes dos franceses, e fazendo os biscainhos grande estrago neles, todos foram mortos, mas morreu ele pelejando valorosamente; e de noventa soldados hespanhóis só ficaram sete vivos, onde também se sinalou, pelejando, o famoso capitão Luís Guevara, e por fim se retiraram todas as três naus francesas, ficando a nau biscainha vitoriosa.
A Dom Miguel de Erasso investiram e cercaram tantos imigos, que vendendo ele e os seus, pelejando, bem suas vidas, ali feneceram. A capitaina de Biscaia onde ia João Chacon e Álvaro Barragam, capitães de infantaria, socorrendo a D. Lopo, e aferrando-se com a almiranta francesa a bateram tanto com a artilharia e arcabuzaria, que quase lhe mataram toda a gente que trazia, ajudados da nau biscainha, chamada Boaventura, cujo capitão era Filipe Seirão, que aferrou também a almiranta, pelejando com ela três quartos de hora. Neste tempo soltaram as amarras, tendo já S. Mateus metido uma nau no fundo e queimado outra. Os que ficaram na almiranta pelejaram valorosamente. A biscainha e a capitaina de Biscaia lhe lançou soldados dentro, que mataram a gente e a saquearam, tomando-lhe suas bandeiras, e foram delas senhores uma hora, e por estar a nau maltratada se recolheram e retiraram; e alguns imigos que escaparam debaixo da coberta a marearam e fugiram, mas depois se foi ao fundo por ir mui rota e desbaratada.
Sinalaram-se também o capitão Pero Pardo, que furiosamente foi socorrer a nau de Miguel de Oquendo, e os capitães Cassio de Hiera e Miguel de Meza, que com grande pressa acudiram a D. Lopo, aferrando-se com a capitaina francesa. E os feroces capitães D. Miguel de Córdova e Cristóvão da Paz, que se atravessaram e detiveram o passo a uma nau francesa que ia dar socorro aos seus, e matando-lhe todos os que iam dentro, em espaço de meia hora que com ela pelejaram, se saíram trazendo a nau inimiga diante de si, e fazendo-a queimar para maior honra sua; e D. Cristóvão de Erasso, o qual acometendo com a proa posta aos imigos, não pôde chegar a eles, mas de longe andava aos bordos, disparando neles espantosa artilharia, com que lhe fez grande dano; e D. Pedro Mendonça e Lázaro de Isla, que na nau Misericórdia, socorrendo a D. Lopo, se aferraram com a capitaina onde estava Filipe Strosse, até que vindo sobre ela o marquês, se retirou, dando lugar ao major; e os dois capitães Luís Vilharte e Pero Mendiola, que na dita nau iam e pelejaram bravamente; e três capitães, D. João Chacon, Lopo de Salazar, e Maldonado, que na nau Abestruz mostraram seu grande valor contra os imigos; e o capitão Diogo Soares que na nau biscainha, chamada Santa Maria da Penha de França, com sua furiosa espada fez grandes estragos nos contrairos; afora outros capitães que fizeram cousas memoráveis, a que não soube os nomes, e outros que não pelejaram por não poderem chegar com o vento contrairo, que os franceses tinham em popa; e sobre todos o marquês de Santa Cruz, que como touro irado no corro, revolvendo-se a um e outro lado, à parte que faz arremetida o povo turbado vai fugindo, ficando só o touro na erma e rasa praça.
Era tanta a fúria e bataria, que parecia fundir-se a terra, abrir-se o céu, romper-se o ar, mudar-se o mar e embravecerem-se as ondas, que então estavam quietas, andando os homens nelas embravecidos, feitos ondas furiosas; até as enxárcias parecia que davam gritos, lamentando tantos destroços e mortes, derribadas com os golpes dos pelouros; as velas inchadas se rasgavam, as obras mortas se quebravam e umas se ajuntavam tanto com outras, que se faziam pedaços que para o céu voavam. Ver a pressa dos soldados, assestando a todas as partes as peças de artilharia e arcabuzes, ora por um, ora por outro costado, ora indo pelejando de popa à proa, ora de proa para a popa, uns tirando fogo, outros apagando-o, usando cada um de suas armas e às vezes das alheias, aventurando as vidas próprias por se assinalar nesta empresa, era enfim tudo um fim presente e uma triste e escura sombra de morte.
Quando as duas naus francesas deitaram de socorro na sua capitaina os trezentos soldados que tenho dito, com que se desaferrou do galeão S. Mateus, vendo o marquês que procurava escapar e sair-se dos nossos, se foi chegando, jogando muitas peças de furiosa artilharia, até que se aferrou ali com a dita capitaina, não reservando sua pessoa, mas assinalando-se, pelejando varonilmente do castelo de popa, acompanhado e ajudado de valentíssimos fidalgos e cavaleiros, sem nenhuma covardia, onde andava D. António de Toledo, mostrando o valor de sua pessoa, e D. António Pessoa, que em serviço de Sua Majestade se tinha achado em perigosas empresas, usando sempre o exercício da milícia e armas belicosas; e D. Diogo Henriques que, dando socorro a Malta, foi de cossairos cercado e cativo, o qual não escaramentado de tal perigo passado, se punha e arriscava então em outro, fortemente pelejando. Aqui e em outros recontros pelejaram também valorosamente alguns portugueses aventureiros, como foram Gaspar de Sousa de Moura, filho de Álvaro de Sousa e sobrinho de D. Cristóvão de Moura, o qual pelejou esforçadamente no castelo de proa; Fradique Carneiro, neto do secretairo velho, esteve dentro da nau dos imigos e tornou-se a retirar por lho mandarem; Gonçalo Ribeiro, natural de Guimarães, Diogo Vaz Rodovalho, natural da ilha Terceira, ao qual mandou D. Lopo estivesse sempre com ele, e procedeu tão bem, ele e os demais, que ao Diogo Vaz fez el-Rei mercê de uma comenda grande, e a Gaspar de Sousa de outra e ao Fradique Carneiro doutra. Também se assinalou D. António Manuel, irmão do conde da Atalaia e neto do conde da Castanheira, a que Sua Majestade fez muito gasalhado, quando lhe foi beijar a mão, por ser tão mancebo e se embarcar em uma empresa tão honrosa, e lhe deu um grande despacho para a Índia, onde agora está. Sinalou-se também Francisco de Vila Lobos, natural de Ceita , ao qual D. Lopo entregou a artilharia em uma estância, para que pelejasse com ela, onde, estando em uma portinhola do galeão S. Mateus, apegado de uma arma dos imigos, que em outra portinhola do galeão contrairo estavam, lhe mataram a seu lado um sacerdote português com um pelouro de escopeta, e, afora os mortos, este Francisco de Vila Lobos, só dos cavaleiros portugueses , foi ferido e muito queimado, pelo que el-Rei lhe fez mercês.
Sinalaram-se também dos portugueses D. Diogo de Castro e João Gomes da Silva, esforçados cavaleiros, e Manuel Correia, que agora é sargento-mor nesta ilha, a quem foi encomendada outra estância de artilharia. Deste galeão S. Mateus eram mestre e piloto portugueses. Ao piloto, chamado Sebastião Gomes, natural de Lisboa, fez el-Rei mercê do hábito de Santiago, com outras mercês muitas, e ao mestre, por nome António Gonçalves, natural de Viana fez Sua Majestade muitas mercês; afora outros muitos portugueses dignos de memória, a que não soube os nomes.
Sinalou-se também o marquês de Favara, Agostinho de Ferreira, e outro fidalgo, cujo sobrenome é Gamboa, e o capitão Marolim e o capitão Bovadilha, que acudiu a estorvar que não chegassem à capitaina francesa duas naus que lhe vinham de socorro, fazendo-as arredar, com muita gente morta; e o capitão D. João de Biveiros que com grande ardil intentou de abater o estandarte real da capitaina inimiga, da gávea mais alta, mandando subir um biscainho de estranho atrevimento e ousadia pelas enxárcias, o qual atirando-lhe o bando francês com um mosquete e levando-lhe o pelouro um braço, com o outro que lhe ficou saiu vitorioso com a empresa e estandarte na mão, entregando-o ao dito D. João de Biveiros, que o levou arrastando pelo mar, o que deu princípio à vitória, porque vendo-o levar daquela maneira não ousaram as outras velas francesas socorrê-la e se tiveram por perdidos, desbaratados e vencidos, pondo-se todos em fugida.
Tendo o marquês rendida a capitaina, foram os hespanhóis entrando nela, matando e saqueando, tocando pífaros e tambores, soando trombetas e tangendo charamelas, com grandes gritos de alegria, apelidando a vitória de seu bando, mas com crescidos clamores e tristes choros dos franceses, muitos dos quais tomaram e prenderam dentro na sua mesma capitaina, onde topando um soldado hespanhol a Filipe Strosse, por se não querer render de ambicioso, lhe deu uma mortal ferida. Também foi preso o conde de Vimioso, ferido de uma estocada e lançada, os quais, depois que se deram à prisão, foram levados ao galeão S.
Martinho, nossa capitaina, onde logo morreu Filipe Strosse, mas o conde nunca descobriu seu nome, sem o conhecerem ali até descobrirem quem era, com que o marquês se alegrou muito e o recebeu com brandas e doces palavras, por ser seu parente, e perguntando-lhe em que navio vinha D. António , lhe respondeu que um dia antes da batalha se fora para a Terceira, donde não visse matar aos seus, como entendia, deixando ordem a Filipe Strosse que aferrasse e não perdoasse. Perguntando-lhe mais porque dilataram dar a batalha, tendo tanta armada e gente junta e tão próspero vento, respondeu ser a causa porque Filipe Strosse, tendo a vitória por certa, pretendeu render a nossa armada a algum partido, o qual era que lhe pagassem o que tinha gastado, sendo D. António de contrairo parecer, e querendo que se tomasse a nossa armada e com ambas juntas fossem logo tomar as naus das Índias, do oriente e ponente, que não podiam tardar muito, onde tomariam tanto ouro que abastasse para pagar o que tinha gastado, ainda que fosse três e mais vezes tanto; com a qual resposta se determinou Filipe Strosse a dar batalha, como deu. Dizem também que descobriu segredos mui importantes a el-Rei Filipe e a estes Reinos de Portugal, e a cabo de dois dias faleceu o dito conde, arrependido, com muitos sinais de bom cristão.
Depois de morto o conde, se soube por cousa certa que viera D. António a guarnecer a ilha Terceira e a deixar esta de S. Miguel sujeita e reduzida a seu serviço, com a ilha da Madeira, por ser tão rica, porque nela e nestas dos Açores pretendia ajuntar um milhão de ouro, com que defenderia seu partido. E, juntas as armadas das Índias com estas duas, faria liga com França, Inglaterra e Flandres, para dar guerra a el-Rei Filipe, a qual dizem ter concertada entre a Rainha mãe em grande segredo, para se pôr em efeito, acabando de fazer esta jornada e, tendo congregada esta gente, tomar o Reino de Portugal, se pudesse.
Finalmente, depois de nossa armada pelejar cinco horas tão valorosamente, como era necessário e os imigos o requeriam, por vir na sua armada quase a frol de toda França, houve Deus, Nosso Senhor, por bem dar vitória à nossa armada, tocando a capitaina do marquês uma trombeta em sinal dela, e houve grande destroço e mortandade na armada francesa.
Dizem que fugiu o conde de Brissac em um pequeno barco, e os imigos fugiram mui desbaratados e desatinados, sem saber por que parte os seguiriam e lhe iriam no alcance, deixando perdidas catorze naus, e presos trezentos franceses, em que entravam muitos monsiores e nobres de França, e três mil mortos, afora muitos feridos. Foi esta batalha e vitória cinco léguas desta ilha de S. Miguel, para a banda do meio dia. Dos nossos, foram mortos trezentos e feridos quinhentos, ainda que outros dizem menos mortos e mais feridos, como logo direi. Nisto se pode ver quão brava foi a batalha e quão milagrosa a vitória, que os nossos feridos, que se vieram curar a terra, eram muito para ver e muito mais para magoar, porque traziam pernas e braços cércios fora, outros queimados e como esfolados, outros passados com duas e três arcabuzadas, os quais se curaram no hospital e Casa da Misericórdia de Vila Franca e no hospital e Casa da Misericórdia da cidade da Ponta Delgada, onde então era provedor o ilustre bispo D. Pedro de Castilho que os fez curar com muita diligência e entranhas de caridade; donde se pode coligir quais iriam os imigos que escaparam.
Seguiu-os o marquês na capitaina até que sarrou a noite, em que mandou pôr dois faróis nas gáveas em sinal de vitória.