Afora duzentos e oitenta soldados hespanhóis que estão de presídio na fortaleza, dos naturais há em toda a ilha de São Miguel cinco mil homens de peleja, todos bons soldados de infantaria, afora os de cavalo, dos quais, ainda que se pode ajuntar um corpo ou companhia de quinhentos, sós trezentos serão bons cavaleiros, em bons cavalos e ginetes. Sumariamente digo que esta ilha de São Miguel, em gente e riqueza, é um Reino de dezoito léguas de comprido, e de largo, em partes uma, e em partes duas léguas e mais. Tem uma populosa cidade, cinco vilas, vinte e dois lugares, em que há cinco mil e seiscentos e sessenta e sete fogos e mais de quarenta mil almas, das quais são de confissão vinte mil e setecentas e noventa e quatro, e de comunhão catorze mil e quatrocentas e oitenta e quatro. Rende a Sua Majestade cada ano mais de cinquenta mil cruzados, que é mais do que rendem as outras oito ilhas dos Açores juntas.
O conde de Vila Franca, Capitão e governador desta ilha, tem nela mais de trinta mil cruzados de renda. .
Há nela fazendas grossas e homens de quatrocentos e de trezentos moios de trigo, de renda; e outros ricos de duzentos mil cruzados e de cem mil, e daí para baixo, em rendas, granjearia e trato.
As terras, no geral, são mui fértiles e rendosas. A gente dela de bons entendimentos, pia, devota, caritativa, discreta, lustrosa e de polícia, e tão inteira nas cousas da Santa Fé Católica Romana que com ser mui antigo e contínuo o trato e comércio nesta ilha, de ingreses, franceses e framengos, por bondade de Deus, até agora se não têm visto nos moradores tisnados erros, que em algumas destas nações há nas cousas da Fé, e, assim como são leais a Deus, o foram sempre a Sua Majestade, no tempo das alterações do Reino de Portugal, pelo que merecem mercês e favores.
Sobretudo, é também lustrada com a Santa Margarida de Chaves, natural dela, que nela nasceu e está sepultada, onde fazem suas relíquias muitos milagres, como já tenho contado.
No descoberto, não se sabem ilhas que estejam tão remotas da terra firme como estas nove dos Açores, algumas das quais estão de Portugal quase trezentas léguas, e outras mais e menos, e além de serem mui frequentadas do comércio que nelas têm gentes estrangeiras, suspeitosas na fé, de alguns que andam piratas são avexadas, como também o são as naus e navios que a elas vêm aportar das Índias do oriente e ponente e de outras partes; pelo que os moradores delas, vivendo dantes quietos, vivem agora como em fronteira de corsairos, a cujos rebates acodem valorosamente, defendendo a terra e os navios que aportam a seus portos, arriscando suas vidas e perdendo-as alguns, como já tem acontecido algumas vezes em algumas, e pouco tempo há nesta ilha de S. Miguel, de cuja narração faço, Senhora, fim, inda que o não tem as saudades da terra, nem menos as do céu, que os dois amigos seus naturais, nela e fora dela, tiveram. .
Dizendo eu à Fama: — isto é, Senhora, o que pude saber desta ilha de S. Miguel, afora a história dos dois amigos que nela houve, que é larga de contar, — nos fomos por entre o mato praticando e comendo as uvas da serra, pretas, roxas e brancas, e das alvas camarinhas, que se parecem na cor e grão com o fino aljôfre, recolhendo-nos em a minha sombria pousada, onde passámos a escura noite, às vezes dormindo e outras falando claras e amorosas palavras, agradecendo ela o trabalho passado de lhe dizer tantas particularidades desta terra, mostrando-me desejar de me meter em outro, de também lhe contar a história dos dois amigos que houve nela, como amanhecesse. E depois que o sol começou a alumiar a face da terra, nos fomos assentar no costumado lugar, junto da grande e fresca ribeira, onde passámos ambos o que adiante direi.