Deixando o marquês de Santa Cruz na cidade da Ponta Delgada, vendo a fortaleza , contarei, Senhora, o que secedeu às três naus hespanholas que saíram da barra de Lisboa ao dia seguinte, depois de partida a armada de Sua Majestade que venceu a francesa e da vinda da armada de Sevilha, e do que mais se passou até tornar o marquês de Santa Cruz a Lisboa Tenho atrás dito como o marquês de Santa Cruz deu ordem que, se alguma nau se perdesse da companhia de sua armada, se viesse direito a esta ilha de S. Miguel. Partido, pois, o dito marquês da barra de Lisboa a dez de Julho de mil e quinhentos e oitenta e dois anos, às dez horas do dia, para esta ilha, não podendo sair com ele três naus por lhe faltar tempo, logo o dia seguinte as tiraram as galés a remos pela barra fora, e caminharam repartidas, conforme a ordem do marquês para esta ilha de S. Miguel; e, como ovelhas sem pastor, a cada uma seguiu sua fortuna. Uma delas em que vinha o capitão Pero de Prego com sua gente, querendo tomar língua da terra, mandou em um barco dez soldados, ao qual e à nau saíram três naus francesas, pelo que, fugindo-lhe a dita nau de Hespanha e rodeando a ilha, se tornou para Lisboa; e o barco dos soldados se salvou também depois na fortaleza desta ilha. As outras duas naus chegaram aqui sábado à tarde, vinte e um dias de Julho, primeiro que o marquês; em uma delas vinha o capitão D. Sancho Escobar, e na outra o capitão Sebastião da Mata. Traziam estas naus em sua companhia quatro barcas, três das quais se apartaram diante da armada, e, querendo chegar ao porto de Vila Franca, sem suspeita de estar ali a armada francesa, lhe tiraram dois tiros de terra e fizeram amainar as velas a duas delas, que logo foram tomadas, por estar aquela vila já por D. António . A outra barca fugiu para o pego e, indo após ela uma nau de franceses, a tomou diante das duas naus de Hespanha, e a levou sem que os hespanhóis lhe pudessem valer, os quais vendo isto, sem ver a armada do marquês, nem saber parte dela, se alargaram ao mar para descobrir as pontas da terra desta ilha, e descobriram primeiro uma nau, e logo outra maior, além da Ponta da Garça, as quais também se fizeram na volta do mar pela mesma esteira por onde iam as duas dos castelhanos, como que os seguiam ou buscavam. E, como das naus dos ditos hespanhóis tinham visto tomar diante de si com tanto atrevimento a caravela já dita, entendendo que eram imigos, se foram afastando delas para o mar, retirando-se na volta do sul, o que vendo as duas naus francesas se tornaram para a terra, assim pelas não poderem alcançar, como por então se pôr o sol. Ficaram os hespanhóis com má suspeita, deixando-se estar quedos com calmaria à vista dos franceses, e mandaram uma das quatro barcas que lhe ficaram aquela mesma noite a Vila Franca, com oito arcabuzeiros e quatro marinheiros, na volta desta ilha de S. Miguel, a ver se podia reconhecer o imigo e levar recado se eram imigos ou se por ventura estava o marquês já no porto, ficando os da barca de levar este recado em amanhecendo, mas, não tornando a estas horas, tiveram a mau sinal, ainda que diziam alguns que não tornaria por causa da calmaria, por haver ido de vela e não de remos. Assim estiveram as duas naus dos hespanhóis aquele dia, e ajuntando-se uma com outra, o capitão da nau de Santo Antão, que ia por capitaina, deu ordem que aquela noite fossem na volta do porto, para pela manhã reconhecerem se eram imigos, ou verem se podiam entrar dentro, ou ao menos achar sua barca; e assim o fizeram. Então viram que se alargava ao mar a outra urca que chegou primeiro que eles, e ia fugindo por entender sempre que eram de imigos as naus que via, pelo que rodeando a ilha se tornou para Lisboa, como tenho dito. Estando as duas ao outro dia, que foi segunda-feira, junto de terra tanto como cinco léguas, com desejo de saber se havia imigos nesta ilha, se subiu um marinheiro à gávea de uma delas, olhando para terra, e começou a dar brados, dizendo que via a armada do marquês, com que todos receberam grande alegria, posto que lhe durou pouco. E, esperando que o marquês os mandasse chamar, se aquela fosse a sua armada, ou que o seu barco tornasse com recado, nada disto alcançaram, pelo que tinham má suspeita e grande desgosto. Sendo já meio-dia, descobriram cinquenta e duas velas que se começaram a apartar em largo esquadrão tomando-lhe os ventos. E, como nem elas nem as dos hespanhóis podiam navegar com a calmaria que fazia, postas as velas, aguardavam todos o vento, até que às duas horas depois do meio-dia, em que refrescou, os franceses começaram a navegar para os castelhanos; os quais, entendendo então que eram imigos, se foram retirando com grande pressa e temor, e os contrairos lhe foram dando caça até que sarrou a noite, não pouco deles desejada para escaparem da boca do lobo e de tão grossa armada. Terça-feira, pela manhã, véspera de Santiago, se acharam junto da ilha de Santa Maria, sem ousar chegar a ela, e, ainda que se alegraram, reconhecendo que os não seguia já o imigo, todavia tinham desgosto por não saber parte da armada do marquês, nem onde o poderiam achar. Estando assim perto da ilha de Santa Maria, mandaram a ela um barco com quatro marinheiros e seis arcabuzeiros, homens de honra, e sem chegar o barco a terra deitaram um homem a nado, o qual lhes trouxe nova dos moradores que haviam visto aquela armada, mas não conheciam, se era de D. António, se do marquês, e só sabiam que o governador de S. Miguel lhes tinha mandado levar mantimentos, porque aguardava pelo marquês, com a qual nova se foram na volta do mar. A terça-feira tomaram esta língua na ilha de Santa Maria, e a quarta, que foi vinte e cinco de Julho, andaram bordeando junto desta de S. Miguel, e logo a quinta-feira, andando assim como perdidos, em amanhecendo, viram duas urcas e entendendo que eram imigos se puseram em arma. Chegados a investir-se, conheceram ser de alemães que iam desta ilha de S. Miguel, os quais disseram que segunda-feira atrás, vinte e três de Julho, pela manhã, chegaram perto do porto de S. Miguel, onde as três naus de castelhanos tinham chegado o sábado antes, porque ali se haviam de ajuntar todas as naus e galés por ordem de Sua Majestade e do marquês, mas que os franceses tomaram primeiro este sítio. Aquelas três naus foram as primeiras que chegaram antes do marquês, como está dito. E logo o marquês, com as vinte e cinco naus, sem a mais armada chegando e vendo o imigo, ambos andaram bordeando, o marquês porque esperava a mais armada, convém a saber, as galés que com o tempo não puderam vir, e vinte naus de Cales , que por causa da peste tardavam, e D. António porque aguardava outras trinta naus da Terceira. Mas por fim houveram sua batalha naval em que o marquês fora desbaratado, dizendo mais que os franceses traziam uma grande bandeira branca na nau real arvorada. E chegando as trinta naus de D. António, da Terceira, vendo o marquês a grande avantagem do contrairo, sendo já de noite, tomara o lume e subindo o fanal ou farol três vezes em alto e abaixando-o outras três vezes o matara e apagara, dando a entender que ninguém o seguisse, e que por isso eles com aquelas duas naus se desviaram e não viram mais o marquês, nem as outras naus de sua armada e companhia. O marquês bem soube das três naus em que iam os castelhanos serem chegadas primeiro que ele, pelo barco que eles mandaram a reconhecer, sem lhe ousar mandar recado por entre os imigos que tinha junto de si, mas eles não souberam do marquês mais que isto, que lhe disseram os alemães destas duas urcas com que o tiveram por vencido.
Andando estas quatro naus pelo mar, duas de castelhanos e duas de infantaria de tudescos, que lhe deram esta triste nova de ser desbaratado o marquês e entrada a ilha de S.
Miguel dos franceses, se fizeram todas quatro na volta de Hespanha, e tendo andado cem léguas, sexta-feira à noite, três dias de Agosto, os descobriu a armada de Sevilha, de dezasseis naus, em que vinha por capitão-mor João Martins Ricalde e António Moreno por mestre de campo, que vinha em busca do marquês, sem os tudescos a verem, e quase à meianoite, chegando a elas a capitaina, investiu com as quatro naus, cuidando serem imigos, e lhe tirou um tiro, investindo primeiro com uma urca dos tudescos; como eles não responderam claro, ainda que diziam que eram de el-Rei Filipe, lhe atiraram muitas bombardas, e de uma companhia da liga da infantaria, de que era capitão Álvaro de Avalos, chegando a bordo da nau, lhe meteram dentro gente armada, o que vendo os tudescos, querendo-se defender, mataram um soldado honrado, chamado Guterre Gomes, vizinho de Vila Nova dos Infantes, e morreram dos alemães três ou quatro, e neles o sargento da companhia. Foram saqueados e esbulhados os ditos tudescos de valia de oitocentos cruzados, porque isto pediram ao outro dia diante do geral e mestre de campo aos soldados que eram do terço de António Moreno, os quais mandaram que lhos tornassem logo, sem faltar nada.
Ao tempo que estes andavam com os tudescos às arcabuzadas, foi o capitão sobre as duas naus dos hespanhóis e tirando-lhe duas ou três peças de artilharia, uma das duas naus disparou um tiro sem pelouro, para dar a entender que eram amigos, por ter entendido que eram as naus de Espanha. E atirando-lhe outro tiro que os houveram de levar ao fundo, por passar a nau, por onde entrava muita água, os mandaram amainar com grandes brados; respondendo-lhe: — por quem? e tornando-lhe a dizer que por el-Rei Filipe, amainaram e se renderam uma nau dos castelhanos e uma urca dos tudescos, mas as outras duas foram fugindo até que amanheceu, em que reconheceram ser amigos. Aquele dia, sábado, quatro de Agosto, o geral das naus de Hespanha e António Moreno, mestre de campo, e o alferes de uma nau castelhana, com os oficiais dos tudescos, entraram em acordo a informar-se deles onde ficava o marquês ou o imigo, e dando-lhe os tudescos as novas que tinham dado às duas naus de castelhanos, dali mandou o geral as mesmas novas e relação de tudo em uma caravela a el-Rei Filipe. E posto que alguns fossem de parecer que se tornassem para Espanha, com a voz do esforçado geral João Martins Ricalde, determinaram que todos em conserva viessem e tornassem a buscar o marquês na volta desta ilha de S. Miguel, onde chegando, arreceando que estivesse nela a armada francesa, mandaram diante um patacho a saber a verdade, e averiguando e sabendo a grande vitória que o marquês houvera da armada francesa, converteram o pesar em alegria, com a qual vinham ao longo da costa tocando os tambores, tangendo trombetas e clarins, e tirando muita e grossa artilharia; a qual ouvindo em Vila Franca, sem ver as naus, mandaram aviso disso ao marquês que estava na cidade da Ponta Delgada, o qual, achando-se confuso e suspeitoso, se embarcou com grande pressa no galeão S. Martinho, donde mandou tirar um tiro de recolher, com que se recolheu toda a gente da armada, apercebendo-se todos a ponto de batalha; mandando logo o marquês um barco a reconhecer o que aquilo seria, e trazendo novas que era a armada de Sevilha, e as naus que se apartaram, se converteu o receio em prazer, com que entraram as naus que vinham disparando grande número de peças de artilharia, tangendo tambores, pífaros e trombetas e outros instrumentos, e as que estavam com o marquês fazendo o mesmo, durando este alegre recebimento três horas inteiras. Sabendo depois o marquês das novas mentirosas que os tudescos dele deram, os mandou pôr nus da cinta para cima à vergonha, dependurados das vergas das urcas em que vinham.
Estando o marquês de Santa Cruz no porto da cidade da Ponta Delgada desta ilha de S.
Miguel, com toda esta armada junta e surta, esperando tempo para fazer viagem para a Terceira, lhe veio um patacho dar aviso como vinham as naus da Índia navegando em trinta e sete graus, com grande necessidade de mantimentos, pelo que determinou ir socorrê-las, e, antes que desta ilha partisse, deixou em guarnição nela mais de dois mil e seiscentos soldados, que com os criados seriam por todos três mil pessoas, repartidos pelas vilas e aldeias, deixando por mestre de campo Agostim Inhigues, assinalado e valoroso soldado; e aos treze de Agosto se partiu desta ilha a buscar as ditas naus, indo dando bordos na mesma altura de trinta e sete graus, por onde lhe disseram que vinham. E dali a treze dias, que foram vinte e seis de Agosto, as achou e trouxe em sua conserva a esta ilha, provendo-as de todo o necessário, entregando-as aqui a D. Cristóvão de Erasso que vinha sinalado por seu geral, dando-lhe sete naus da armada e dois patachos para sua guarda; com que se partiram aos trinta e um de Agosto. E no mesmo dia, à uma hora depois do meio-dia, se embarcou em companhia destas naus da Índia, no cais da cidade, para Lisboa, o bispo D. Pedro de Castilho, com muitas lágrimas suas e de todo o povo, que ficou muito saudoso e triste pela partida e despedida de tal prelado, ficando esta ilha órfã de tão bom pai e senhor. Foi-se pelo pouco respeito que os soldados de guarnição tinham a seus criados e aos ministros da justiça e moradores da ilha, pelo que, vendo a opressão da terra, embarcando-se com as lágrimas que lhe corriam por seu venerável rosto, disse em alta voz: — folgara que toda esta ilha se embarcara comigo — partindo também o marquês o mesmo dia na volta da Terceira, onde, chegando dali a três dias, mandou a terra dois patachos com recado de Sua Majestade, a um dos quais saiu uma nau do porto, atirando-lhe grossa artilharia. Depois, sobrevindo uma furiosa tormenta que durou vinte e quatro horas, os apartou uns dos outros e da mesma ilha Terceira, pelo que foi forçado ao marquês andar aos bordos, esperando a todas as naus de sua conserva, e tendo-as juntas, por ver o tempo tempestuoso, e não lhe acontecer algum desastre neste mar, se partiu para o Reino, onde chegou a salvamento com tão gloriosa vitória.